quinta-feira, 28 de abril de 2022

Frege, filósofo da linguagem?

Traz um panorama das preocupações de Gottlob Frege[i]

Filho argumenta que Frege não deve ser considerado um filósofo da linguagem porque a questão do significado não é central na sua filosofia. De acordo com o autor, Frege tem um projeto de fundamentar a aritmética na lógica, projeto que é um dos precursores da lógica moderna e conhecido como logicismo[ii]. Além disso, essa proposta viria na esteira kantiana de tratar a matemática como um conhecimento a priori, mas compostos de intuições puras e, nesse sentido, com proposições sintéticas a priori. Entretanto, para Frege, a geometria, sim, dependeria de intuições puras, haja vista a sua dependência espacial, já a aritmética, caso rompendo com essa premissa, seria feita de proposições analíticas.

Isso posto, não se pode negar a contribuição de Frege para a filosofia da linguagem, embora seu conhecido artigo Sobre o sentido e a referência busque mais resolver problemas de sua lógica formal do que estabelecer uma teoria semântica. Em SSR, sempre de acordo com Filho, Frege investiga se a identidade é uma relação entre objetos ou entre os nomes dos objetos, para concluir que há problemas em ambos os casos, tornando-se necessário lançar mão do sentido. Pois bem, nas sentenças:

(1) A Estrela da Manhã é a Estrela da Manhã

(2) A Estrela da Manhã é a Estrela da Tarde

Temos que, (1) é mera tautologia, mas (2) traz uma informação nova, nada menos que uma descoberta astronômica e, aí, tais sentenças têm conteúdo cognitivo diferente. Bem, se a identidade fosse apenas de objetos, qual seja, do tipo a = a, estaríamos falando sempre de Vênus, mas isso não explicaria a diferença de conteúdo cognitivo entre ambas. Então, a identidade de objetos não da conta dessas sentenças de identidade que se referem ao mesmo objeto, mas que tem conteúdo cognitivo diverso.

Por outro lado, a identidade também não poderia ser uma identidade entre os nomes de objetos, pois essas atribuições podem ser arbitrárias e não trazem conteúdo cognitivo relevante como em 4 = IV ou 4 = <símbolo de espadas>. Já em 4 = <raiz quadrada de 16> há um conteúdo cognitivo relevante, muito além da trivialidade de a = a ou da arbitrariedade que acabamos de mencionar. Então, nem o símbolo (o nome do objeto), nem a referência (o objeto) são suficientes para a identidade, donde surge o sentido como modos diferentes de apresentar um mesmo objeto. Conforme Filho: “Agora, de SSR em diante, é a noção referência que cumpre o papel de valor semântico das expressões da linguagem formal de Frege” (p. 13). Como ele acaba de realizar através do uso dos nomes próprios para fazer a distinção entre sentido e referência.

Porém, o que traz complicações ao tomar Frege para a realização de análises de linguagem é que, na continuação de SSR e conforme explica Filho, Frege usará o valor de verdade[iii] como para o papel de referência para sentenças, ou seja, seu valor, mas isso atende a um ponto de vista da linguagem formal. Ora, isso faz com que:

(3) Aristóteles é grego e

(4) 2 + 2 = 4

Tenham a mesma referência, soando estranho do ponto de vista de uma teoria do significado. Mais ainda, como valores de verdade são objetos, há uma equiparação entre sentenças e nomes próprios que torna essa teoria indesejável do ponto de vista da linguagem.



[i] Resgata trechos da aula inaugural do curso de Filosofia da UFSJ, ministrada no dia 21 de agosto de 2008 pelo professor Abílio Rodrigues Filho. Acesso em 09/04/2022 pelo endereço eletrônico: https://ufsj.edu.br/portal-repositorio/File/Ab%EDlio%20Rodrigues.pdf.

[ii] Nosso intuito inicial era começar um estudo mais aprofundado da filosofia da linguagem por Gottlob Frege, que parece ser o pai da lógica moderna, até nos depararmos com esse texto que estamos tratando.

[iii] Na Conceitografia (CG) Frege tentou usar conteúdos conceituais como valores semânticos de sentenças, mas sem sucesso. A noção de conteúdo conceitual versa que duas sentenças têm o mesmo conteúdo conceitual quando são intersubstituíveis, porém essa tese apresentou inúmeros problemas que viriam a ser resolvidos na SSR. Vale ressaltar que a CG cria uma linguagem formal como um sistema completo de lógica proposicional e de predicados jamais visto desde Aristóteles.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

A nossa teoria sobre como o mundo é

Introdução e os principais pontos de Linguagem e Verdade[i]

Pettersen inicia a aula com uma citação de Palavra e Objeto (1960), da p. 13, que trata da linguagem como arte social, construída intersubjetivamente e cujo significado provém do que é expresso e observável. Ou seja, a linguagem é pública e mesmo a filosofia se expressa nessa linguagem, na forma como falamos e que a molda, e que também molda as possibilidades de refletir, de negar, etc. A filosofia depende da língua falada e da linguagem como ordenadora do pensamento, conforme ressalta Pettersen, o que vai contra uma ideia de filosofia universal. A questão da intersubjetividade ressalta que somos pautados pelos interlocutores e dentro de um contexto cuja chave de leitura / tradução deve ser dada para que nosso pensamento se torne acessível.

Segundo Pettersen, Quine pretende responder como entender o pensamento de um grupo completamente distinto do nosso e que se expressa em uma linguagem que não conhecemos, no que se chama tradução radical. Ele verifica a radicalidade do pensamento e de como ele está expresso em uma língua.

Resumidamente, o que veremos aqui é o primeiro capítulo, no qual Quine passa do como aprendemos a linguagem até o discurso científico, apoiando-se em dois princípios: o empirismo, que é fonte de evidência e o behaviorismo. Já no segundo capítulo, em uma próxima resenha, Quine veremos o argumento da tradução radical, ou seja, de como comunicar o discurso para outra pessoa, da qual não temos conhecimento prévio.

Então, o capítulo 1, cujo título é Linguagem e Verdade, já mostra a busca de Quine por proposições verdadeiras. Ele parte do conhecimento empírico por meio de nossa superfície sensorial e, aí, começa o processo de entificação, bem como o aprendizado da linguagem por observações da pronuncia alheia. E esse empirismo, de acordo com Pettersen, é um antidoto ao relativismo ou incerteza e, sendo base do conhecimento, é fundante da linguagem comum e da ciência, que é evolução autoconsciente do senso comum (e também a filosofia como continuação da ciência). Se a linguagem depende do contexto, conforme Wittgenstein, Quine acrescenta que é necessária uma fonte de validação.

Já sobre o behaviorismo, um “ai” pode ser aprendido pela sociedade como dor e, nesse caso, gera uma recompensa de nossa parte ou se percebemos um blefe, por exemplo, pode ocorrer penalização. Lembremos do reflexo condicionado de Pavlov[ii] com seu cão – aprendizado por repetição e Skinner que baseia a tese de comportamento humano no behaviorismo, sendo seguido por Quine.

Isso posto, há uma triangulação (professor-texto-aluno) para que o aprendizado ocorra, há três aspectos:

1. Do ponto de vista do aluno, ele percebe as coisas do mundo de maneira similar (empírico).

2. As coisas também são similares do ponto de vista do aluno e do professor (intersubjetivo).

3. Professor possa corrige e incentiva o aluno (recompensa-punição).

Entretanto, há uma uniformidade linguística, já que a forma externa do falar é igual, embora a parte interna de cada um, do aprendizado, seja diversa[iii]. Quer dizer, temos a mesma percepção de mundo. E vamos aprendendo a partir de palavras simples, que são unidades, que depois vão se juntando em frases mais complexas. Então, frases mais longas são feitas de fragmentos, alguns já aprendidos e outros que vão sendo aprendidos e testados, verificados. Já o aprendizado por ostensão[iv] necessita de conhecimento de fundo, de entender o sinal, etc. Se o padrão de condicionamento varia entre cada pessoa, há pontos de congruência em geral.

Ora, se o caminho de aprendizado da linguagem comum é aquele experimental, por que o da filosofia não seria? Bem, para Quine aprendemos a linguagem a partir de frases inteiras, contextualmente ou por analogia ou, por fim, por descrição. Isto é, aprender uma linguagem é aprender uma teoria sobre como o mundo é. A língua portuguesa nos dá uma visão de mundo, assim como outras línguas dão visões de mundo diferentes. A visão de mundo depende do conhecimento prévio, mesmo entre pessoas da mesma língua de acordo com suas vivências.

Quine pontua que há aspectos da linguagem que estão afastados da experiência[v], mas as porções ligadas ao mundo nos permitem entrar no campo da linguagem, nos comunicar e atingir a objetividade necessária. A partir daí, toda a linguagem deve ser organizada em nossa teoria do mundo, da mesma forma que um cientista, com simplicidade (organizar o conhecimento da maneira mais simples e, aqui, Pettersen lembra da navalha de Ockham), familiaridade, que é: explicar novas questões a partir das velhas leis familiares de nossa visão de mundo e, por fim, a razão suficiente, que se dá por meio de uma explicação racional, conforme herança de Leibniz, informa Pettersen. 

Por fim, Quine ressalta que não reduziu sua ambição de modo que caia em uma doutrina relativista, mas continua dentro de uma teoria de mundo particular baseada nas crenças do momento e, com o uso do método científico, aperfeiçoando e sendo capaz de julgar a verdade seriamente, com as devidas correções que sempre hão de se fazerem necessárias. Se a melhor ferramenta que temos para falar sobre o mundo natural é a ciência e a que traz as melhores evidências de explicação, sigamos com o vínculo empirismo.


[i] Resenha de Quine - Capítulo I de Palavra e Objeto, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=u-n_XW40_5s, https://www.youtube.com/watch?v=E3ClMyjcpkU e https://www.youtube.com/watch?v=elL_xRAeRrw. Prof. Bruno Pettersen. Willard van Orman Quine (1908-2000). Alguns trabalhos: Dois Dogmas do Empirismo, Sobre o que há, Relatividade Ontológica, e Epistemologia Naturalizada.

[ii] “Ivan Pavlov, um médico russo do início do século 20, treinou cachorros para que eles ficassem com água na boca sem que houvesse nenhuma comida por perto. Funcionava assim: toda vez que os bichos eram alimentados, o médico tocava uma sineta. Com o tempo, os cães começaram a associar as badaladas à comida. Conforme Superinteressante: https://super.abril.com.br/ciencia/o-que-e-o-cao-de-pavlov/.

[iii] As árvores possuem as mesmas formas, vistas de longe, mas os galhos internos são diferentes.

[iv] Ato ou efeito de mostrar, https://www.dicio.com.br/ostensao/.

[v] Em Hume todo conhecimento vinha da experiência, no esquema impressão-ideia, o que não é o caso de Quine que trabalha no campo da linguagem, conforme nota da aula. 

terça-feira, 5 de abril de 2022

A pedra fundadora da sociologia da ciência

Visa conceituar o reportório usado por Merton ao inserir a ciência como objeto de investigação sociológica[i]

Shinn e Ragouet conceituam a abordagem de uma ciência funcionalista e estratificada como tendo uma perspectiva sociológica diferenciacionista. Isso porque, nessa visão, não basta, por exemplo, elencar os pais da ciência moderna ou as teorias científicas, suas ideias e fatos, já que tudo isso, por si só, não explica o desenvolvimento da ciência. Para o sociólogo da ciência, dentro da perspectiva funcionalista, é recorrendo ao processo de institucionalização da ciência, com suas normas e um sistema de retribuição, que se pode explicar a existência da ciência.

A sociologia da ciência nasce a partir da tese de doutorado de Robert Merton, em 1938, que analisa, de um ponto de vista sociológico, a revolução científica que ocorreu no final do século XVII, na Inglaterra. Naquele contexto, segundo Merton, a ciência surge como um subsistema social quase autônomo, baseado em valores e normas específicos que demarcam suas fronteiras. Há organismos como a Royal Society, fundada em 1662, que constituem uma comunidade científica dividida em papéis científicos que subordinam as descobertas e teorias científicas, fazendo com que os trabalhos de cientistas como Newton e Boyle sejam insuficientes para operar a transformação do modo de conhecimento da sociedade.

Ora, a Royal Society Londrina é um espaço que permite o estabelecimento de procedimentos, modelos de excelência e protocolos de avaliação que trazem a profissionalização científica e, com isso, sua autonomia. Porém, há dois fatores da época que impulsionam a ciência: por um lado, as transformações econômicas de uma nação que tem ambições imperialistas fazem com que a ciência responda a desafios tecnológicos; por outro, o puritanismo inglês que, embora não sendo uma condição social necessária, conjuga valores com a ciência, como: revelar a ordem da natureza que seria reflexo da ordem divina, se orientar por atitudes como rigor, esforço e aprendizado, pelo conhecimento, reflexão e crítica, além da noção de realização material. Tudo isso gera um ambiente ideológico que favorece o florescimento da ciência.

E são as instituições, academias de ciências que também aparecem em outros países que trazem um papel regulador dos critérios de certificação científica e validação, bem como um sistema de retribuição e premiação que instaura uma hierarquia dentro das comunidades científicas tornando a ciência sistema distinto e relativamente autônomo, que pode resistir à intrusões e pressões de atores políticos e econômicos.

Para Merton, a comunidade científica se divide em quatro papéis: a maior parte entre pesquisadores e professores (pesquisa e ensino), os mais seniores mais participantes da administração e o papel de sentinela que é compartilhado por todos e diz respeito à definição da orientação da pesquisa, avaliação dos resultados e controle dos atores. Em um artigo de 1942, Merton define as quatro normas que constituem o ethos da ciência: o universalismo, referente aos critérios impessoais que devem ser perseguidos pelos cientistas; o comunalismo, que visa o bem público e contrário à ideia de propriedade intelectual; o desinteresse, isto é, procura pela verdade, honestidade e intersubjetividade; e o ceticismo organizado que rejeita a autoridade e aberto a críticas.

São essas normas que fazem da ciência um sistema distinto assegurando-lhe estabilidade e regulação. Isto, segundo alguns diferenciacionistas, seriam normas da ciência pura em oposição à ciência aplicada guiada pela patente ou segredo industrial inserida em um sistema autoritário de relações e sob a forma de uma expertise técnica destinada a resolver problemas pontuais associados ao lucro empresarial. Porém, enfatizam os autores, nem sempre os pesquisadores se guiam por tais normas citando como exemplo o Projeto Apolo, nos anos 60, no qual os cientistas eram movidos pelo ganho pessoal e ambição, colocando em dúvida a existência do ethos científico. Então, elas tenderiam a serem normas mais ideais do que operatórias.



[i] Controvérsias sobre a ciência: por uma sociologia transversalista da atividade científica. Terry Shinn e Pascal Ragouet. Tradução de Pablo Rubén Mariconda e Sylvia Gemignani Garcia. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia: Editora 34, 2008. Páginas 14 a 23.