domingo, 19 de março de 2017

Entre o discreto e o contínuo

Todos nós somos capazes de conceber uma reta como uma sequencia infinita de pontos. Isso porque a reta deve ter uma composição e, devido a sua infinidade, não conseguimos representa-la como uma coisa única. Já para um triângulo, basta destacarmos três pontos ligados por três retas finitas que terminam onde se cruzam, não importando a composição delas. Mas, a essência da reta é a sua fluidez ou a justaposição dos pontos que, de tão justapostos, se tornam infinitesimais a ponto de desaparecerem?
Pensando a reta como uma fluidez infinita abstrai-se de questões pontuais e chega-se a uma síntese, abrindo-se para outras questões que possam ser mais relevantes. Pensando-a como uma sequencia de pontos, teremos que entrar no mérito da representatividade do ponto, de quando um ponto termina e começa outro, se há algo entre um ponto e outro (já que são coisas diferentes) e assim por diante. Tal análise seria dispendiosa e, talvez, inconclusiva. Portanto, há uma reta composta de infinitos pontos e isso é suficiente para que ela seja uma reta e para que possamos representar parte dela no papel de acordo com nossa necessidade.
Agora, suponhamos que essa reta seja o tempo. Nós pensamos o tempo como uma síntese única, eterna e admitida ou como uma sequencia de momentos? O relógio marca uma sequencia de momentos, baseado em segundos, milissegundos, etc., só funciona assim: contando. Já a nossa imaginação é capaz de projetar o tempo para frente e para traz, como lhe aprouver, sem se preocupar com cada momento. Entretanto, parece que estamos sempre em um momento e não soltos no tempo: eu, aqui, agora; eu, aqui, agora. Somos três: eu (como pessoa, alma, consciência, carne, ossos, não importa...), aqui (nesse local, no espaço) e agora (nesse momento, no tempo). Ora, nessa sequencia linear eu mudo permanecendo e permaneço mudando. Permaneço, mudo, mudo, permaneço, permaneço, mudo, mudo, permaneço.
O tempo é essa reta que me mede e me faz historicamente e socialmente passado, presente e futuro. No tempo, eu sou uma síntese, embora não importe aqui como isso ocorre, como um eu-aqui-agora se ligue a outro eu-aqui-agora. Foca-se no contínuo em detrimento do discreto, admite-o sem uma investigação minuciosa. Essa limpeza de terreno é importante para uma maneira sob a qual queremos pensar, ela tem uma finalidade. Não importam os pontos e os intervalos, importa a reta. Não importam os momentos, como permaneço ou mudo, importa eu. A partir da reta admitida podem-se construir triângulos, quadrados e outras figuras geométricas que também vão sendo sustentáculos para novas composições complexas. A partir de um eu não inteligivelmente detalhado quanto a sua composição pode-se ir em direção a algo menos metafísico, a uma práxis. Pode-se chegar a um eu com um outro.
Mas essa é só uma maneira de pensar que pretendemos seguir para se atingir uma finalidade. Do mesmo modo, poderíamos retroceder para o caminho inverso. Sintetizando-se, as discussões se simplificam e aparece uma visão mais ampla. Isso não significa que cada eu-aqui-agora perdeu sua importância ou foi negligenciado, significa apenas que é uma maneira de pensar que tem uma finalidade e que, a partir dessa premissa, voluntariamente se esquiva da análise em prol de uma construção maior. Floresce, então, uma nova perspectiva, não relapsa, mas orientada. Estabelece-se de antemão, de onde se parte e vai se procurando aonde chegar a partir dessa nova orientação. Colhem-se os resultados analisando-os desse novo ponto de vista para se computar perdas e ganhos. Verifica-se se a continuidade fluida se desvencilha de solavancos discretos e se a essência se mantém, nessa nova perspectiva. Porque, por mais que haja uma nova finalidade é a essência que deve prevalecer.