terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Deus, ou seja, a Natureza[1]*

Já tivemos oportunidade de falar sobre substância, Deus e suas consequências nesse espaço. A filosofia, enquanto atividade do pensamento que investiga criticamente o mundo, jamais se afasta dos conceitos, como o de substância, que foi criado pelo Filósofo[2]. Mas, abandonemos nesse momento o que foi dito, para abordamos a caracterização de Espinosa e sua visão revolucionária. Se já expusemos o assunto de maneira rápida[3], Chaui lança luz ao tema em seu: Política em EspinosaAo tratar da política, há um breve e claro ensejo pela Ética, mas fortemente atrelado à demolição do imaginário teológico  (essa marcação serve para salientar que aqui a investigação de Deus é feita com consequências políticas - há essa reverberação de fundo)Chaui mostra os conceitos que embasam a teoria de Espinosa: o de causa de si, que afirma que essência é existência e o de substância, como o que existe em si e por si[4]. A substância, ao causar-se a si mesma, causa a existência e a essência[5] de todos os seres do universo: é o absoluto. Então, só há uma substância e não há substâncias criadas e nem finitas. Essa substância é Deus: único, eterno e ausente de tempo, porque ser, existir e agir é o mesmo.
A substância é livre, não pela sua escolha voluntária, mas por agir sem constrangimento algum. Causando a si mesma é causa eficiente imanente e todas as outras coisas são seus efeitos imanentes, nos quais ela se exprime. As coisas são modos da substância e são e existem necessariamente como consequência da natureza absolutamente infinita de Deus. A substância infinita e seus atributos, enquanto atividade eficiente imanente que produz o real, é chamada de Natureza Naturante. A totalidade dos modos ou efeitos é a Natureza Naturada, modificações infinitas dos atributos substanciais, donde: “Deus, ou seja, a Natureza”. Sendo efeito imanente da substância e seus atributos, as essências e existências das coisas finitas singulares são determinadas e não se determinam por si mesmas e a ordem necessária da Natureza é o nexo infinito de causas, conforme Espinosa: “Na Natureza nada há de contingente; antes, tudo é determinado pela necessidade da natureza divina a existir e a operar de maneira certa.” [6].
Afastando-se de Leibniz[7] deriva que o mundo não é criado ex nihilo. Não há teologia da Criação (marcação da filosofia contra essa teologia), não há um Deus dotado de intelecto e vontade e criador de um mundo contingente por sua ação voluntária, não há escolha de mundo possível. Espinosa desantropomorfisa e despersonaliza Deus, conforme mostra Chaui, em dois passos: 1) intelecto e vontade não são atributos da substância e 2) não há separação entre poder e potência de Deus. De 1) temos que, diferentemente da tradição teológica que opunha natureza (para toda causa há necessariamente um efeito) e vontade (o que causa contingente e livremente), Espinosa afirma que a essência e a existência das coisas seguem da livre necessidade da potência de Deus. Deus age [como sua causalidade eficiente] e da natureza de Deus seguem-se as coisas [como relação lógica entre princípio e consequência]. De 2) temos que, diferentemente da tradição teológica que distinguia potência (força da essência[8]) e poder (faculdade de usar ou não a potência), Espinosa afirma que a potência e o poder de Deus são o mesmo: não há espaço para ação contingente, há ordens e conexões causais necessárias.
Chaui classifica esse movimento de Espinosa de “ontologia do necessário”: como causa necessária, Deus age segundo a perfeição de sua natureza; como causa livre, Deus age segundo a necessidade de sua natureza. Se atribuía-se a Deus a onipotência de agir inteligentemente ou voluntariamente, para Espinosa trata-se de mostrar “que o intelecto e a vontade não pertencem à natureza de Deus”[9], acusando a teologia (!!) de aproximar tais faculdades humanas com as divinas. Negando a tradição teológico-metafísica da oposição “por necessidade/por liberdade” ou “por natureza/por vontade”, da imagem da liberdade como escolha voluntária, a liberdade para Espinosa é o que segue espontânea e necessariamente da natureza de um ser e explica-se apenas por ela, não ficando à mercê da autoridade ou fatalidade advinda da liberdade submetida à vontade e garantido que nada há de contingente na Natureza e tudo é necessariamente determinado pela essência/potência de Deus. Uma vez retirados do caminho o intelecto e a vontade, a identidade da essência com a potência faz do ser absoluto um puro agir, salientando também a identidade da potência com o poder de Deus e afastando a hipótese de que há um poder de Deus aquém de sua potência[10].
Encaminhando-se para o fim da análise do De Deo, Chaui nos mostra que, ao despersonalizar Deus, pode-se concluir que Deus não é uma pessoa transcendente, juiz e legislador do universo. Tal construção advinha do imaginário finalista que desconhece a causalidade eficiente, então se baseando nos desejos e apetites como fins externos e projetando-os à Natureza[11]. Mais do que isso, dada a complexidade orgânica do ser humano, ele então seria o grande fim buscado por Deus, que então é referido como o Artifex Magnus.  Viria a reboque a ilusão do mundo criado por Deus e da criação dos homens para honra e glória do senhor. Então, de artesão, criador do mundo, viria a imagem de governante do mundo, tacitamente usada pelos teólogos (!!) para se valerem de um poder que viria da Pessoa Transcendente. A desconstrução de Espinosa da personalidade divina desarticula a ação baseada na vontade e a fins exteriores, fazendo com que o campo do político também se liberte da imagem dos governantes com poderes divinos, tão bem expressa pelo jesuíta Mariana: “O príncipe está colocado no cume das sociedades para que apareça como uma espécie de deidade, como herói baixado do céu, superior à natureza dos demais mortais”.[12]



[1] Chaui, Marilena. Política em Espinosa. Ed. Cia. das Letras, São Paulo, 2003. A ontologia do necessário, p. 95 e ss. 
* adendo em 09/04 apontando o caráter não só ontológico como político do texto.
[4] De acordo com Chaui, na tradição, a substância era tratada como o sujeito de inerência de predicados, assunto também abordado por Mansion na nota n. 2.
[5] A essência, conforme Espinosa, que é composta pelos infinitos atributos infinitos em seu gênero.
[6] Ética, parte I, proposição 29.
[7] Chaui vai mais longe remetendo a Duns Scotus o que nosso conhecimento só permitiu imputar a Leibniz.
[8] Força da sua natureza de produzir.
[9] Ética, parte I, proposição 17.
[10] Em outras palavras, salienta Chaui, como se o conjunto do possível fosse maior que o conjunto do necessário, ou seja, pelo seu poder Deus escolheria algo que está em sua potência para passar à existência, ideia própria de Leibniz, trabalhada em: http://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2014/05/mundos-possiveis.html.
[11] Distinção entre causa eficiente e causa final que precisamos elaborar referindo às quatro causas aristotélicas: final, formal, material e eficiente.
[12] Citação de Chaui de um texto apesentado em concurso de livre-docência.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Convergência

Gostaria de modelar uma forma convergente que é capaz de unir o diverso fazendo com que cada parte apresente sinergia com a que lhe é subjacente. Essa convergência não é um simples quebra-cabeças onde precisamos procurar as peças certas, muito embora devamos encontrar um desenho ou um significado no final. A convergência propalada é um ajuntamento desajeitado, mas eficiente, de “proto objetos” com funções específicas e capazes de coexistir de modo que haja um ganho no todo, por mais que pequenas perdas no entorno. Quando dois “proto objetos” se encontram, eles tendem a manter as suas propriedades mais essenciais cedendo um pouco ou permitindo que se formem ranhuras que não passam de um ajuste natural. Isso porque um proto objeto por si só não subsiste.
Convergir é agregar de tal maneira que o resultado desestimule o caminho inverso, embora ele seja possível. Por isso a convergência deve selecionar os “proto objetos” mais adequados para determinado lugar. Sim, não podemos falar de uma convergência que não seja espacial e que busque na geometria uma das fórmulas de cálculo de sua composição, levando em conta disposições aproximadas, porque não há perfeição na convergência. Em nenhum momento deve ser buscada a convergência ideal, mas ela se faz por ajustes em cada proto objeto e nas suas relações. Também não é necessário que um proto objeto mantenha a sua posição inicial, se o que leva a uma reconfiguração for a possibilidade de se extrair mais daquele proto objeto em seu novo contexto e fazer com que ele potencialize a sua vizinhança.
Se a convergência é essa forma que buscamos, ela não passa de uma abstração e um discurso, porém, uma vez que ela se constitui, ela se transforma em um moto contínuo. De fato, a convergência recém-criada acaba por se fazer necessária e, não só não nos livramos dela, como a fomentamos. É nesse ponto que a convergência vale mais que seus “proto objetos” e ela passa a depender de cada um deles. O proto objeto se torna a chave do sucesso da convergência e, sendo unidade básica dela, não se vangloria por isso. Cada proto objeto sabe que sua função é convergir e a convergência sozinha é vazia. Nesse ponto, a convergência está pronta para ser colocada à prova e cada proto objeto fará o que for possível para mantê-la e se manter.