terça-feira, 5 de abril de 2022

A pedra fundadora da sociologia da ciência

Visa conceituar o reportório usado por Merton ao inserir a ciência como objeto de investigação sociológica[i]

Shinn e Ragouet conceituam a abordagem de uma ciência funcionalista e estratificada como tendo uma perspectiva sociológica diferenciacionista. Isso porque, nessa visão, não basta, por exemplo, elencar os pais da ciência moderna ou as teorias científicas, suas ideias e fatos, já que tudo isso, por si só, não explica o desenvolvimento da ciência. Para o sociólogo da ciência, dentro da perspectiva funcionalista, é recorrendo ao processo de institucionalização da ciência, com suas normas e um sistema de retribuição, que se pode explicar a existência da ciência.

A sociologia da ciência nasce a partir da tese de doutorado de Robert Merton, em 1938, que analisa, de um ponto de vista sociológico, a revolução científica que ocorreu no final do século XVII, na Inglaterra. Naquele contexto, segundo Merton, a ciência surge como um subsistema social quase autônomo, baseado em valores e normas específicos que demarcam suas fronteiras. Há organismos como a Royal Society, fundada em 1662, que constituem uma comunidade científica dividida em papéis científicos que subordinam as descobertas e teorias científicas, fazendo com que os trabalhos de cientistas como Newton e Boyle sejam insuficientes para operar a transformação do modo de conhecimento da sociedade.

Ora, a Royal Society Londrina é um espaço que permite o estabelecimento de procedimentos, modelos de excelência e protocolos de avaliação que trazem a profissionalização científica e, com isso, sua autonomia. Porém, há dois fatores da época que impulsionam a ciência: por um lado, as transformações econômicas de uma nação que tem ambições imperialistas fazem com que a ciência responda a desafios tecnológicos; por outro, o puritanismo inglês que, embora não sendo uma condição social necessária, conjuga valores com a ciência, como: revelar a ordem da natureza que seria reflexo da ordem divina, se orientar por atitudes como rigor, esforço e aprendizado, pelo conhecimento, reflexão e crítica, além da noção de realização material. Tudo isso gera um ambiente ideológico que favorece o florescimento da ciência.

E são as instituições, academias de ciências que também aparecem em outros países que trazem um papel regulador dos critérios de certificação científica e validação, bem como um sistema de retribuição e premiação que instaura uma hierarquia dentro das comunidades científicas tornando a ciência sistema distinto e relativamente autônomo, que pode resistir à intrusões e pressões de atores políticos e econômicos.

Para Merton, a comunidade científica se divide em quatro papéis: a maior parte entre pesquisadores e professores (pesquisa e ensino), os mais seniores mais participantes da administração e o papel de sentinela que é compartilhado por todos e diz respeito à definição da orientação da pesquisa, avaliação dos resultados e controle dos atores. Em um artigo de 1942, Merton define as quatro normas que constituem o ethos da ciência: o universalismo, referente aos critérios impessoais que devem ser perseguidos pelos cientistas; o comunalismo, que visa o bem público e contrário à ideia de propriedade intelectual; o desinteresse, isto é, procura pela verdade, honestidade e intersubjetividade; e o ceticismo organizado que rejeita a autoridade e aberto a críticas.

São essas normas que fazem da ciência um sistema distinto assegurando-lhe estabilidade e regulação. Isto, segundo alguns diferenciacionistas, seriam normas da ciência pura em oposição à ciência aplicada guiada pela patente ou segredo industrial inserida em um sistema autoritário de relações e sob a forma de uma expertise técnica destinada a resolver problemas pontuais associados ao lucro empresarial. Porém, enfatizam os autores, nem sempre os pesquisadores se guiam por tais normas citando como exemplo o Projeto Apolo, nos anos 60, no qual os cientistas eram movidos pelo ganho pessoal e ambição, colocando em dúvida a existência do ethos científico. Então, elas tenderiam a serem normas mais ideais do que operatórias.



[i] Controvérsias sobre a ciência: por uma sociologia transversalista da atividade científica. Terry Shinn e Pascal Ragouet. Tradução de Pablo Rubén Mariconda e Sylvia Gemignani Garcia. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia: Editora 34, 2008. Páginas 14 a 23.

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