quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Sentido de uma vida incrédula

Não é necessário que uma vida tenha sentido, porém, para uma vida criada nos desígnios religiosos, tal esclarecimento é suscitado. A teleologia de uma vida semeada no seio cristão traz a proeminência de uma justificativa que possibilite argumentação externa e convencimento próprio.

Pois bem, o etos da religião cristã dá sentido à vida terrena, visto que há uma vida além desta cujo direito de ser vivida deve ser conquistado. O rumo que essa vida deve tomar vem da bíblia, seja diretamente pelo crente ou via um sacerdote ou instituição que a traduz.

O cristão é formado em tais preceitos e não existe brecha para contestação. A religião é artigo de fé. Em um estado laico, como o Brasil, há poucas opções e as instituições salvaguardam a supremacia religiosa. Tentativas de escape não são bem vindas.

Porém, casos de emancipação podem ocorrer, muito embora não haja garantia de certeza. Mas, se temos que procurar algo em que nos guiarmos em uma vida agnóstica, talvez a melhor saída seja a orientação ética. A incredulidade, quando acomete, seja religiosa ou um ceticismo filosófico, não pode nos relegar a uma falta de norte.

A saída ética que pode nos guiar é individual e coletiva. É a ética do que defendemos para nós e através da qual engajamos os demais, nossos coirmãos. Pode ser uma ética ecológica, inclusiva, pansexual, socialista, pluralista ou emancipatória. Contudo, não importa, não há valores predefinidos, a construção se da sobre o que nos afeta, o que nos oprime ou liberta.

Mais do que se definir, precisamos delimitar o que deve ser evitado: a aposta na superstição e o compromisso com a evangelização, males maiores da religião. Se não temos que negar a finalidade da vida, muito menos temos que nos preocupar com a finalidade que cada um toma para sua vida, por mais que o diálogo seja sempre recomendado, senão estimulado.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Sobre a plasticidade cerebral e outros princípios de seu funcionamento interno

Trataremos de alguns princípios mais relevantes em um primeiro contato com a dinâmica do cérebro, porém sem rigor técnico[i]. Importa o entendimento geral e algumas reflexões a partir desse exame do órgão composto por em torno de 86 bilhões de neurônios e 1 quatrilhão de sinapses[ii] (1.000.000.000.000.000).

Duas considerações iniciais: 1.) Nicolelis chama de solenoide a forma como os neurônios se organizam em laços para se relacionarem e transmitir informações e 2.) importa ressaltar que, como estamos verificando a parte interna do cérebro, temos receptores sensoriais, que se encontram no tálamo, para comparar as informações do mundo com a do nosso cérebro. E o primeiro e mais importante princípio: a plasticidade neural, ou seja, a capacidade do cérebro de se modificar tanto anato como funcionalmente, seja pelo aprendizado, mudanças no corpo, engajamento social etc. E a variação do número e distribuição das sinapses que ocorrem nos solenoides.

A fé move montanhas? Nicolelis relata experimentos realizados em seu laboratório em Duke como, por exemplo, o implante de neuro próteses em ratos que permitiram aos animais identificarem a luz infravermelha. Tais experimentos vão no sentido das pesquisas de interface cérebro-máquina e o famoso Projeto Andar de Novo, através dos quais o neurocientista e sua equipe puderam conhecer melhor o funcionamento do cérebro.[iii]

O implante de multieletrodos em ratos interferindo em seu sistema motor e os demais experimentos demonstram como as populações de neurônios trabalham de maneira interconectada e distribuída. Nicolelis traz o esquema do braço robótico que é movimentado através de comandos via chips conectados a um cérebro e transmissores sem fio, de onde constatamos que talvez não seja exatamente a fé que move montanhas... Mas, seria o pensamento capaz de mover uma pedra que estivesse sobre uma superfície móvel controlada por ele?

Outros princípios:

· Massa neural: mais neurônios em uma população, maior a contribuição em um determinado padrão comportamental;

· Multitarefa: mesmo neurônio pode contribuir com mais de um comportamento/parâmetro motor;

· Redundância: não há um padrão fixo e o recrutamento de neurônios para tarefas é ad hoc, ou seja, não ocorre ao mesmo tempo e varia expressamente, oferecendo proteção contra falhas;

· Contextualização: para responder aos estímulos sensoriais exteriores;

· Conservação de energia: se há um trabalho excessivo por determinadas populações de neurônios, outras trabalharão menos.

Atividade antecipatória. Um princípio que Nicolelis também identifica em ratos é a atividade antecipatória, nos roedores associada ao uso das vibrissas que funcionam como dedos, localizando-os. Essa atividade antecipatória está ligada ao ponto de vista do cérebro, ponto de vista interno proveniente da história perceptual do indivíduo, do estado dinâmico do cérebro, das expectativas de cada situação e dos valores que experimentamos.

Experimentos feitos pela equipe do catedrático em macacos mostra que há uma reconfiguração dos parâmetros quando há mudança na recompensa que era esperada ser recebida em determinada tarefa. Isso reforça a plasticidade: o cérebro continuamente se reformata e se antecipa. De novo, perguntamos: onde está localizada, em nosso processo decisório, essa predição?  Faz parte do inconsciente? Em nosso dia-a-dia, ficaria essa atividade preditiva facilitada pelos ciclos (dia-noite-semana-etc.)? Seria trabalho do cérebro conservar energia até atingir uma zona de conforto ou é exatamente essa zona de conforto que traz uma não evolução neuronal?

Enfim e por fim, há uma capacidade central do cérebro de aprender e se auto adaptar, característica não encontrada nos computadores. Nicolelis também cita o caso de cegos que redirecionam seus neurônios para tratar os novos impulsos sensoriais. Todos esses princípios compõem a Teoria Relativística do Cérebro proposta por Nicolelis e a conceituação do córtex como entidade contínua.

 


[i] Nicolelis, Miguel. O verdadeiro criador de tudo: Como o cérebro humano esculpiu o universo como nós o conhecemos. São Paulo: Planeta, 2020. Notas do capítulo IV.

[ii] Conforme Toda Matéria, link https://www.todamateria.com.br/sinapses/ acessado em 17/12/2020, sinapse é a região localizada entre neurônios onde agem os neurotransmissores (mediadores químicos), transmitindo o impulso nervoso de um neurônio a outro, ou de um neurônio para uma célula muscular ou glandular.

[iii] Nicolelis cita Young como pioneiro nesse estudo ao postular o sistema RGB, de como o cérebro trabalha com os neurônios em conjunto para trazer a experiencia da composição das cores.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Informação gödeliana anti-IA

Nicolelis já anuncia a força do conceito no capítulo 1: “introduzo uma noção fundamental para a minha tese central: uma nova definição operacional para o conceito de informação, que chamei de informação gödeliana, podendo ser manipulada por tecidos orgânicos e cérebros animais como o nosso[i]”.

Pois bem, no capítulo 3 a informação gödeliana entra em cena para interagir com o bit de Shannon. Por um lado, a informação medida em bits é a informação digital, por outro lado nosso cérebro e nosso organismo armazenam informação não quantificável (um punhado). E são justamente essas noções que me despertam velhos fantasmas[ii]:

1.      Como processamos e armazenamos as informações do mundo?

2.      Em que momento ocorre nosso processo decisório?

3.      Há decisões conscientes?

4.      Haveria espaço para o livre-arbítrio em alguma situação?

5.      Haveria espaço para um epifenomenalismo?

O grau com que venho me tornando descrente já me faz praticamente abandonar a última questão e talvez me torne um materialista radical[iii]. E, pelo que aparenta até agora, a argumentação de Nicolelis procede nesse sentido, é evidente, já que o criador de tudo é o cérebro orgânico [e suas ficções?][iv].

Se voltarmos para as questões iniciais vemos que elas dão conta de um assunto inter-relacionado e que tentei tratar en passant em um trabalho acadêmico. Convém esquematizar o raciocínio pobre.


Imaginando que a figura acima ilustra um esquema epifenomenalista, ou seja, a mente seria espirrada do cérebro como uma sobra ou uma fumaça de um processo de combustão. O organismo, por sua vez e pelos sentidos, absorve o que está por aí, seja no mundo ou nas entrelinhas, nas nuances[v]. O trabalho acadêmico era sobre educação e, qual foi o ponto: problematizar o torpedeamento informativo, a guerra de narrativas que, proveniente do mundo, influenciaria corpo, cérebro e mente (etc.). Isso seria possível em esquema onde não há uma decisão consciente, voluntária tão clara, tão óbvia. O trabalho foi um fiasco.

Entretanto, a informação gödeliana que Nicolelis conceitua, também advoga contrariamente ao nosso argumento, pois ela ainda salvaguardaria a livre decisão, inclusive recorrendo-se aos experimentos de Libet! [vi] Mas então voltemos ao terceiro capítulo e vamos fazer um recorte da argumentação do pensador catedrático.

*    *    *    *    *

De acordo com Nicolelis, viver consiste em dissipar energia para embutir informação no organismo. Ou seja, há uma base termodinâmica na argumentação que ele traz de Prigogine[vii]. Nicolelis observa que árvores estocam informação climática em seus anéis enquanto crescem. Assim como em nosso processo de aprendizado há um armazenamento de memórias no tecido nervoso – essa é a plasticidade do cérebro, sua capacidade de mudar de configuração física.

Então, a termodinâmica da vida é dissipar energia para produzir conhecimento. “O que é a vida?”, perguntaria Abu[viii]. A vida é liberar calor (respirar). Há queima de alimentos pelo oxigênio[ix]. É um processo de entropia que gera informação. E aí Nicolelis vai ao pai do bit, Shannon, bit: unidade de mensuração (S-info). E aqui o interessante é que informação é a medida incerteza, informação é surpresa. Ou seja, a mesmice não traz informação. Mas o bit é a medida é o computador digital. É Turing.

Por outro lado, Gödel conceitua a informação contínua e analógica (G-info) e que não pode ser copiada por um algoritmo. E Nicolelis mostra sua face anti-IA. A abstração mental é a conversão computador-cérebro (“S-info”-“G-info”). Entretanto, o computador não da conta do ambíguo, como o cérebro. É uma relação sintático-semântica. E ocorre que, nessa perspectiva, a possível experiência da decisão inconsciente de Libet torna-se uma decisão da G-info acumulada que é armazenada pela queima de energia que traz o acúmulo orgânico.



[i] Nicolelis, Miguel. O verdadeiro criador de tudo: Como o cérebro humano esculpiu o universo como nós o conhecemos. São Paulo: Planeta, 2020. Pg. 18.

[ii] Não tão velhos assim...

[iii] Será?

[iv] Segundo Nicolelis, o cosmos é uma gigantesca massa de informação esperando observação.

[v] Pensemos que mesmo a fumaça dissipada pela combustão e que “não serve para nada” vai para algum lugar.

[vi] Ver: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2018/03/nao-estamos-no-comando.html.

[vii] Nobel de química de 1977. Termodinâmica: parte da física que estuda as trocas ou transformações de energia.

[ix] Conforme http://www.usp.br/qambiental/combustao_energia.html, acesso em 3/12/2020: A respiração é um processo de combustão, de “queima de alimentos” que libera energia necessária para as atividades realizadas pelos organismos. É interessante notar que a reação inversa da respiração é a fotossíntese (...) onde são necessários gás carbônico, água e energia (vinda da luz solar) para liberar oxigênio e produzir material orgânico (celulose) utilizado no crescimento do vegetal.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Quine e os problemas do positivismo lógico*

A asserção inicial de Quine que Schwartz nos traz já revela a eficácia dos mitos sobre os quais se assentam nossa base epistemológica: quando um físico leigo acredita em objetos físicos. Nesse sentido do conhecimento, o tema em que Quine está aqui inserido é o do desmantelamento do Positivismo Lógico e das ideias do Tractatus, ou seja, a rejeição do uso da lógica formal para “resolver” problemas filosóficos e na direção de uso da uma linguagem comum[i].

Quine é um empirista pragmático estadunidense que pretende arrumar o empirismo que ainda apresentava resíduos da velha filosofia no programa positivista, como, por exemplo:

·         Confiança na teoria dos dados dos sensoriais;

·         Reducionismo;

·         Lógica Formal;

·         Princípio de Significatividade[ii].

A ruína do critério de verificabilidade para a significação. Para o positivismo, o enunciado é significativo sse é ou uma tautologia (ou uma autocontradição) ou empiricamente verificável (ou falsificável). Então todo conhecimento não analítico se baseia na experiência e a eliminação da metafisica pela aplicação da lógica passa pela destituição de seu significado pela semântica da linguagem.

Hempel procura mostrar que o critério de verificabilidade da significação (ou critério empirista do significado cognitivo, como ele o chamava) era um trabalho prodigioso, porém uma tarefa irrealizável. Além de apresentar um problema autorreferencial: o critério de verificabilidade da significação não se aplica a si mesmo pois é cognitivamente sem sentido, daí que se torna uma recomendação. Mas, se é assim, por que segui-lo?

Da significação à verificabilidade. Popper irá propor um critério diferente de demarcação baseado no princípio da falsificação, ou seja, de falsificabilidade ou refutabilidade e, portanto, testatibilidade das proposições. Levando-se em conta esse critério de Popper o marxismo seria intestável.[iii]

O problema do critério de Popper é a dificuldade em se testar teorias científicas de maneira direta, pois até o darwinismo seria não testável assim, se tornando uma “metafísica útil”.  Porém, o critério da verificabilidade de Popper é menos rígido que o critério de verificabilidade da significação, pois visa checar se uma teoria (ou a metafísica) é ou não ciência, não questionando o seu significado. Assim, Popper rejeita Carnap e o positivismo.

Quine e a rejeição da distinção analítico/sintético. Quine enfatiza a distinção criada por Kant e muito usada pelos positivistas, principalmente no critério de verificabilidade da significação, pela qual podemos assumir: tautologia = “analiticamente verdadeiro”. Para ele, trata-se de um dogma metafísico pois não foi traçada uma fronteira entre proposições analíticas e sintéticas, permanecendo um artigo de fé metafísico.

A fonte da distinção, conforme Schwartz, é o texto de Quine “Dois dogmas do empirismo”, considerado o mais lido da filosofia analítica, que revela os dois dogmas infundados: crença na clivagem entre as verdades analíticas e as sintéticas baseadas em fatos e no reducionismo de proposições significativas a construtores lógicos.

Schwartz ressalta que, embora a argumentação de Quine seja compreensível, os detalhes não são evidentes e utilizam noções complexas como analiticidade e sinonímia. Na verdade, para Quine, a explicação das proposições analíticas dependem de sinônimos em sua definição, ao invés do significado, que levam a recorrência da analiticidade e isso torna a argumentação circular.

A crítica ao significado usado pelos positivistas parece tão evidente que fica difícil que Quine nos convença do contrário. Porém, se os exemplos são investigados, em algum momento a indistinção entre generalizações empíricas e elementos puros de significado linguístico tornam essa fronteira indiscernível.[iv]



* Uma breve história da filosofia analítica de Russell a Rawls. Schwartz, Stephen P. São Paulo: Edições Loyola, 2017, Capítulo Três.

[i] Sobre o Tractatus e a teoria da afiguração que já nos dá uma boa ideia de como Wittgenstein pretendia resolver os problemas: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2020/09/wittgenstein-e-teoria-da-figuracao.html.

[ii] Sobre os princípios norteadores do programa positivista, consultar em nosso blog uma reflexão anterior: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2020/10/o-programa-do-positivismo-logico-i.html.

[iii] Aqui há uma certa querela entre os empiristas que consideravam o marxismo não científico e os marxistas que consideram o empirismo uma doutrina burguesa reacionária.

domingo, 18 de outubro de 2020

O programa do positivismo lógico [i]

Ayer é o iminente filósofo britânico condensador das ideias do positivismo lógico, oriundas do Tractatus e do Círculo de Viena. Seu livro, Language, Truth and Logic (1936) já se inicia com a tarefa reconhecida dos positivas de eliminação da metafisica com a frase “As disputas tradicionais dos filósofos são, em sua maior parte, tão injustificadas quanto infrutíferas”.

Como principal crítica, os positivos consideravam as proposições metafisicas como desprovidas de significado, sem conteúdo cognitivo. A base do ataque era lógica e se fundava no critério de verificabilidade da significação, para o qual proposições devem ser [francamente] verificáveis [em princípio] para poderem ter significado, como o são as da matemática e lógica e não as da metafísica.

Schwartz lista sete princípios do programa do positivismo lógico:

1.      A eliminação da metafisica, da ética, da estética e da teologia pelo critério de verificabilidade da significação.

2.      A causa da perplexidade da metafisica é a gramática superficial da língua; sua cura é a análise lógica.

3.      A lógica e a matemática não consistem em nada além de tautologias. Estas são verdades formais que não têm conteúdo referencial.

4.      Todas as proposições que são necessárias ou a priori são sintéticas. Todas as proposições que são contingentes ou a posteriori são tautologias.

a.      Analiticamente verdadeiro = tautológico = a priori = necessário.

b.      Sintético = a posteriori = contingente.

5.      Toda a ciência consiste num único sistema unificado com um único conjunto de leis naturais e fatos. Não há métodos ou sistemas separados nas ciências psicológicas ou sociais.

6.      A máxima suprema no filosofar científico é esta: Sempre que possível, entidades inferidas devem ser substituídas por construções lógicas.

7.      Enunciados éticos não têm conteúdo cognitvo, mas exprimem atitudes e emoções.

A metafísica tão requisitada se daria por uma ilusão de linguagem a ser resolvida pela análise lógica e mesmo números poderiam ser entidades metafísicas suspeitas, até que Wittgenstein postula esse discurso como tautologias formais sem qualquer peso ontológico ou referencial.

É o caso da substantivação de adjetivos, por exemplo, a rapidez. No discurso da linguagem a rapidez deveria se referir a algo, mas a que? Daí que rapidez se torna um universal sujeito a controvérsias mesmo por Russell, até que Wittgenstein os elimina na lógica simbólica. Discursos metafísicos intermináveis sobre a existência são eliminados com a lógica simbólica: “Zebras existem” passa a ser xZx: Existe um x tal que x é uma zebra.

Sobre o sexto princípio, trata-se do reducionismo de Russell, como no caso do discurso físico sobre objetos se transformarem em discurso sobre “dados dos sentidos”, mesmo que essa redução ainda fosse um ideal de difícil aplicação. Essa tradução é o fenomenalismo que foi abordado por Carnap como um discurso remetendo ao dado, reconstruído o conhecimento com base na experiência imediata (empirismo positivista).

O Fenomenalismo foi reduzido por Ayer a conteúdos sensoriais, dizer algo sobre “mesa” é dizer sobre um símbolo e em última instância sobre um conteúdo sensorial. O conteúdo sensorial é, então, uma construção lógica, uma proposição linguística e não parte da coisa material. Essa linguagem fenomenalista seria a linguagem da ciência unificada.[ii]

Uma contraposição ao fenomenalismo dentro do próprio Círculo de Viena veio do fisicalismo de Neurath que, com uma posição marxista, tratava da linguagem comum de objetos físicos. O fisicalismo substituía os conteúdos sensoriais por processos neurofisiológicos e comportamento.

Por fim, do sétimo se extrai o emotivismo e a proposta de que a ética não é normativa e não resulta em juízos de valor verificáveis, apenas justificáveis, e que por trás do discurso ético ainda poderia haver um ideal utilitarista ou de felicidade.




[i]
 Uma breve história da filosofia analítica de Russell a Rawls. Schwartz, Stephen P. São Paulo: Edições Loyola, 2017, p. 75 e ss.

[ii] Esses temas estão fortemente presentes no projeto husserliano, mas lá é voltado a vivências subjetivas e não a conteúdos sensoriais. Tema a ser melhor explorado: o fenomenalismo de Carnap e a fenomenologia de Husserl.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Meu ego

Eu queria falar um pouco sobre o meu ego, que não é o ego do egoísta ou do ególatra. “Fulano de tal tem um ego grande.” O que, de fato, é isso? Não sabemos. O ego que nos referimos aqui é o eu, o polo unificador de nossas vivências. Mas, ele existe?

A gente, nós, cada um é uma pessoa e sua vida, sua história. Mas, o que a unifica? Como eu posso dizer que eu sou o mesmo que eu era 20 anos atrás? Isso seria possível por esse polo, pelo ego.

Entretanto, eu não posso acreditar no ego e nem a ele confiar e confinar minha vida. É mais ou menos que nem o rio de Heráclito, sabe? O rio que passa é o mesmo ou é outro?

Eu não acredito no ego porque eu não acredito que sou o mesmo. Embora eu tenha certas características, algumas qualidades e tantos defeitos, isso só me da uma unidade externa e que é passageira e extremamente mutante e volátil.

Essa unidade externa eu não reconheço. Se eu me olho no espelho agora, eu não reconheço o eu de 20 ou 30 anos atrás. Talvez nem mesmo o eu de 10 anos atrás. E pudera, se eu me reconhecesse eu não teria evoluído, ou involuído, eu seria o mesmo.

Internamente muito menos e exatamente por um motivo semelhante: porque eu sou sempre tocado por algo, influenciado por algo, educado ou deseducado. Na luta interno-externo jogo fora o interno e confio piamente, plenamente no externo.

“Facilmente influenciável”, diria um amigo. “Não”, respondo eu. Facilmente domesticado, facilmente revoltado, atarantado, humilhado, encanado, desgastado, iluminado, aliviado, detonado. Facilmente externamente ado. Nada internamente.

Internamente oco, você, eu, tudo, todos. Tudo volatilidade e luta. Tudo mesmice. Não importa, a força interna pouco pode. A humanidade se faz pelo todo, embora cada qual em seu canto virtual de pandemia. Acreditar em algo diferente é metafísica.

 

 

sábado, 3 de outubro de 2020

Linguagem Referencial

Nascimento[i] trata de mostrar a problematização da referencialidade tanto em Wittgenstein quanto em Santo Agostinho.

1. Introdução. Nascimento define referencialidade (ou linguagem referencial) como a concepção de que a linguagem simboliza, ou seja, referencia coisas do mundo, das quais obtêm significado. Tal concepção, citada por Wittgenstein nas Investigações a partir de Santo Agostinho, foi usada no Tractatus como forma de resolver os problemas de filosofia pelo uso da linguagem representando fatos de forma lógica, ou seja, a partir de uma representação proposicional.

2. A Concepção do Tractatus. Então, é a forma lógica que relaciona pensamento e realidade pela afiguração e permite que a proposição tenha sentido[ii], embora a linguagem não seja uma cópia fiel do estado das coisas, pois ela apenas comporta possibilidades desses estados. Além disso, cada objeto deveria ter um símbolo associado e que determinasse seu significado.

E são os nomes a base para representar estados de coisas, a partir dessa forma lógica, pois eles permitem referenciar os objetos que não existem separadamente. Conforme 3.144: “Estados de coisas são descritas, não nomeadas. Nomes são como pontos, proposições são como flechas, elas têm sentido)”. E aqui vemos a capacidade representativa da linguagem.

Embora ressaltando a forma lógica proposicional no Tractatus, que é a linguagem referencial que interpreta as proposições da linguagem, Wittgenstein entende a linguagem cotidiana também com completude de sentido, porém com outro simbolismo. E, na virada filosófica, essa perspectiva impositiva da forma lógica será abandonada em prol de uma descrição da gramática do uso linguístico, da significação dentro de padrões de uso linguístico.

Assim, Wittgenstein amplia o rol da investigação linguística e se afasta de um ideal preconcebido, do dogmatismo. A descrição factual pela forma lógica dá lugar à investigação gramatical onde o uso de determinada forma depende de seu propósito. É uma investigação conceitual que evita possíveis confusões metafisicas do Tractatus pela imposição da forma lógica.[iii]

3. Problematização da concepção referencial. Wittgenstein traz a citação das Confissões de Agostinho no início das Investigações, através da qual o filósofo de Hipona conta sua experiência de aprendizado e compreensão pela designação dos objetos por palavras, concepção referencial que será criticada por Wittgenstein quando se trata de universalizar esse modelo.

Usando um exemplo de conversa entre operários de uma obra, Wittgenstein procura mostrar que as palavras denotam mais uma ordem que uma descrição de estado de coisas. Mais do que isso, as palavras não teriam um significado determinado, mas de acordo com seu uso linguístico e que se assemelha a uma caixa de ferramentas com variadas funções, sendo um deles o uso referencial.

Com relação à experiencia de aprendizado de Sto. Agostinho, Wittgenstein coloca que a função denotativa dos nomes tem um uso no ensino ostensivo que seria apenas uma preparação para o uso de uma palavra, mas que vai se definir com o significado que empregamos.

Retomando o exemplo da obra, um terceiro operário recém chegado só entenderia os sentidos das palavras a partir das circunstâncias, no jogo de linguagem. Só se mostra o que uma palavra designa pelo seu uso. Conforme citação: “Portanto, a estrutura de quando se diz ou se entende Traga-me uma laje como quatro palavras deriva, não de algo intrínseco ao funcionamento da mente do sujeito, mas da estrutura do jogo de linguagem do qual ele participa.”[iv]

De todo modo, as Investigações não contradizem totalmente as teses do Tractatus, mas as circunscreve e, quando o fazem, se aproximam de Agostinho, como por exemplo quando uma palavra tem significado enquanto seu referente existe. Porém é um uso limitado para todas as possibilidades de usos linguísticos dentro dos jogos de linguagem.

4. A concepção agostiniana de linguagem. Se Agostinho não propõe uma abordagem tão abrangente de linguagem, no De Magistro ele expõe inicialmente o uso referencial (de que as palavras são símbolos cujos significados se dão por se referirem a objetos) que será revisto posteriormente.

Ao analista a palavra nada, Agostinho diz que ela não é um sinal pois não significa coisa alguma, algo que não existe. Mesmo a palavra se não se refere a um objeto no mundo, embora se refira a um estado psicológico de dúvida. Tais exemplos apontam dificuldades na concepção referencial.

Dito isto, Nascimento reitera que Agostinho ainda se detém a exemplos de sintaxe ou analisando o que ocorre na mente do ouvinte, ao passo que em Wittgenstein a concepção pós-tractatus mostra uma concepção mais ampla de linguagem relacionado a definição de uso e multiplicidade de modelos funcionais, ou seja, no uso concreto.

5. Considerações finais. Nascimento mostra nesse artigo elementos importantes da virada filosófica de Wittgenstein, partindo das capacidades de representação da linguagem representando fatos da realidade e compartilhando sua estrutura lógica, em um simbolismo por demais reducionista.

Então ele parte desse modelo de linguagem clara para um modelo no qual a filosofia deve aclarar os padrões de uso e regras por uma investigação da gramática. Do mesmo Agostinho se questiona acerca de alguns usos referenciais o que faz com que ambos se aproximem na crítica a um modelo referencial que pudesse abarcar todas as possibilidades de uso linguísticos.



[i] O que se segue é um resumo de Agostinho e Wittgenstein: sobre a concepção de linguagem referencial, pelo link: http://www.revistas.usp.br/humanidades/article/download/154281/150503/. De Matheus Colares do Nascimento, acessado em 19/09/2020.

[iii] Ironicamente o que deveria ser combatido.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Wittgenstein: o paradigma e os usos empírico e analógico[i]

O paradigma

1. Wittgenstein introduz o conceito de paradigma por volta de 1930 em um contexto fenomenológico de apreender um dado imediato, imune à predicação, pela linguagem fenomenológica (uma linguagem primária) que tinha sido inviabilizada pelo simbolismo linguístico primário.

2. Visando incorporar esse dado simples à linguagem, o paradigma não é algo metafísico ou suprassensível, mas uma convenção normativa, condição de possibilidade como, por exemplo, regras linguísticas ou modelos padrão para cores e unidades de medida.

3. Através da ideia de práxis de linguagem, com rotinas de ação, hábitos linguísticos ou convenções sociais, Wittgenstein tenta, por um lado, ampliar as ligações de sentido excluídas do Tractatus e abordar o paradigma como elo entre linguagem e domínios extralinguísticos.  É o paradigma que permite extrapolar o uso lógico e referencial do Tractatus para diversas ações presentes na linguagem que constituem sentido, como uso de gestos ostensivos ou tabela de cores.

Os usos empírico e analógico

4. Se o paradigma tem a função de expressar a natureza ante predicativa dos dados da percepção no nível fenomenológico, ao se aplicar as palavras (nomes lógicos do Tractatus) teremos as predicações através dos conceitos.

5. Os paradigmas predicativos, considerados gramaticais, tem um uso descritivo externo quanto trata de propriedades empíricas de objetos, p.ex. "Esta mesa possui tais propriedades físicas" e outro analógico interno que corresponde a semelhança entre objetos., p.ex., "Esta mesa é como uma poltrona", não relacionado às propriedades.

6. No caso das analógicas, nós damos sentido à comparação, p.ex. "Esta mesa é como um elefante" e isso depende do tipo de comparação que fazemos bem como do grau de familiaridade do interlocutor, para que ele possa aceitar ou recusar. Não previamente existentes, elas se dão na prática linguística que pode ressaltar semelhanças não percebidas entre objetos e ter poder de persuasão.

7. Novos paradigmas sempre surgem trazendo conceitos como a psicanálise de Freud que traz um novo sistema de referência, porém corre-se o risco de tornarem-se normas definitivas. Wittgenstein ressalta que os jogos de linguagem são apenas objetos de comparação que trazem novas perspectivas, procurando evitar o dogmatismo. Assim ele inaugura uma filosofia terapêutica que busca desfazer confusões conceituais. Movendo-se do lógico para o analógico afasta-se de ideais trazendo outros pontos de vista.

Conclusões

8. Então os paradigmas são a base sobre o qual serão produzidos os enunciados descritivos e comparativos, ou seja, preparações para a construção de sentido. Os paradigmas são, antes de tudo, instrumentos linguísticos e apriorísticos, portanto não sensíveis pois são eles que definem as propriedades sensíveis. P.ex., sobre um paradigma de vermelho são descritas situações avermelhadas e comparações entre cores, isto é, se organiza a experiência para aplicação da linguagem.

9. É o paradigma que determina que é legitimo de ser usado na linguagem e a partir de convenções como as descrições e analogias. E, daí que novos paradigmas são novas maneiras de descrever e comparar objetos, criando novas possibilidades de semelhança nos jogos de linguagem.


[i] Conforme: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302001000200002, acessado em 19/09/2020. Itens 1.3 e 1.4.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Wittgenstein e a teoria da figuração

Das divergências do último e do primeiro Wittgenstein acerca da linguagem.

É comum um pensador ter rupturas ou divergências no cômputo geral de sua obra. Esse é o caso de Wittgenstein que, de acordo com Cavassane[i], tem uma abordagem diametralmente oposta a respeito da linguagem entre o Tractatus e as Investigações Filosóficas. Ao fim do Tractatus, redigido sob a influência de Russell e que aborda a natureza da proposição e da linguagem, Wittgenstein acreditou ter solucionado os problemas de filosofia [então suscitados por Russell]. Porém, após algum tempo afastado da filosofia, ele percebe que estava orientado a uma perspectiva da tradição filosófica pela via de Russell e que ali os problemas não estavam postos de maneira correta, portanto, decide criticar seu velho modo de pensar [e a tradição], agora nas Investigações.

O Tractatus Logico-Philosophicus. De acordo com Cavassane, a teoria da figuração é a que receberá a crítica mais contundente, posteriormente. Nela, Wittgenstein busca responder “Como é possível falar sobre o mundo?”. A teoria da figuração é uma teoria do significado linguístico, e Wittgenstein postula que é possível porque linguagem e mundo compartilham uma mesma estrutura lógica [a priori].

Ou seja, a linguagem afigura os fatos compartilhando a forma lógica, que é a forma do pensamento. Porém as frases da linguagem ordinária podem conter erros e, da análise lógica de uma frase, pode se extrair o pensamento nela contido. Daí surge a tese do indizível: somente podemos expressar fatos do mundo (sejam possíveis ou reais), conteúdos objetivos. Isso não vale para o subjetivo (ética, religião) nem formal (lógica, matemática), considerados místicos por Wittgenstein que crava: “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”.

A crítica ao Tractatus nas Investigações Filosóficas. Segundo Cavassane, Wittgenstein abrirá mão de dois pontos principais de sua teoria da figuração: o referencialismo para o qual uma palavra possui significado se ela corresponde a um objeto e o perfeccionismo lógico, trazendo a crença de que a linguagem representa o mundo fielmente e nisso consiste a verdade. Wittgenstein vai criticar o referencialismo argumentando que não é possível reduzir todas as palavras a nomes. Sobre o perfeccionismo lógico, o uso no Tractatus se se dá por palavras simples se referindo a objetos e isso traz a univocidade do significado que garante certa imutabilidade e evitando a perda de referência. Porém, Wittgenstein vai rever essa posição nas Investigações considerando a exatidão absoluta do significado um ideal inalcançável, já que dependente do contexto. E é essa impossibilidade de exatidão que implode a lógica como estrutura do pensamento, do mundo e da linguagem, colocando abaixo a teoria da figuração do Tractatus Logico-Philosophicus.

Wittgenstein localiza a correspondência entre objetos e palavras em Platão, que no Teeteto cita que nos referimos a elementos primitivos por seus nomes e que ela forçaria o isomorfismo. Ainda, a correspondência se da a partir dos substantivos, parte pequena das palavras. Mais além, a ideia do objeto simples parece ser criada a priori para se encontrar por conseguinte a proposição e sua análise.

Considerações finais. Ao se perguntar sobre como é possível falar sobre o mundo, Wittgenstein responde com a teoria da figuração, onde as palavras afiguram objetos e há um isomorfismo lógico entre frases e fatos. Porém, posteriormente, Wittgenstein percebe o viés orientativo da teoria da figuração baseado na tradição e que sua resolução não contribuiu para a verdadeira compreensão dos fenômenos da linguagem, então ele faz a crítica do pensamento inicial. Agora, não há uma exatidão entre mundo e linguagem e isso implode a possibilidade de mapeamento lógico. Deste modo, o que constitui a ruptura entre o primeiro e o segundo Wittgenstein é uma mudança de método: “O método puramente apriorístico do Tractatus é submetido a crítica e agora recomenda (em certo sentido) o método a posteriori de investigar os fenômenos reais da linguagem.”. Se afastando de Platão e da tradição, o segundo Wittgenstein se afasta de conceito e se aproxima do uso cotidiano.



[i] O que se segue é conforme A crítica de Wittgenstein ao seu Tractatus nas Investigações Filosóficas, acessado em 07/09/2020 no link: http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/ric/article/view/337. Artigo de Ricardo Peraça Cavassane.

domingo, 6 de setembro de 2020

Trazendo a segunda pessoa para o debate

A questão da comunicação é algo que sempre me preocupou. Eu falo e você me escuta, mas entende? Sim, somos feitos da mesma estrutura física e racional, então isso é bem possível. Mas há dois problemas essenciais: 1.) o problema cultural e 2.) “como” a compreensão de fato ocorre dentro de nós, do ouvido para o cérebro, para os neurônios etc. Além disso, entendo que, sim, é um problema fortemente relacionado à filosofia de mente e afins.

Dito isto, vamos falar da segunda pessoa. O ensaio que Waldomiro J. Silva Filho nos traz trata dessa concepção em Donald Davidson[i] e explora algumas condições na qual dois agentes interagem em uma conversa e a justificação de um dos lados no sentido de afirmar um bem epistêmico. A questão chave da conversa é: “nós queremos entender as declarações [utterances] reais dos outros e nós queremos que nossas declarações sejam entendidas”.

Então, na dinâmica de uma interação conversacional, trata-se de entender a “segunda pessoa” como interlocutor com o qual não compartilhamos uma regra ou convenção linguística de antemão. Davidson parte de uma questão empírica de quantos falantes são necessários para que haja uma interação, ao invés da questão abstrata das condições de uso da linguagem. Seu “ponto de vista da segunda pessoa”, segundo Waldomiro, é o do intérprete que é interpelado pelo falante e que concebe que aquele tem a intenção de se fazer entender de modo significativo. Isso quer dizer que são necessárias pelo menos duas pessoas para haver a linguagem.

Waldomiro recupera a argumentação de Wittgenstein de que o significado não é algo interno à nossa mente. A partir daí, Davidson traz a triangulação onde os conteúdos semânticos estão no meio-ambiente, mas o falante deve crer [epistemicamente] no significado do que diz. Na conversação, há a determinação de um objeto triangulado por duas (ou mais) pessoas – e aí não se concebe a interação de uma pessoa consigo mesma. Segundo Davidson, é dessa triangulação que surge a objetividade: há crenças que designam objetos no espaço público, ou seja, pensamentos que são individualizados. E é só com a segunda pessoa que sabemos que um objeto pode ser enunciado como verdade, solapando o solipsismo.

Bem, se não é necessária uma convenção linguística de antemão, o que trará certeza no compartilhamento de uma verdade objetiva entre os falantes é a "interpretação radical". Com ela, há uma interpretação a partir do zero, sem conhecimento prévio de linguagem e o acordo de crenças vai se estabelecendo em uma dialética eu-tu, em que cada um fornece ao outro algo de compreensível. A condição da conversa é se fazer intencionalmente interpretável e não seguir uma regra linguística. Outro ponto importante é que a produção de enunciados requer a diferenciação entre "o que é acreditado" e "o que é o caso". Por isso, mais do que um processo empírico, a conversa é um processo investigativo de produção do conhecimento que caminha entre acordos e desacordos sobre o que é o caso.[ii]

No início da conversa, se os interlocutores não sabem se seus signos possuem mesmo valor semântico e de verdade, há necessidade de investigação. Isto é, há um movimento dialético no diálogo onde crenças divergentes vão sendo justificadas e se decide o que é epistemicamente justo fazer. Assim, o conceito de segunda pessoa, na abordagem de Davidson, nos parece central no uso da linguagem e na investigação de disputas epistêmicas onde se é imprescindível esclarecer “o que é o caso”, ponto esse ainda a ser explorado mais detidamente.



[i] Conforme Ensaio sobre a segunda pessoa. Acessado do site em 25/08/2020 pelo link: https://periodicos.ufpe.br/revistas/perspectivafilosofica/article/view/247945.

[ii] Sobre proposições e o que é o caso, em Wittgenstein, o pouco que sei, trata-se de uma mediação no que creio que e falo e no que se dá no mundo. A ser investigado.