Visa conceituar o reportório usado por Merton ao inserir
a ciência como objeto de investigação sociológica[i]
Shinn e Ragouet conceituam a abordagem de
uma ciência funcionalista e estratificada como tendo uma perspectiva sociológica
diferenciacionista. Isso porque, nessa visão, não basta, por exemplo, elencar
os pais da ciência moderna ou as teorias científicas, suas ideias e fatos, já
que tudo isso, por si só, não explica o desenvolvimento da ciência. Para o sociólogo
da ciência, dentro da perspectiva funcionalista, é recorrendo ao processo de
institucionalização da ciência, com suas normas e um sistema de retribuição,
que se pode explicar a existência da ciência.
A sociologia da ciência nasce a partir da
tese de doutorado de Robert Merton, em 1938, que analisa, de um ponto de vista
sociológico, a revolução científica que ocorreu no final do século XVII, na Inglaterra.
Naquele contexto, segundo Merton, a ciência surge como um subsistema social
quase autônomo, baseado em valores e normas específicos que demarcam suas fronteiras.
Há organismos como a Royal Society, fundada em 1662, que constituem uma comunidade
científica dividida em papéis científicos que subordinam as descobertas e teorias
científicas, fazendo com que os trabalhos de cientistas como Newton e Boyle sejam
insuficientes para operar a transformação do modo de conhecimento da sociedade.
Ora, a Royal Society Londrina é um espaço
que permite o estabelecimento de procedimentos, modelos de excelência e
protocolos de avaliação que trazem a profissionalização científica e, com isso,
sua autonomia. Porém, há dois fatores da época que impulsionam a ciência: por
um lado, as transformações econômicas de uma nação que tem ambições imperialistas
fazem com que a ciência responda a desafios tecnológicos; por outro, o puritanismo inglês
que, embora não sendo uma condição social necessária, conjuga valores com a
ciência, como: revelar a ordem da natureza que seria reflexo da ordem divina, se orientar por atitudes
como rigor, esforço e aprendizado, pelo conhecimento, reflexão e crítica, além da
noção de realização material. Tudo isso gera um ambiente ideológico que favorece
o florescimento da ciência.
E são as instituições, academias de
ciências que também aparecem em outros países que trazem um papel regulador dos
critérios de certificação científica e validação, bem como um sistema de retribuição e premiação
que instaura uma hierarquia dentro das comunidades científicas tornando a ciência
sistema distinto e relativamente autônomo, que pode resistir à intrusões e pressões
de atores políticos e econômicos.
Para Merton, a comunidade científica se
divide em quatro papéis: a maior parte entre pesquisadores e professores
(pesquisa e ensino), os mais seniores mais participantes da administração
e o papel de sentinela que é compartilhado por todos e diz respeito à
definição da orientação da pesquisa, avaliação dos resultados e controle dos
atores. Em um artigo de 1942, Merton define as quatro normas que constituem o ethos
da ciência: o universalismo, referente aos critérios impessoais que devem
ser perseguidos pelos cientistas; o comunalismo, que visa o bem público
e contrário à ideia de propriedade intelectual; o desinteresse, isto é,
procura pela verdade, honestidade e intersubjetividade; e o ceticismo organizado
que rejeita a autoridade e aberto a críticas.
São essas normas que fazem da ciência um
sistema distinto assegurando-lhe estabilidade e regulação. Isto, segundo alguns
diferenciacionistas, seriam normas da ciência pura em oposição à ciência
aplicada guiada pela patente ou segredo industrial inserida em um sistema autoritário
de relações e sob a forma de uma expertise técnica destinada a resolver
problemas pontuais associados ao lucro empresarial. Porém, enfatizam os autores,
nem sempre os pesquisadores se guiam por tais normas citando como exemplo o Projeto
Apolo, nos anos 60, no qual os cientistas eram movidos pelo ganho pessoal e
ambição, colocando em dúvida a existência do ethos científico. Então, elas
tenderiam a serem normas mais ideais do que operatórias.
[i] Controvérsias sobre a ciência: por
uma sociologia transversalista da atividade científica. Terry Shinn e Pascal
Ragouet. Tradução de Pablo Rubén Mariconda e Sylvia Gemignani Garcia. São Paulo:
Associação Filosófica Scientiae Studia: Editora 34, 2008. Páginas 14 a 23.
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