Crítica de uma teoria
dita oficial acerca da mente e seu lugar na natureza.
A Doutrina Oficial. Oriunda de Descartes, versa que somos um corpo que morre
após a morte e uma mente que tende a subsistir. Os corpos são visíveis e
sujeitos às leis mecânicas; as mentes são privadas. Segundo a doutrina
oficial, pela consciência e introspecção temos conhecimento indubitável de
boa parte dos episódios de nossa vida privada. Porém, a antítese exterior /
interior é uma metáfora, haja visto a dificuldade de estímulos longínquos causarem
respostas mentais[ii]. As transições efetivas
entre os episódios da vida pública e privada não podem ser efetivadas nem por
introspecção nem por experimentos e, assim, flutuam entre psicologia e
fisiologia. Na base dessa representação, há uma existência física composta de
matéria e uma existência mental temporal que ocorre na consciência. Os objetos
materiais se relacionam mecanicamente no espaço, ao passo que a mente é seu
próprio lugar, como um Robinson Crusoé fantasma. Pela doutrina oficial, ter-se-ia
conhecimento indubitável do que se passa na mente, embora Freud tenha mostrado
que existem estados mentais escondidos de nós[iii].
Além desses dados imediatos da consciência, haveria uma espécie de percepção
interior que possibilitaria a observação da vida interior sem os enganos da
percepção exterior. Já sobre outras mentes é possível tirar apenas inferências
problemáticas, restando uma solidão absoluta para a alma e sendo o encontro um
privilégio apenas corporal.
Corolário da Doutrina. Sabemos fazer comentários sobre mentes e
comportamento alheios, mesmo que eventualmente incorretos e por isso filósofos
construíram teorias sobre a natureza e o lugar das mentes. Mesmo sem ter
certeza de qualquer laivo de verdade.
O Absurdo da Doutrina Oficial. Ryle classifica a teoria oficial como o dogma do “Fantasma
na Máquina”. Ela é um erro em princípio, um category-mistake, um mito do filósofo. Erro de categoria demonstrando
inabilidade no uso de conceitos, exemplo: em um jogo de críquete, o “espírito
de equipe” é diferente de arremessar ou bater na bola, mas não é uma terceira
coisa e sim o entusiasmo através do qual cada tarefa é realizada. Já o erro de
categoria teórico não é um erro de conceito, mas situar o conceito em um tipo lógico
a que ele não pertence. É daí que deriva a representação ryleana de uma pessoa
como um fantasma escondido em uma máquina. Daí surgem duas unidades complexas
distintas: o corpo humano e a mente humana.
A Origem do Erro de Categoria. Descartes sancionou a teoria de Galileu sobre a
mecânica de todos os corpos, porém, afetado pela religião e moralidade, não
concordou que a mente estaria aí inclusa, como o fez Hobbes[iv].
Então, haveria um conjunto de leis para descrever o funcionamento não espacial
das mentes e outro para a mecânica dos corpos. As mentes seriam “coisas” diferente
dos corpos e os processos mentes causas e efeitos não mecânicos, ou seja, uma
hipótese para-mecânica. A dificuldade lógica era explicar a interação, por
exemplo, de um processo mental (um desejo) causar movimentos espaciais (movimentos
da língua). Aderindo à gramática da mecânica, o que se referia à mente era a
negação do corpo, um vocabulário invertido: não existe no espaço, não é visto publicamente
etc. O corpo humano era um motor governado por um motor interno invisível, inaudível,
com leis desconhecidas, uma máquina fantasma! Ademais, surge o problema do livre-arbítrio.
Como o mundo físico é determinista, a mente, como categoria semelhante se guiaria
por um sistema determinista governado por leis não-mecânicas, ou seja, sujeitas
ao destino prefixado. Eis o erro: se sabemos a diferença entre uma expressão
racional e uma não racional, não pode dizer dos outros pois não conhecemos as
causas imateriais das expressões. Nem a diferença entre um homem e um robô. De acordo
com a teoria, não sabemos como o comportamento externo está relacionado com as
capacidades e processos mentais, nem comparar nossas ações com as dos outros. A
hipótese causal não contribui para a aplicação dos conceitos mentais. Ao invés
de buscar por critérios de comportamento, Descartes salientou que não era um
problema de mecânica, mas de uma contrapartida da mecânica. O dogma do Fantasma
da Máquina assume que corpos e mentes pertencem à mesma categoria, permitindo
proposições entre eles. Como no [absurdo] exemplo de Dickens: “Ela chegou em
casa num mar de lágrimas e numa liteira[v].”,
não faz sentido conjugar processos mentais com processos físicos, pois não se trata
da mesma espécie de coisa.
Consequências do Erro. Mostrar que mente e matéria não são do mesmo tipo
lógico, assim como “ela chegou em casa num mar de lágrimas” e “ela chegou em
casa numa liteira” também não o são, significa acabar com a crença da oposição
entre mente e matéria. Significa também que não é legítimo reduzir estados
mentais a estados físicos e que Idealismo e Materialismo são respostas a uma
pergunta inadequada. Nem que a existência de corpos e mentes indicam espécies diferentes
de existência.
Nota Histórica. Por fim, duas notas:
1.
O mito não se
deve exclusivamente a Descartes – ele estava de fato reelaborando doutrinas
teológicas já predominantes como a Predestinação se transformando em
Determinação.
2.
A utilização de
mitos pode contribuir positivamente, como a substituição do mito para-político (analogia
da mente com leis, obediência, rebeldia, etc.) pelo para-mecânico.
[i] O MITO DE DESCARTES. Adaptação de
Osvaldo Pessoa Jr. São Paulo, 2011. Disponível em http://opessoa.fflch.usp.br/sites/opessoa.fflch.usp.br/files/Ryle-Mito-Descartes-2.pdf,
acessado em 20 de maio de 2020.
[ii] “(...) encontramos teóricos
especulando sobre o modo segundo o qual os estímulos, cujas fontes físicas se
encontram a metros ou quilômetros de distância da pele da pessoa, podem dar
origem a respostas mentais dentro de seu crânio (...)”
[iii] O inconsciente etc.
[iv] Lembrar Hobbes, conforme https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Hobbes,
acesso em 25 de maio de 2020. “Em seus livros "Os elementos da lei" e
"Leviatã", Hobbes torna evidente o uso da física e suas leis
mecânicas como base para explicar fenômenos psíquicos e físicos, chegando até
mesmo a comparar o homem com uma máquina, além de fazer analogia à mecânica do
homem e à mecânica do relógio: "O que é o coração, senão uma mola; os
nervos, senão outras tantas cordas; e as juntas senão outras tantas rodas;
imprimindo movimento ao corpo inteiro, tal como foi projetado pelo
Artífice?" Porém é apenas em seu livro "De Corpore" que Thomas
Hobbes demonstra-nos de forma total e estruturada o conhecimento mecânico da
natureza, conhecimento este que se mostra consolidado apenas em "Tractatus
opticus".”
[v] Uma liteira é uma cadeira
portátil, aberta ou fechada, suportada por duas varas laterais. Vide a imagem https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/3/3d/Museu_Nacional_dos_Coches_%285%29_-_Mar_2010.jpg/220px-Museu_Nacional_dos_Coches_%285%29_-_Mar_2010.jpg,
acessada em 25 de maio de 2020.