terça-feira, 19 de dezembro de 2023

“Eu vi uma árvore” e o princípio de uma metafísica esquálida[i]

Tenta argumentar que muitas árvores existentes não existem[ii]

Árvores para elas mesmas. Há uma distância limítrofe a partir da qual deixamos de ver uma árvore que porventura estamos vendo agora. Quando nossa visão não a capta mais, ela deixa de existir para nós, embora possa haver outros campos de visão para os quais a árvore se apresenta (ou existe). Agora imaginemos uma árvore que nunca foi vista por ninguém. Podemos dizer que esta árvore nunca existiu para ninguém, mas poderíamos dizer que essa árvore nunca existiu? Ou que ela não existe? E uma árvore jamais vista e que já morreu, ela existiu? De ambas não temos notícias, elas nunca foram referidas por ninguém. Então, elas somente existem ou existiram para elas mesmas.

Árvores para nós. Ocorre que elas-existirem-para-elas-mesmas somente é possível se algum de nós está aqui. Isso porque “ver”, embora de muito seres, é humano. Ter olhos, embora de muito seres, também é humano. Isto é, os nomes, os conceitos e essa linguagem que usamos para descrever o mundo e as coisas são humanos, já que outros animais veem, mas não sabem que veem ou não sabem o que é ver. Mas, se supusermos o mundo sem a espécie humana ou algum outro tipo de espécie capaz de conceituar o mundo e as coisas seja lá de que forma, não poderíamos dizer que o mundo existiria, e suas árvores, já que “existir” e “mundo” são expressões humanas.

Falsos problemas. Isso posto há dois problemas que são falsos problemas: uma árvore que, jamais vista, morre e uma árvore que vive sem a existência da espécie humana. No primeiro caso, não podemos dizer que ela morreu porque jamais foi vista, não se sabe de sua existência. Não poderíamos falar dela. Já no segundo caso, poderia até haver uma árvore nesse mundo, mas não sabemos se haveria coisas como “árvore”, “mundo” e “existir”. Não haveria alguém para falar dela.

Árvores existentes. Por outro lado, quando vemos uma árvore, podemos notar claramente que ela tem uma consistência, ela é material. Isso quer dizer que não duvidamos que haja mundo, mas há um mundo que categorizamos no limite de nosso entendimento e linguagem. Inclusive, se fosse possível catalogar as moléculas de oxigênio por sua origem, poderíamos saber da existência de determinada árvore, que expeliu aquele gás oxigênio por seu processo fotossintético, sem nunca a ter visto, embora a partir de uma evidência passível de ser checada por nós e, sendo assim, ainda seria uma árvore para um humano. Ou mesmo pelo mapeamento dos resíduos de sua decomposição.

Conclusão. Do que foi dito, concluímos por uma simbiose temporal, isto é, enquanto houver uma árvore que é vista por alguém, se pode falar. A partir do momento em que, ou não haja alguém ou nenhuma árvore, nada poderá ser dito. Qualquer conceituação que escape a essa temporalidade é quimérica. Essa simbiose é tão forte que necessariamente só se fala do concreto e enquanto ele durar e por meio de conceitos que não passem disso, sejam eles abstratos, porque vazios de conteúdo, transcendentes, isto é, que se permitam ir além da simbiose ou imanentes, possivelmente propalando um tempo eterno.



[i] O uso das aspas indica que não estamos falando do fato em si, mas da expressão linguística. Ver “Conceitos” em https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2022/11/introducao-ao-significado.html.

[ii] Eu já tentei fazer filosofia por minhas próprias mãos, filosofia raiz, de boteco, aqui e eventualmente em alguma avaliação escolar, mas sempre fui malsucedido. 

Putnam e a objetividade do conhecimento

Passa pelas fases realistas de Putnam[i]

Putnam se filia ao realismo que ganha força na década de 70 impulsionado por Kripke e a teoria causal da referência, cuja proposta é estabelecer uma relação direta entre o referido e o termo, perpassando o significado. Se Kripke trata dos nomes próprios, Putnam aborda as espécies naturais (água, ouro, tigre...) que compõem o mundo. Em sua primeira fase, que poderia ser chamada de realismo metafísico, subentende-se que há no mundo uma totalidade fixa de objetos que são independentes da mente, mundo exterior existente e livre de nossas teorias. Além disso, é possível supor uma descrição completa e perfeita de como o mundo é, trazendo uma noção de verdade como correspondência entre as palavras e coisas externas. Essa é a perspectiva externalista, o chamado ponto de vista do olho divino.

Há uma ontologia externalista que prevê o mundo externo e a semântica da verdade com referência externalista baseada no realismo científico que nos dá acesso epistêmico ao mundo, evitando o ceticismo, mesmo que falível e aproximado (i.e., realismo convergente).  A ciência segue o ideal de busca da verdade, de um conhecimento verdadeiro do mundo, mas postula entidades inobserváveis em suas previsões e, assim, deixa questões problemáticas para os realistas, como uso de genes, átomos e outros. Ora, se não existem essas entidades, como seria possível explicar o êxito da ciência? É o argumento do milagre: sem essas explicações, como mostrar que tudo funciona adequadamente? Nesse caso, a melhor concepção é o realismo científico.

Plastino destaca que, por mais que haja teorias a respeito do átomo, a referência a ele permanece e busca-se por explicações a seu respeito, trazendo uma estabilidade referencial. As crenças mudam, o objeto não, o conhecimento avança cumulativamente incorporando teorias anteriores. Pode haver mudanças semânticas, de sentido, mas a referência continua, assim como na Terra Gêmea há uma substância chamada água que tem outra composição química: XYZ. Ou seja, o sentido de água não está em nossa cabeça, dado que XYZ não é água, pois a referência faz parte do significado, mesmo que semelhante em aparência. É a extensão do termo que determina o significado.

Porém, Putnam começa a rever sua posição externalista ao perceber que poderia haver vários mapeamentos da linguagem com o mundo, colocando em dúvida a fixação da referência e da verdade dada a multiplicidade de correspondências[ii]. Então ele se questiona sobre nossa capacidade de chegar ao conhecimento (concepção epistêmica de verdade), já que a correspondência é não epistêmica, independente de nossa capacidade cognitiva, embora para o realista há verdades que não dependem de nós.

Para o realista metafísico, uma teoria poderia satisfazer todos os critérios epistêmicos (coerência, previsão, explicação) e ainda ser falsa, não corresponder à realidade, já que pertencendo ao ser humano e enfatizando uma dicotomia entre realidade e teoria. Então ele questionará tal divisão entre mundo e conceito propondo que o que vale é o esquema conceitual que estamos utilizando e não devemos falar da coisa em si. Putnam já está negando o realismo metafísico em prol de um realismo interno que traz a relatividade conceitual dependente de perspectivas. Como pode haver teorias verdadeiras e equivalentes do mundo, a ideia de “Mundo” em si se esvai. O acesso a ele é feito por um esquema conceitual no qual colocamos os objetos, dentro de uma certa descrição. Sobre o sol, por exemplo, podemos falar dentro de um esquema conceitual, embora o sol não dependa desse esquema.

Ocorre que, inviabilizando a noção de verdade por correspondência propalada pelo realismo metafísico, Putnam proporá uma noção epistêmica em que associa a verdade à justificação e que evita mapear o mundo pela linguagem. Por exemplo, pelo verificacionismo fundado na evidência dos enunciados, nas condições de verdade que dependem de nossa capacidade cognitiva. Mas o verificacionismo pode levar ao relativismo cognitivo, já que pode haver mudanças de justificação pelo surgimento de evidências. Ora, a verdade não deveria ter essa oscilação, então, conforme Peirce, a justificação se daria ao longo do tempo, dentro do processo científico, em seu limite. Esse realismo com face humana de Putnam, traz a verdade de um enunciado como podendo ser justificado, algo aceitável racionalmente, mas não aqui e agora, mas idealmente. A verdade é um ideal regulador, que norteia a busca das condições epistêmicas e é vista como questão objetiva em que enunciados são melhores que outros independente do contexto histórico e cultural.

Mas também haverá dificuldade nessa nova “situação ideal”, se antes era a correspondência agora é a episteme, levando-o a uma nova autocrítica. A verdade, dependente de fatores humanos, poderia se manter estável? Como usar o papel da verdade na prática? Essa ideia estaria muito próxima de uma situação ideal difícil de ser encontrada na prática, de acordo Rorty. Se humano, esse ideal é suscetível a erros e mesmo uma investigação ideal pode ter proposições com conceitos vagos ou subdeterminados. Ou como distinguir melhores situações epistêmicas? Sabe-se que as avaliações epistemológicas variam com o tempo e pressuposições.

Então surge o realismo natural (direto ou pragmático) que descarta a linguagem como espelhamento da realidade, mas propõe que nossas crenças e enunciados devam ser responsáveis pela realidade (cognitivamente dar uma resposta ao mundo e ao outro, evitando o idealismo). Ele diz que observamos as próprias coisas diretamente pela percepção e não pela intermediação dos dados sensíveis, que são imagens delas e das quais falaríamos. Ora, o mundo que conhecemos não é produto de nossa mente, ele é independente de nós e de nossos artefatos e nos restringe forçando determinada resposta a ele. Mundo objetivo que limita nossas crenças. Então, o realismo não necessita de uma teoria epistêmica da verdade, já que fala sobre o mundo.

Sobre o pragmatismo, importa a crítica à dicotomia fato valor[iii]. Há valores cognitivos epistêmicos (predição, confiabilidade) que norteiam a teoria que versa sobre o mundo, então o fato é pautado por esses valores “embutidos”, assim como no discurso cotidiano. Há valor embutido na ciência: os fatos se dissolvem em valores (objetivos). Importa a noção pragmática de objetividade que visa superar cada cultura. Mesmo dentro de um falibilismo que não cai em ceticismo. Ele ressalta também que devemos estar abertos a várias descrições acerca do mundo, não devemos bloquear a investigação e não há um “a priori” universal e independente.

Associando os valores cognitivos da ciência e os valores éticos, pode haver comunhão ou competição entre os pesquisadores, mas sempre com interação mútua que influencia o conhecimento do mundo.  O dogmático não baseia suas crenças na experiência, elas são independente do que ocorre, disse Peirce, mas o que altera suas crenças são outras pessoas com outras crenças diferentes das dele gerando uma pressão social que o faça mudá-las. O realismo permite responder ao outro e ao mundo. Porém, Putnam discorda dos pragmatistas com relação as teorias da verdade que associam justificação e verdade levando ao relativismo[iv].



[i] Fichamento UNIVESP https://www.youtube.com/playlist?list=PLxI8Can9yAHcC9hEv4oAnMT5GI1zGRW1_  Empirismo e Pragmatismo Contemporâneos - Putnam e a objetividade do conhecimento. Prof. Caetano Plastino.

[ii] De acordo com Plastino, o Teorema de Löwenheim–Skolem.

[iii] Estão intrinsicamente ligados e ambos merecem interpretação objetiva. Já falamos do tema brevemente: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2013/12/possibilidade-possibilidade-reside.html

[iv] Plastino ressalta a dificuldade com a noção de verdade que aparecerá também em Rorty. 

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

O empirismo sem dogmas de Quine

Fala do empirismo de Quine, crítico de Carnap[i]

Quine foi influenciado por Carnap e Russell que partilhavam da divisão entre ciências naturais - as que dependem de conhecimento empírico, e a matemática e lógica, compostas de verdades analíticas, sendo que os enunciados da primeira pudessem ser reduzidos aos enunciados da segunda. Porém, como já vimos nesse espaço, Quine questiona a divisão analítico-sintético por conta da noção de analiticidade que os distingue. Se as proposições analíticas dependem somente da compreensão de seu significado, as proposições sintéticas dependem de que se compreenda o significado (linguagem), mas também de como é o mundo.

Quine enfatiza que a distinção traria ganhos a Carnap, por mostrar que as verdades da matemática e da lógica não têm conteúdo empírico e que são necessárias, ao contrário do empirista Mill que pensava que a matemática dependia da experiência. Ocorre que, para chegarmos a uma verdade lógica por meio da analiticidade, ao procedermos com a substituição de termos sinônimos (solteiro = não casado, P = “nenhum solteiro é casado”) validados pela manutenção do significado, uma entidade intermediária, caímos em circularidade e o dogma se expõe, por não ter um critério claro.

Ele também faz a crítica ao verificacionismo reducionista, segundo dogma, que visa testar um único enunciado na experiência, já que deveria depender do todo – o holismo oriundo de Duhem[ii], enfrentando o mundo como um todo coerente. Segundo Quine, qualquer conhecimento é uma construção humana que toca na experiência em seu contorno, podendo haver um conflito que resultará em ajuste dos enunciados. São os enunciados de observação (check points), com os enunciados mais teóricos ao centro, distantes da experiência, como os da matemática e lógica, mas indistintamente, em conjunto, ainda submetidos ao seu tribunal. É o falibilismo, já que qualquer enunciado é passível de revisão[iii], mesmo os analíticos, a diferença é de grau[iv]. Além da adequação à experiência o sistema deve ter virtudes pragmáticas, como fazer boas previsões, ser fecundo, entre outras.

Quine também se atém ao fisicalismo, tomando o mundo com entidades físicas e as entidades abstratas da matemática que são indispensáveis à construção da ciência. Na experiência, o sujeito recebe estímulos sensoriais e dá assentimento ou rejeita proposições, tomando por base os objetos, mesmo os atômicos que são supostos para formulação de leis. Procedimento da ciência que é uma continuação do senso comum.

Já o naturalismo nega que haja uma filosofia primeira que não seja experimental e fora da ciência, pois é essa última que diz o que é que existe (ontologia) e como sabemos o que existe (epistemologia), de como conhecemos o que existe. O empirismo, de acordo com Quine, passa das ideias para as palavras (expressões linguísticas) - evitando o psicologismo; passa dos termos para as sentenças [que podem ser verificadas] como unidade de significado; e passa das sentenças para um sistema de sentenças (holismo e não reducionismo). 

Há o monismo metodológico avaliado por razões empíricas e pragmáticas em todas as sentenças, abandonando a distinção analítico-sintética; não existe um tipo de conhecimento superior ao científico que investiga a realidade, este sempre se sujeita ao tribunal da ciência como sua própria justificação. A própria epistemologia passa a fazer parte da ciência, sendo naturalizada, verificando nossas estimulações nervosas e sensoriais. Não há mais o imediatamente dado, mas tudo é investigado: sujeito, estímulos dos objetos, comportamento verbal, por uma teoria científica que visa solucionar como conhecemos o mundo.

Como somos capazes de alcançar a ciência, gerar teorias que vão muito além da estimulação sensorial? Pelo aprendizado vamos recebendo conhecimento que vem como um todo com pontos que não entendemos, mas vamos investigando por dentro para corrigi-lo, se for o caso. Mesmo a ontologia é interna a teoria, já que supomos as entidades com as quais trabalharemos, no exemplo que Plastino traz de uma semântica extensional que atribui valor a X (por exemplo, um cão que pode ser branco) e que esse X pode ser intercambiado por uma referência ou outra. É o compromisso ontológico do que deve existir: “ser é ser o valor de uma variável ligada”, que satisfaça as condições da teoria. Mas cada ciência trata de certos objetos e os agrupa e descreve, sejam planetas, seres ou números, a depender de cada uma. Já o filósofo busca uma abrangência maior, indo além da aceitação acrítica e visa tornar explícito o que era vago, porém a partir do interior dos sistemas conceituais da ciência ou do senso comum, embora em graus mais elevados e distantes da observação.

Para Quine, a tolerância proposta por Carnap não ficaria presa ao exterior, na escolha das formas linguísticas, mas também iria para dentro do sistema, verificando as questões internas, sua coerência, sendo então de ordem prática também e adequada empiricamente. Por fim, Plastino cita a subdeterminação das teorias pelos dados, já que mais de uma teoria pode descrever um mesmo conjunto de dados e se contradizendo, o mesmo ocorrendo para a tradução[v], onde uma linguagem pode ser traduzida de maneiras diferentes e por elas subdeterminadas, tornando-se indeterminada, até chegar à teoria da indeterminação da referência.

Sigamos, encerra Plastino, reformando o barco em alto mar, nós, ciência e filosofia. Podendo até mudar tudo, mas não tudo ao mesmo tempo e sem sair do barco (de Neurath).



[i] Fichamento UNIVESP https://www.youtube.com/playlist?list=PLxI8Can9yAHcC9hEv4oAnMT5GI1zGRW1_  Empirismo e Pragmatismo Contemporâneos - O empirismo sem dogmas de Quine. Prof. Caetano Plastino.

[ii] Assim como o significado de um termo depende do contexto, do todo ao qual está inserido.

[iii] Podemos ver o contraste entre uma visão de verdade verificacionista de enunciados individuais, supostamente dogmática, e a abrangência da postura holística.

[iv] Mesmo a lei do terceiro excluído teria sido superada pela mecânica quântica, conforme citação de Plastino.

[v] Vide https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2023/09/gavagai.html. 

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Carnap e o princípio da tolerância

Fala do pragmatismo de Carnap[i]

Como a ciência conhece o mundo? Por qual método e fundamentos? Essas são questões levantadas pelo Círculo de Viena dada a preocupação em se fazer com que a Filosofia siga o caminho da Ciência, tornando-se uma filosofia científica. O pensamento científico tinha, naquela época (década de 20), como inimigos a metafísica e a teologia e como aliados o liberalismo, o empirismo, entre outros. Utilizando-se da análise lógica fundada por Frege e Russell seria possível mostrar que a grande parte dos enunciados metafísicos eram contrassensos.

Inspirados pelo Tratactus, os intelectuais do círculo pretendiam que a filosofia fizesse o esclarecimento lógico dos pensamentos, clarificando as proposições e buscando um dizer cristalino. Carnap relembra a luta histórica contra a metafísica já empunhada pelos céticos gregos e que se valeria da incipiente lógica moderna. Proposições que envolvem termos como Ideia, Absoluto, coisa em si, por exemplo, não faziam sentido, nada significavam, segundo ele. A filosofia científica seria moral e social, promovendo o progresso e retomando o ideal iluminista.

Eles publicam um manifesto que divide os enunciados da ciência empírica e os da metafísica que seriam um “sentimento perante a vida”, mas que deveriam ser expressos pela arte, já que a teoria deve descrever o mundo e ser verdadeira ou falsa. A linguagem conduz a erros metafísicos e o pensamento de gabinete não alcança o mundo. Intuições intelectuais não vão além delas mesmas, e a crítica do ex-neokantiano Carnap atinge os juízos sintéticos a priori kantianos[ii], como a aritmética: “7 + 5 = 12”[iii], criticada pelo logicismo que via essas proposições como analíticas. Também a geometria euclidiana estaria ligada à nossa intuição espacial que, com o aparecimento das geometrias não euclidianas do século XIX, elas mostrariam que não há relação com a percepção sensível, não passando de convenções, isto é, postulados coerentes e não necessários – não a priori. Por fim, o terceiro exemplo de Kant [sobre juízos sintéticos a priori] das três leis fundamentais de Newton é refutado pelo próprio avanço da ciência, como a relatividade e mecânica quântica, tornando-o falso em alguns casos. Verdades sintéticas (com conteúdo) a priori não são viáveis e todo o conhecimento sintético é a posteriori, baseado na empiria e as verdades a priori são analíticas.

Não obstante essa “limpeza de terreno”, para ser significativa uma proposição deve seguir critérios como o método de sua verificação e conhecer suas condições de verdade no âmbito da experiência, sua adequação com a realidade. Sistemas filosóficos se digladiam porque seus enunciados não são verificáveis, não é possível verificar seus “estados de coisas” que podem acontecer ou não. Se sabemos o sentido de um enunciado, podemos saber se ele é verdadeiro ou falso por experiências que nos apoiariam a decidir por um enunciado P a ser P ou não P. Significado e verificação são os critérios utilizados por Carnap, sabendo que a proposição P é verdadeira, isto é, quais suas condições de realização, conheceríamos o seu significado.

Outro ponto destacado por Plastino é que, para Carnap, a representação mental vai além do enunciado. A expressão “Vou sentar no banco da praça” pode causar uma representação mental de um banco cinza, sem encosto. Diferentemente da representação factual do enunciado, essa é uma representação acompanhante do objeto que não faz parte dos fatos acerca dele e que são teoricamente irrelevantes, embora de importância prática que pode se dar pela arte. Cientificamente, é a realidade empírica que importa, independentemente do ponto de vista filosófico, por exemplo, uma montanha ser real ou se a realidade é oriunda de nossa percepção. Ou seja, a metafísica confunde representações acompanhantes e factuais e seus enunciados não têm significado teórico (V ou F).

A disputa entre realistas e idealistas não deveria tentar explicitar como é o mundo, mas como deve ser utilizada a linguagem, se fisicalista (utilizada pela influência de Neurath) ou fenomenista (linguagem de vivências, utilizada no Aufbau), pois essa é uma questão prática. Plastino enfatiza que Carnap defende um modo formal de falar e não um modo material, isso é, ao invés de falar das coisas trata de como falar das coisas e questiona qual a linguagem mais coerente para falar do mundo (nível metalinguístico). Se usou a linguagem fenomenista das sensações, ele compreende que a linguagem fisicalista é mais adequada para a ciência já que pode ser compartilhada e atingir uma ciência unificada pelo uso da mesma linguagem.

Entretanto, os membros do Círculo de Viena entenderam que o critério de verificação não é o mais adequado e começa a sua flexibilização, dada a dificuldade de verificação de alguns enunciados (p.ex. “Toda esmeralda é verde.”). Ao contrário, é possível encontrar uma esmeralda não verde, mas isso depõe contra a universalidade da ciência. Uma alternativa é o critério de falseabilidade, e aqui cabe marcar uma distinção entre critério de sentido (empiristas) e de demarcação (Popper). Para este último, que entendia que a metafísica fazia sentido, o critério permitiria separar ciência e não ciência, embora ainda tendo dificuldades com questões existenciais, que não podem ser falsificadas, somente verificadas. Por fim, o critério da testeabilidade pelo qual os enunciados poderiam ser ou verificáveis ou falseados para poderem fazer sentido, que também apresenta dificuldades com enunciados universais e existenciais: Para cada substância (U), existe um ponto de fusão (E).

Plastino mostra, com isso, as dificuldades dos empiristas lógicos com os enunciados e, por isso, Carnap destaca a sua interpretação parcial. Ele também trata da relevância preditiva, quando hipóteses sobre termos teóricos permitem agregar novas proposições a um sistema. (por exemplo, o inobservável elétron, o que não é o caso para o termo absoluto). Acaba que, por exemplo em Wittgenstein, algumas proposições metafísicas passam para o campo metalinguístico, como a lei de causalidade (Todo efeito tem uma causa) que não é uma lei científica, mas a forma das leis científicas, já que elas o respeitam. Enfatiza-se que a metafísica não fala do mundo, mas do discurso sobre o mundo, análise gramatical que pode tomar desde a sintaxe (símbolos), passando pela semântica (significado) até a pragmática (uso pelo sujeito). No seu texto de 34, Carnap sustenta que somente a análise sintática é suficiente para o trabalho de análise filosófica do discurso científico, do ponto de vista formal, sendo tolerantes a que forma da linguagem utilizar, já que são convenções a serem julgadas pelos seus resultados, evitando-se posições dogmáticas.

Para ele, questões ontológicas podem dizer respeito a categorias sintáticas (coisa, fato, espaço) e outras a predicados específicos (cadeira, azul, hoje) muito diferente de questões como “Existem números?”, que abrangem a totalidade e se refere ao ambiente externo, fora do sistema linguístico já instituído. Já a questão ontológica “Existem água em Marte?” é uma questão teórica interna que pode ser respondida dentro de um sistema, com “Sim” ou “Não”. Sistema linguístico que pode ser fisicalista ou fenomenista, conforme já vimos, se é conveniente ou não para determinado propósito, se é simples, fecundo. 

Quine dirá que é a tolerância e o princípio experimental que devem ser usados para construir os sistemas linguísticos que serão usados pela ciência e avaliados de forma pragmática. Isto é, as regras de construção da linguagem devem ser tornadas claras e não há uma só linguagem logicamente correta, é o cientista que vai escolher entre uma e outra de maneira prática. Conforme James, o pragmatismo é uma atitude, não olha para princípios ou categorias, mas para as últimas coisas, os resultados. Encerrando, para Carnap, escolher o sistema é da ordem prática e, uma vez escolhido, dentro dele suas questões são teóricas.



[i] Fichamento UNIVESP https://www.youtube.com/playlist?list=PLxI8Can9yAHcC9hEv4oAnMT5GI1zGRW1_  Empirismo e Pragmatismo Contemporâneos - Carnap e o princípio da tolerância. Prof. Caetano Plastino.

[ii] Aqui cabe lembrar que o racionalismo kantiano não é feito de conhecimentos inatos, mas de uma estrutura espaço temporal que permite conhecer – conforme as aulas do professor de filosofia de hoje e sempre: Vitor Lima, do INEF: https://www.youtube.com/@istonaoefilosofia.

[iii] Não é mera tautologia já que fala do mundo, mas independentemente dele, já que é condição de possibilidade da própria experiência. 

sábado, 18 de novembro de 2023

A semântica da pós-verdade no discurso ordinário

Esse texto busca refletir sobre linguagem, ciência, tecnologia e mundo na atualidade, pelo menos em um ou outro aspecto

Não dá para saber até que ponto uma suposta linguagem pura ou ideal foi ou é a base para a linguagem do dia a dia, embora a filosofia em alguns momentos tenha tido essa pretensão, sob forte influência da ciência. Há maneiras e maneiras de proceder na análise do discurso por um viés filosófico, fato reforçado com a virada linguística do início do século passado e que coloca em dúvida a posição da consciência como detentora primordial do conhecimento, em prol da linguagem. Essa suposta linguagem pura ou ideal é fortemente baseada na análise lógica e na objetividade, buscando uma comunicação límpida e cristalina. Porém, basta dez minutos do Programa do Ratinho para perceber o quanto isto é inalcançável.

Claro que, sem dúvida, uma outra abordagem é aquela que busca explicitar a própria linguagem em seus usos. Ela usa da linguagem para explicar a linguagem, ela analisa as sentenças da linguagem e seus termos e variações buscando desvelar em qual sentido um determinado termo é usado em um contexto ou outro[i]. Se esse projeto de escrutínio linguístico mediante a filosofia é menos pretensioso ainda assim ele talvez possa estar preso a contextos específicos, embora pudesse até ser aplicado na própria ciência. Ora, mas por que a ciência novamente?

Bem, desde o renascimento que nós, human@s, noss@s maiores expoentes se apropriaram da natureza por meio da atitude científica que descreve e prescreve a realidade e que tornou possível todo esse suposto progresso que culmina agora com as mais avançadas formas de IA (inteligência artificial, seja lá o que isso queira dizer). Com o predomínio científico que nos domina há mais de 500 anos, a ciência se estabelece como campo inabalável de conhecimento e como fundamento de nossas conquistas mais expressivas, tanto boas quanto ruins[ii]. E não nos esqueçamos que a ciência é um navio em alto mar sempre em reconstrução, mas com bases sólidas e que atrai todos os demais tipos de conhecimento para que sigam o seu método, seja a medicina, psicologia, biologia e filosofia.

A ciência abocanha, então, natureza e humanidade em seu proceder, entretanto há efeitos colaterais. Uma tendência científica que atualmente estampa qualquer linha editorial ou publicação periódica, das mais liberais até as mais revolucionárias é a discussão sobre o ChatGPT, uma variação de inteligência artificial capaz de gerar novas informações a partir do “aprendizado”[iii] de toda a sua base histórica que dificilmente pode ser computada por um reles mortal. Isso ao mesmo tempo em que já tínhamos acompanhado manipulações do discurso e da verdade por grupos de pessoas e de empresas ao redor do globo, influenciando em eleições, prisões e demais sandices. Quanto temos nos deparado ultimamente com discursos mentirosos, mas convincentes, com negacionismos e falsa moral? Suas origens são as mais variadas, sejam elas políticas, religiosas e, quiçá, cientificas[iv].

Além do mais, junta-se a esse panorama o grande potencial de divulgação por meio das jamais reguladas big techs e a ilimitada internet e temos tipos de discursos nada passíveis de análise linguística com base científica ou em seu método. E as capacidades de criação que o ChatGPT agrega para os propagadores de inverdades torna o círculo vicioso: mais se produz de desinformação e mentira, mais a IA reproduz desinformação e mentira.

Isso tudo posto, chegamos à semântica da pós-verdade: uma que não permite uma análise lógica do discurso, pois o discurso se tornou contrafactual. Análise de proposições, verificacionismo, verdade e justificação racional são conceitos que não tomam lugar no discurso majoritário. A realidade foi colocada em dúvida e enunciados científicos não tem mais poder de persuasão[v]. Diante desse cenário só nos resta tomar o pragmatismo como método de menor dano. O tema já não é novo[vi], mas o que nos chama bastante a atenção é o quanto devemos fazer esforços em dois sentidos, pelo menos: primeiro tentando trazer o discurso teórico para mais perto da prática regular, para que ele não se torne um discurso estéril e, depois, tentando exercer o convencimento, tarefa tão difícil nesse momento de enorme polarização[vii].

Já o escrutínio do discurso pode levar em consideração aspectos semânticos dos textos que delatem sua origem com foco, quando se atendo à formação de opinião, tanto na produção artificial pelo ChatGPT ou pelas fake news. O primeiro passo é identificar a origem do discurso para que as ações possam ser direcionadas: discursos mentirosos produzidos por pessoas são motivo de crime e o discurso gerado por IA pode ser aceito, mas deve ser informado. Por 50 mil anos, a linguagem tem sido a essência de nosso pensamento e base da comunicação humana e não podemos deixar que um tempo miserável coloque em xeque toda essa evolução biológica.



[i] Não cabe aqui filiar uma teoria de análise da linguagem a um projeto filosófico qualquer.

[ii] Esse espaço blogueiro abriga, nesse contexto, algumas abordagens em filosofia da tecnologia.

[iii] Isto é, cálculo estatístico e probabilístico, no mais das vezes enviesado.

[iv] Pelo menos filosóficas podemos ver aos montes por aí.

[vi] Alyne Costa já falava disso no Conversações há 3 anos atrás: https://youtu.be/HlM5d699fYw.

[vii] A direita e a esquerda, os conflitos na Ucrânia e Gaza mostram o quanto os argumentos estão a mercê da empatia, isso já falava Quine. Ilustração: https://youtu.be/cmizWUX_gt0.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Teses quineanas

Visa passar pelas principais teses de Quine contra o modelo canônico[i]

O modelo padrão estabelecido é conhecido por tratar o conhecimento como crença verdadeira justificada. Quine o critica porque há dificuldade na justificação racional de crenças, o conceito de verdade é um problema e por suas posições fundacionalistas e normativistas. Como alternativa surge a proposta de uma epistemologia naturalizada[ii] que vê a ciência como um tipo de conhecimento que pode ser descrito em seu processo de constituição, que afasta a necessidade de ser justificada para ter “status” de conhecimento, por ser uma epistemologia que é vista como um capítulo das ciências naturais e, por isso, não normativa e, por fim, por se ater a uma explicação holística do conhecimento.

De acordo com Conserva e a literatura, o modelo padrão remonta a Platão (diálogos Mênon e Teeteto) através de teses como conhecimento proposicional e universalidade. Porém não obstante seu predomínio, o modelo padrão de conhecimento é motivo de muitas interpretações, embora haja a seguinte teoria firmada:

a)     Conhecimento é X.

b)    X deve ser algo informativo.

c)     As nossas intuições (crenças) são tomadas como ponto de partida: pensamos que uma crença X é um caso de conhecimento, que uma crença Y não é o caso de conhecimento.

d)    Desenvolvemos os esforços para justificar os casos de X como conhecimento e os casos de não X como não conhecimento.

Portanto, o que queremos dizer com conhecimento? Bem, o conhecimento se dá pela noção de significado, então procuramos estabelecer o significado dos conceitos como crença, verdade e justificação e saber como aplicá-los por meio de uma definição operativa que permite decidir sobre os casos. E isso é um critério normativo.

A reação quineana ao modelo padrão. Quine não se detém à análise do significado dos conceitos do modelo padrão, porém busca descrever como os indivíduos adquirem determinadas crenças principalmente as que falam sobre estados de coisas do mundo. Ao invés do conceito foca-se no fenômeno natural. Analisa-se o processo de constituição de crenças racionais e por qual razão é a Ciência o caminho mais confiável em uma crítica ao modelo padrão mais sólida que a de Gettier.

O problema relacionado com a justificação de crenças. Gettier já alertava que mesmo uma crença bem justificada pode não ser verdadeira. Isso porque se exemplifica conhecimento por sentenças declarativas representadas pela fórmula: P sabe que S. Porém, “sabe” depende das noções de crença e justificação tornando o argumento circular. O ponto de Gettier é a justificação e Quine concorda com ele porque uma crença verdadeira pode estar assentada em conjecturas e aí não seria conhecimento. Justificação e verdade se distinguem: pode haver crença verdadeira sem ser justificada ou crença justificada que não seja verdadeira.

Conserva ressalta que a crença pode decorrer mais de uma empatia, ligada a uma disposição psicológica, do que de justificação, de um assentimento intelectual que poderia alçar determinada realidade a um status do conhecimento. Gettier bem demonstrou que um indivíduo pode ter uma crença P falsa que foi bem justificada e o ludibriou, dado o caráter de disposição psicológica de tendencia a concordar com ela, não obstante esteja racionalmente fundamentada.

Mas Quine, que refuta o normativismo, não pretende analisar critérios de justificação. Sua epistemologia pretende descrever o processo de aquisição das crenças por meio de uma psicologia empírica baseada no behaviorismo. Para Quine, nossas intuições dependem de esquemas linguísticos que podem ser verificados por meio de uma teoria do aprendizado linguístico e da naturalização da epistemologia. A formação de crenças vai depender de um sistema linguístico e de evidências empíricas que, juntos, formarão uma rede dentro da qual sentenças podem ser consideradas verdadeiras ou falsas. Devemos levar em conta também a realidade em relação ao conhecimento geral e ao científico em particular, associado a uma referência e ontologia.

É através desses pressupostos que se pode criar uma representação racional da realidade tomando como exemplo as Ciências empíricas e o conjunto de crenças a ela associada. Essas crenças constituem uma teia com algumas mais resistentes e outras podendo ser rejeitadas e a rede se reajusta, por meio de uma teoria holística. Mas as alterações devem ser feitas com simplicidade e sem que a teia seja mutilada.

Cabe ao epistemólogo escolher um esquema conveniente superando até uma possível correspondência aos fatos. É por meio do pragmatismo que o fundacionalismo e o normativismo podem ser contornados. E a crítica de Quine vai abranger a Epistemologia, tido como Filosofia primeira e a Teoria do conhecimento que se pretende normativa. Evitando a necessidade de justificação recusa-se uma hierarquia epistemológica abrindo espaço para outro recorte teórico.

A consequência fundacionalistas na tradição filosófica e no empirismo lógico. De acordo com Conserva, o fundacionalismo epistemológico se inicia com Descartes, pois funda no sujeito o ponto indubitável de conhecimento, anterior ao empírico. Nessa visão, há uma hierarquia que se funda na Epistemologia que precede a Ciência e por ela formamos crenças racionalmente. Inclusive Rorty afirma que a filosofia analítica é oriunda desse projeto buscando terreno firme na análise linguística por meio de uma linguagem universal que permitisse explicitar toda a significação e ali fincando toda a teoria do conhecimento. Ocorre que Quine irá se opor ao empirismo lógico que resguarda as verdades analíticas e contestará a dualidade analítico-sintética chegando a analisar a epistemologia empiricamente.

A opção por descrever processos de conhecimento: saber como e saber que. Quine contesta termos como certeza e conhecimento como sendo vagos no campo científico e, por isso, não se utilizará de conceitos e definições, mas das noções pragmáticas “saber que” e “saber como”. Conceitos pertencem à esfera da semântica internalista e não permitem uma descrição comportamental – observacional e científica. Já a semântica extensionalista se afastará do vínculo entre conhecimento e entidades ou proposições. Quine se fiará na descrição empírica das crenças e, se afastando da linguagem pura pretendida pelo empirismo lógico, se voltará para a linguagem ordinária.

Ora, há um saber (o científico) e a Filosofia busca descobrir como a Ciência se desenvolve e é apreendida, mesmo que ainda suscetível a constante aperfeiçoamento. Já que o modelo fundacionalista cartesiano não deu conta de justificar logicamente a Ciência, Quine procurará descrever como ela é possível sendo instrumento de análise e objeto a ser analisado. Portanto, se filosofa pelo próprio método científico, que é o esquema conceitual vigente.

A recepção da condição de verdade no pensamento quineano. Conserva mostra que o modelo canônico tem por fim a obtenção da verdade por meio da justificação epistêmica. A verdade é obtida através de representação, dentro de uma perspectiva realista, mas sabemos que nossa representação é parcial e sempre superada por novos instrumentos. Porém, o modelo quineano não toma um mundo a ser conhecido, ao contrário, mundo, referência e ontologia são partes acessadas por nós por uma estrutura lógica e linguística. Compreensão de mundo e aprendizado da linguagem são dois lados da mesma moeda[iii].

Além do mais, o modelo padrão utiliza uma justificação apriorística, herança da epistemologia platônico-aristotélica fundada no discurso predicativo e proposicional, base da verdade. Para Quine, a construção do conhecimento vem do uso social da linguagem e não de uma relação representativa palavra-objeto. O conhecimento se constrói eventualmente revisando sentenças antes verdadeiras e como estamos cindidos da referência, a representação é colocada em xeque.

A relação entre sujeito e mundo (representação?) se dá pelo aprendizado da linguagem; cada linguagem tem a sua ontologia, sua teoria de mundo empírica que se afasta do modelo padrão de crença verdadeira justificada.



[i] Fichamento do primeiro capítulo do livro Quine: Linguagem e Epistemologia naturalizada, de José Nilton Conserva. Curitiba, Appris, 2019. Primeira Parte: conhecimento para além do modelo padrão: esboço das teses quineanas. As referências ao longo do fichamento não são citadas e devem ser procuradas no texto original.

[ii] Naturalizada porque se debruça sobre nosso processo natural de aprendizado.

[iii] Representação: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2023/07/representacao-e-correspondencia.html

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Filosofia da linguagem tripartite

A abordagem da filosofia da linguagem tripartite é aquela tradicionalíssima, conforme esquema a seguir. Há uma comunicação entre falantes e ouvintes e, em grande parte dos casos, eles se compreendem. Ora, obviamente, isso não significa que concordam entre si. Além disso, até que ponto eles se compreendem é coisa duvidosa: eles podem compreender frases, mas não se compreenderem de um ponto de vista subjetivo.

Esse esquema de compreensão se basearia ou pelo significado ou pela referência ou por ambos. Isso tudo é coisa que estamos investigando, mas em linhas gerais teríamos um mundo referido e significados por aí.

Esquema triparte da filosofia da linguagem

sábado, 23 de setembro de 2023

Gavagai

Observações iniciais informais sobre a indeterminação da tradução e congêneres[i]

O experimento da indeterminação da tradução da Quine é muito importante porque já quebra barreiras dogmáticas de abordagens nascituras da Filosofia da Linguagem, especialmente visões oriundas do Círculo de Viena. Imaginemos um linguista que vai a campo criar um manual de tradução da linguagem usada por uma tribo indígena isolada e ele faz uma primeira observação de um falante que aponta para um coelho e diz para seu acompanhante: “Gavagai!”. O linguista anota essa cena e se pergunta, sobre gavagai: “Seria o coelho ou uma parte do coelho? Seria comida, almoço? Seria animal?”.

Esse breve excerto serve para mostrar que o trabalho de rotulagem das coisas pela linguagem depende do contexto e é arbitrário, ou seja, ele é relativo ao que ocorre. Assim, o manual criado pelo linguista deverá ser construído mediante as observações empíricas e serve como uma forma de refutar possíveis enunciados puramente analíticos, isto é, que são verdadeiros em si, independentemente da experiência. Na realidade, talvez se criem enunciados analíticos, mas eles poderiam ser formados por abstração e a posteriori.

Então, o experimento condiciona a linguagem ao contexto de uso referido, mas ele também mostra que, se um outro linguista que se aventurasse nessa mesma tarefa de confecção do manual, criaria um manual diferente do anterior, em virtude daquelas perguntas iniciais que seriam respondidas de inúmeras formas por inúmeros linguistas. Nesse sentido, a tradução se indetermina pelas inúmeras abordagens que podem a ser construídas pelas diferentes observações empíricas de uso e revela, também, a inescrutabilidade[ii] da referência, já que gavagai poderia ser o coelho ou a perna do coelho. 

Teremos que fazer o escrutínio desse didático livro de Conserva por meio de fichamentos, mas de antemão teremos material para aprofundar em sua denúncia dos dois dogmas do empirismo[iii] e de sua proposta por uma epistemologia que recusa um fundacionalismo e normativismo por meio do behaviorismo e empirismo[iv]. Um ponto interessante é que vai desmistificar o significado como uma entidade abstrata, vai mostrar a não alcançabilidade da referência e recusar a primazia verificacionista de enunciados verdadeiros por meio de uma teoria holística. Ou seja, é demolidor.



[i] Estamos na primeira leitura diagonal de Quine: Linguagem e Epistemologia naturalizada. CONSERVA, José Nilton. Curitiba: Appris, 2019.

[ii] Do que é impossível de ser escrutado, investigado, compreendido; impenetrável, incompreensível, insondável (Oxford Languages and Google).

[iv] Preliminares: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2022/04/a-nossa-teoria-sobre-como-o-mundo-e.html. 

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Por este meio

Uma primeira passagem pela teoria dos atos de fala e familiarização com o vocabulário [i]

A despeito das frases declarativas, pelas quais afirmamos ou desejamos algo, Austin nos chama a atenção para a elocução performativa, que nos permite executar um ato social. São os atos de fala, como “Desculpe” ou “Dobro”, que seguem regras constitutivas, que devem ser obedecidas e regras regulativas, que se não cumpridas levam a um ato infeliz.

Na verdade, para Austin, toda elocução tem um aspecto performativo (força ilocutória) e um conteúdo descritivo ou proposicional. Originalmente, em 1961, ele considerou que frases performativas não descrevem algo ou especificam um fato, ao contrário das frases descritivas, verdadeiras ou falsas.

Ele inaugura a teoria dos atos de fala que são atos sociais como, por exemplo, 1.) “Prometo pagar-lhe as fraldas” e 2.) “Peço desculpas”. Aos proferi-los, estamos executando um ato, como efetivamente prometendo algo ou simplesmente nos desculpando. Mas, 1.) é declarativa, embora não descreva nada, não descreve alguém prometendo, já que simplesmente prometemos. E não é passível de uma condição de verificação pois a elocução não parece ser verdadeira nem falsa. Ela é uma frase declarativa que é factualmente defeituosa, mas que se entrega a outra finalidade.

Para testar a performatividade, Austin criou o chamado critério “por este meio”, isto é, inserir a expressão “por este meio” depois do verbo principal para sublinhar o ato em questão como, exemplificando, em 1.) “Prometo por este meio pagar-te”, ato que se constitui pela própria elocução do orador. No caso das constativas[ii], o ato de dizer não se insere na frase como em 3.) “O gato está por este meio no tapete”.

Se, em geral, o critério permite distinguir entre performativas e constativas, há frases que parecem ser ambas, como 4.) “Declaro que nunca visitei um país comunista”. Aqui, o critério para tê-la como performativa pode ser inserido pois tem-se um ato de fala declarativo. Por outro lado, é descritiva pois declara um ato que pode ser verdadeiro ou falso. Até mesmo a frase 1.) parece ser constativa pois assere que lhe pagarei. Ora, conforme mostra Lycan, isso fez com que Austin percebesse que quase toda elocução tem tanto o aspecto performativo quanto o constativo, qual seja, uma asserção sempre é feita por um ato assertivo com força assertiva.

Há forças ilocutórias que podem ser um juízo, um conselho ou um aviso. Por exemplo, 5.) “Seria muito estúpido comprar mais ações nas Lojas Americanas” encobre o “O meu conselho é que seria muito estúpido...”. Inclusive, uma mesma declarativa pode ter forças ilocutórias distintas como pode ser visto no diálogo 6.) “Se não te despachas com isso, vou-me embora” poderia ter a resposta 7.) “Isso é uma ameaça ou uma promessa?”.

Mesmo as não declarativas, como os modos interrogativo e imperativo, trazem variações de força ilocutória, como: 8.) “Vai no Calixto e pega uma Colorado”, que poderia ser uma diretiva, ordem ou sugestão, variando com as intenções que se queiram ou com relações de poder. Por aí, a distinção entre elocuções performativas e constativas passam a ser entre força ilocutória e conteúdo locutório ou proposição em uma mesma elocução. Os atos ilocutórios podem variar: autorizar, censurar, negar, inquirir, insistir, perdoar, repreender, agradecer, etc.

Ocorre que, além da força ilocutória e do conteúdo locutório, Austin introduz uma terceira característica das elocuções: os atos perlocutórios. Eles são aqueles que, performativos, não passam no critério “por este meio” porque dependem mais do efeito no ouvinte do que da intenção do falante. Alguns deles são: espantar, enganar, distrair e irritar.

Lycan considera que o verificacionismo e a teoria da verdade deixam de fora a força ilocutória por considerar somente o conteúdo proposicional como significado, mas ele considera que a força é, sim, um tipo de significado ilocutório indispensável para a linguagem.

Se os atos de fala são convencionais e suas regras são costumeiramente implícitas no comportamento social normativo, Searle as divide em constitutivas e regulativas. Regras regulativas regulam comportamentos preexistentes como 9.) “Não mastigue com a boca aberta” e sua violação não é tão grave, o resultado é que executa um ato infeliz, conforme a terminologia de Austin. Ou proferir uma promessa sem a intenção de cumpri-la. Por outro lado, as constitutivas definem novas formas de comportamento, como em um jogo de xadrez 10.) “Os bispos só andam na diagonal” – o jogo não existiria sem ela. Elas podem ser fortemente constitutivas se a sua inobservância impede o ato de fala pretendido, como um clérigo que realiza o casamento de noivos que não tem idade legal para casarem-se.

Embora possa haver casos de fronteira nas regras propostas por Searle, Lycan argumenta que Austin se preocupou também em mostrar casos infelizes de elocuções como quando ela é insincera, dita com a voz muito baixa, sem tato, mal-educada ou prolixa. Lycan ressalta que a falsidade é uma infelicidade que permeia os atos de fala de afirmação, asserção e semelhantes, já que uma regra regulativa é que o que se diz é verdadeiro. Entretanto, dirá Austin, não são falsas, mas infelizes, superando a postura verificacionista.

Isso posto, Lycan traz o problema de Cohen, autor que argumenta ser tentador considerar que o significado (ou condição de verdade) seria dado somente pela frase declarativa, enquanto a parte performativa pudesse ser descartada. Porém, argumenta Cohen, o conteúdo performativo também tem seus sentidos e referentes e não é meramente uma etiqueta – eles têm significado locutório.

Extrapolando, Lycan traz exemplos nos quais os prefácios performativos tem advérbios e são longos, como 11.) “Admito sem coação que tive várias conversas em privado com o acusado”, 12.) “Admito com relutância que tive várias conversas em privado com o acusado” – aqui "com relutância" modifica “Admito”, a frase performativa. Poderíamos também ter 13.) “Como creio em Deus, admito que tive várias conversas em privado com o acusado” – nesses casos há muita coisa sendo afirmada ou há fatos que poderiam estar na frase performativa trazendo conteúdos locutórios. Esses exemplos mostram que essa perspectiva tentadora deve ser superada por uma libertadora.

Ora, sob esse ponto de vista, os atos de fala passam também a poder serem verdadeiros ou falsos e uma asserção como 14.) “Parece-me que já encomendamos demasiadas peles de foca” teria dois conteúdos locutórios e dois valores de verdade, sendo que o valor de verdade performativo seria auto descritivo e quase sempre verdadeiro. Pois bem, no exemplo, “Admito sem coação ...”, se tomarmos a perspectiva liberal, a admissão seria uma asserção, retirando sua força ilocutória de jogar parte do significado, o conteúdo locutório, para a declaração. Tomada como liberal, o “Admito sem coação...” poderia ser falsa e a segunda frase “mantive conversas...” verdadeira.

Por fim, Lycan ressalta que uma teoria dos atos de fala completa deveria lidar com esses fatos. Segundo ele, Alston e Baker tentaram transformar a proposta de Austin em uma teoria do próprio significado locutório, quase como uma teoria do uso, mas sem aprofundamento.



[i] Fichamento de Filosofia da linguagem: uma introdução contemporânea. LYCAN, William. Tradução Desiderio Murcho. Portugal: Edições 70, 2022. Capítulo 12: atos de fala e força ilocutória. 

[ii] Constativo: que apenas descreve um acontecimento, não implicando o cumprimento simultâneo, pelo locutor, da ação descrita nesse enunciado. Conforme infopédia.