quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Reclusão de fim de ano

São 17h30 do dia 31 de dezembro de 2015. Abandonei por 20 minutos o cativeiro (muito aconchegante por sinal) ao qual estou recluso nesses três dias em virtude de dores abdominais e sintomas provenientes. Ao fazê-lo, percebi que alguém se vai: 2015. As casas de comércio, muitas delas, já estavam com as portas fechadas, o movimento de automóveis estava bem retraído e poucos transeuntes se aventuravam por aí (alguns já de branco). Do que me indaguei: é possível falar em fim de ano?
Um ano é uma convenção unilateral e temporal, decreto lei que dita os ciclos de estudo, trabalho, a nossa idade individual e coletiva; regulamento que determina um ritual de virada, de sai-ano-entra-ano (sorte que não fiquei muito tempo na rua, porque agora cai uma tremenda chuva). Pois bem, dada essa demarcação temporal do ano, se ganha a reboque sua demarcação final, o que acontecerá daqui aproximadamente 7 horas. Então, convencionalmente, fala-se de fim de ano, escreve-se sobre ele.
Fisicamente percebemos o passar do tempo, sentimos que envelhecemos, percebemos que nossa moda passa e constatamos que os mais novos estão crescendo. Mas, precisamos do ciclo? Precisamos de um calendário novo? É assim que vivemos: repetindo. Toda projeção futura será revista em um ano, nossas ações têm data de validade. Mais um dia 31 de dezembro está por terminar e esperamos, ansiosamente, agora a pouco tempo, por um suspiro fatalista que encerre esse ciclo e abra um outro. E o novo ciclo chegando já será velho porque já temos as datas previstas para os eventos, já calculamos os gastos das contas que temos, enfim, já nos planejamos.
Chatinho isso, né? Nietzsche trouxe à pauta o eterno retorno, que não ficou eternamente esquecido: há uma quantidade limite de energia que, quando é atingida, tudo recomeça. Sabe-se lá em qual rodada de recomeço estamos. Eu aqui escrevendo, você aí lendo, esses fatos já aconteceram e acontecerão novamente e queremos isso: tudo igual, exatamente igual (sem entrar no mérito da igualdade separada pelo tempo, se é possível ou não). Tempo eterno, situações repetitivas, repetidas, ó ciclo! O eterno retorno esconde uma ética: viver o mesmo exatamente do mesmo modo, nem mais, nem menos. Queremos viver o mesmo porque gostamos de como somos, do que somos, vamos nos querer sempre assim.
Percebo que a chuva já passou e volto ao meu "passeio teste" de fim de ano de minutos atrás (teste bem sucedido: sinto que vou me despedir do amado e eterno 2015 na rua...). No passeio, eu vi aquelas coisas e senti algo: 2015 me tocou, me disse que ia embora. Eu fiquei atônito, não sabia se pedia para ele ficar mais um pouco, ou que fosse logo! Não sabia se ria ou se chorava, não sabia se olhava para o céu, para as pessoas ou para o nada. Eu senti 2015, física e psiquicamente, eu percebi que uma convenção humana - um ano - pode se tornar um fato e o quão perverso, poderoso e perigoso isso pode ser. É possível falar em fim de ano? Eu estava inebriado, queria viver aquele momento como se fosse o único, mas sabendo que ele retornará daqui a um ano. Queria que durasse mais porque eu tinha muito a refletir e a dizer sobre o fim de ano, mas compreendi que o tempo segue e nós seguimos com ele e que esse fim de ano é só uma noite a mais, só umas horas a mais. Sei também que muitos trabalharão e não presenciarão esse momento da maneira que gostariam. Enfim, sei que esse momento é como outro qualquer (ou não é?). Pensando bem, vou sair da reclusão e pensar em uma boa resolução de fim de ano...

domingo, 27 de dezembro de 2015

Da noção de utilidade humana*


Uma investigação é um método filosófico e científico primordial para abordagem de um determinado assunto. Mas uma investigação sempre é feita por um humano. No capítulo 1 da Ética, Espinosa trata de Deus como causa necessária de todas as coisas. Na verdade, para Espinosa só há Deus, tudo emana dele, tudo está nele, necessariamente. Deus não pensa, Deus é, infinitamente. Não há contingência, só há o que não conhecemos (certas coisas são impossíveis para nós). Mas, como conceituamos as coisas oriundas de Deus?
O homem vê a natureza, o homem sente, vive. Para o homem há uma concepção e uma noção fundamental: a de utilidade. Tudo tem um fim, uma finalidade. E uma finalidade humana. Então, temos uma certa maneira de ver as coisas, proveniente de nossa imaginação. A natureza está aí para nos propiciar algo ou para nos trazer um problema, uma dificuldade. Classificamos as coisas entre boas ou ruins, belas ou feias, fáceis ou difíceis – essa classificação é a nossa noção de utilidade humana. O valor das coisas decorre do que colocamos nas coisas a partir de nossa noção de utilidade, pela nossa imaginação. Colocamos um próprio valor nas coisas e isso tudo é criação nossa.
Essa forma de “ver” o mundo se fundamenta na utilidade. Mas a utilidade é uma função que aparece em cada coisa, em cada fenômeno, seja natural ou artificial. Somos orientados por uma finalidade, vivemos e fazemos isso ou aquilo, adquirimos tal coisa, produzimos, destruímos, tudo baseado na noção de utilidade. Essa noção de utilidade caminha no sentido inverso, da finalidade para a coisa, do efeito para a causa. A água existe para tal coisa, a água não é simplesmente algo, independente de qualquer utilidade. O fato de nos orientarmos por essa noção de finalidade nos impõe tentativas de explicação que nunca serão convincentes. Mas somos assim e, sabendo disso, deveríamos nos precaver dessa caraterística nossa e obstruir qualquer tentativa de explicação. As coisas, então, seriam de Deus e não se modelariam há uma caraterística humana de finalidade. As coisas de Deus estão aí antes de nós, mas como sempre achamos que tudo gira em torno do nosso umbigo. A noção de utilidade inverte a ordem temporal e causal da realidade, do mundo, de nós. Deveríamos, então, ir em busca de outro princípio, outro fundamento, que não esse da utilidade, da finalidade, e tentar fundamentar nossa existência de outro ponto de vista, trazendo outras consequências. 
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* Lemos muito rapidamente o primeiro capítulo da Ética de Espinosa (3a edição, tradução e notas de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013): suas definições, axiomas, proposições, demonstrações, corolários, escólios e o apêndice. Colocaremos bem brevemente nossa primeira impressão, considerando: 1) leituras rápidas e superficiais podem gerar análises superficiais e distorcidas; 2) superficial não é supérfluo; 3) nossa capacidade de concentração atual decaiu bastante - há muito barulho no mundo, há muitos objetos atraentes; 4) uma primeira impressão é sempre um recado puro, sem ruídos, não importando muito o resultado final; 5) sempre poderão ser realizadas novas leituras, uma resenha aqui, um comentador acolá e se chega a uma aproximação com a opinião geral, relativa à primeira impressão.

sábado, 26 de dezembro de 2015

Platão à guisa de introdução

Teoria do Conhecimento. A pergunta socrática "O que é?" produz um preenchimento metafísico, a Teoria das Formas. O que é a coragem? Não conseguimos definir "a coragem", apenas coisas corajosas. O que é o belo? Vejo um quadro belo, um dia belo, mas o que é o belo em si? A coragem em si, o belo em si, é a forma, a ideia das quais as coisas sensíveis e individuais (homem corajoso, pássaro belo) participam. Ou seja, cada qualidade que temos ou vemos se origina a partir de uma forma (abstrata). Assim, Platão define o conhecimento como aquele de formas abstratas e válidas universalmente. Não importa o mundo sensível (esse que vemos), o que tem mais realidade são as formas: Beleza, Coragem, Alegria, enfim: Bem. E como acessar esse mundo das formas? Pela razão, não pelas emoções, sentimentos, etc.

Escatologia. O Bem é o sol, a forma que tudo ilumina. O que buscamos, qual ideal teológico? Para Platão, a alma existe antes do corpo e só ela tem acesso às formas. Uma vez a alma "encarnada", ela está poluída por uma capa chamada corpo... Nossa busca na vida é para voltar à pureza da alma, nos livrando de regalias e prazeres carnais. Devemos buscar uma vida frugal e quanto mais conscienciosa, mais perto de Deus estaremos.

Antropologia. Nossa alma é composta por três partes, uma parte apetitiva (ligada aos desejos), uma parte volitiva (ligada aos afetos e paixões) e uma parte racional, que deveria ser a responsável por nos conduzir e nos orientar. Cada parte da alma tripartite está associada a uma virtude, respectivamente, agradável, justa e sapiente, do que devemos nos guiar pela justiça e conhecimento, expressando as virtudes da alma, em detrimento do vícios. Pelo mito da constituição das raças, cada homem apresenta uma parte da alma mais intensa e a partir dessa característica, ele deveria ocupar determinado lugar na vida social. Homens com alma de bronze (parte apetitiva acentuada) seriam os agricultores porque apresentariam a temperança; homens com alma de prata (volitiva) com senso de justiça e coragem seriam os guerreiros, guardiões; os com alma de ouro (racional) seriam os governantes, os filósofos que teriam acesso ao conhecimento verdadeiro. O ideal do bem viver é viver em acordo com a sua natureza e ocupar o lugar que lhe é devido na sociedade.

Política. Qual seria o tipo de governo proposto por Platão? Uma aristocracia dos intelectuais - os filósofos que conhecem a verdade e podem conduzir as demais classes sociais. O político é o homem racional e justo, justiça sensata baseada no conhecimento em oposição à justiça pela força. Mas, vale a verdade do filósofo que conhece, os demais não teriam capacidade argumentativa para o debate: conhecimento para o filósofo, opinião para os demais.

Educação. É com base nessa política, é para formar para esse modelo de sociedade que deve ser pensada a educação. Pelas disposições de cada criança se saberia sua natureza e educação adequada. Os com alma de ouro teriam mais investimento educacional. Se há uma natureza humana ela deve ser mantida e aperfeiçoada pela educação. É uma educação de moldes, parte-se de modelos a serem seguidos, forma-se para a criação de quadros. Modela-se corpo e alma. Purifica-se a alma para atingir o conhecimento, para acessar o mundo das formas, das ideias, o mundo real platônico.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

D&G*

Dois aspectos muito importantes do projeto de Deleuze e Guattari nos foram a pouco revelados: a linguagem e a filosofia da história.
A linguagem do Anti-Édipo é a linguagem dos autos psicanalíticos, da literatura e do próprio inconsciente que flui pela boca do patológico. Há um estilo por trás da obra, estilo de difícil acesso em um momento complexo. Para se entender o obscuro tem que se inserir nele porque uma vez clareado o obscuro, ele perde sua natureza. É do relato, do conteúdo e da forma que se cristaliza o objeto e a mensagem é dada.
A filosofia da história é a filosofia da história universal da contingência. Não é uma história do desenvolvimento, uma história etapista. Não é uma não história ou ahistória. É uma história que não se enxerga sobre o tempo predominante, mas onde todos os tempos se sobrepõem e coexistem. Há outra história, mas é uma mesma história sempre e que tem o peso de uma história que aconteceu.
Precisamos pensar no agenciamento da linguagem com o devir, isso de fato precisa ser elucidado. Precisamos pensar na história das contingências como um ensinamento, como a história. O projeto de Deleuze e Guattari é amplo, extenso em sua intensidade e complexo, senão que irrestrito. Fomos seduzidos ou passaremos para o próximo?
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* despedida da filó em 2015 bem econômica. base da argumentação fornecida por Vladimir Safatle a respeito de Capitalismo e Esquizofrenia.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Sarah e o devir besouro*

O que queremos realmente nesse mundo? Não há vivente que não tenha em si tal pergunta espalhada em sua vida, em sua constituição. Esta pergunta está inscrita em nosso crescimento (biológico) e em nossa sobrevivência. Mantemos a vida ou melhoramos a vida? É uma pergunta que pode nos ajudar a clarificar os propósitos. Se buscarmos melhorar a vida, isso pode significar que nos abrimos a possibilidades (e aqui podemos ver um sentido positivo em uma retórica de competição). Se mantivermos a vida, vivemos e isso é o suficiente. Viver não é um fardo, há uma potência dentro de nós. Viver é potencializar.
Mas porque a distinção manter ou melhorar? Falamos de abertura e colocamos nessa conta um mundo que chama para a ação. Mas queremos pensar de forma diferente. Não podemos mais pensar em uma interlocução com o mundo, porque o mundo é conceitual, vago e amorfo. E também não podemos mais pensar a nossa vida como a vida de um ser autônomo, orgânico e uno. Não somos um, somos choques, contatos, cruzamentos. Não sentimos de uma única forma. Não sentimos via instruções que vêm e voltam de uma cabine de comando. Manter é somente atualizar estados que perduram. Há uma economia aí. Manter é cuidar para que certos limites não sejam ultrapassados. Melhorar é estar no limite e tencioná-lo. 
Muitas vezes nos enganamos, mas Sarah não se enganou. Sarah sabia. Sarah queria. Mas Sarah era relegada, Sarah estava se relegando. Mas Sarah sabia de algo que ninguém sabia. Todos nós sabemos de algo que ninguém sabe. Pobre Sarah: manter ou melhorar? Manter é bom, a gente segue com nossos planos e projetos. Sarah sabia, mas se mantinha. Sarah aceitava. Mas Sarah resolveu melhorar e se uniu. Sarah se uniu ao que não era seu. Sarah só, só Sarah não poderia, mas Sarah e seu devir e um devir que não era seu, poderia. Sarah e o devir besouro mostraram o que realmente queremos nesse mundo. Sarah multiplicou-se no limite, lá e cá, Sarah foi e ficou, Sarah é. É melhor com seu devir besouro.

* parodiando http://tvescola.mec.gov.br/tve/video/especiais-diversos-besourinha com base na aula de Safatle sobre Mil Platôs, de agorinha pouco.

sábado, 21 de novembro de 2015

Nossos valores

Semana passada o Estado Islâmico andou barbarizando na França. Mataram gente em casa de shows e restaurantes finos. Na TV Globo, a manchete foi que nossos valores foram atingidos. O presidente francês também falou de valores (liberdade, igualdade e fraternidade) e tantos outros. Mas, quais são nossos valores?
O que eles estavam querendo dizer é que há uma ideia de que o ocidente compartilha valores e que eles deveriam ser defendidos e cultivados. Haveria esse caldo de cultura que abrange principalmente Américas e Europa. Haveria a ideia de que devemos nos confraternizar, festejar a vida, sorrir. Deveríamos ser felizes e usar nosso tempo em atividades culturais que nos educam, em uma boa gastronomia, em atividades prazerosas de lazer. E, que mal há nisso? Nada de mais em aproveitar um pouco. Mas quantos aproveitam? Quantos podem aproveitar? Há sempre alguém nos servindo. Esse caldo de cultura se mantém as expensas de outrem. E assim é a cadeia alimentícia, manda quem pode, obedece quem tem juízo. E quem desfruta?
Aparentemente, todos podem desfrutar guardadas suas proporções, guardadas as diferentes realidades e condições financeiras, principalmente. Talvez possamos desfrutar com menos dinheiro, talvez a qualidade não esteja necessariamente atrelada ao luxo, bonança, fartura, enfim. O ser humano enquanto tal deseja confraternizar ou, senão, aprende isso. Devemos gozar. Valores a parte, então, deveríamos valorizar os nossos e tolerar o dos outros, pelo menos. E prezar para que todos tenham. 
Mas, não é o que se verifica. Há um liberalismo muito arraigado contemporaneamente. Eu trabalho, eu ralo, eu ganho o meu e devo defender o meu. É sagrado para mim e pauto a minha vida por isso. O social vale enquanto bem sintonizado com meus valores. Felicidades aos meus, e proteção. Quero os meus felizes e sorrindo, quero minha segurança e andar em paz. Valores... Valores. Nossos valores são individuais, nossos valores valem para os nossos. Por trás do sorriso gostoso há uma guerra sendo travada para assegurar que o sorriso gostoso esteja garantido. Essa guerra é tácita e silenciosa, essa guerra é pelos nossos valores, doa a quem doer.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Considerações sobre esse blog

Estamos adentrando o ano III do blog, mas não é por isso que ele é o assunto dessa reflexão. É importante revisitar, revisitar não é retroceder, mas rever, talvez retomar um sentido. Recordar é viver.  Esse blog começou lá nos idos de 2013 como forma de organizar os escritos digitalmente. Sempre há um papel aqui e acolá, sempre há um papel perdido. No digital, teoricamente, nada se perde... Assim, o pensamento disposto segue sua lógica [ou a falta dela], o pensamento flui e exprime o que se vê, o que se sente, o que pede passagem.
"Reflexões do Filósofo (de rua)" não são reflexões filosóficas, embora possam porventura ser porque se tratam de reflexões de um projeto de filósofo (ainda estudante, embora o diploma ou não nada signifique quanto a ser ou não filósofo). "De rua" é só por uma não pretensão acadêmica. "De rua" é para estar livre de regras e normas (embora sempre procurando citar as fontes, a não ser em um uso inconsciente ou ignorante). "De rua", então, é porque não há um compromisso com o fazer acadêmico formal e nem mesmo com seu conteúdo. A filosofia acadêmica é uma ciência e, como tal, exige. Há a necessidade de uma base, um repertório, o domínio dos procedimentos, das correntes, da história, etc. Não é esse o caso aqui...
De fato, sempre interessou a esse blogueiro textualizar. Começou com as redações de escola, passou por poesias até chegar a reflexões. Sempre textos curtos porque a preguiça é amiga da pena, nesse caso. A redação era sempre uma dissertação ou narração sobre um tema dado - normalmente algo real ou que revertesse à realidade. Mas a redação visa àquela estrutura início, meio e fim. A poesia extrapolou para o outro lado, sempre tendo um mote e uma rima, ou uma forma. Até que apareceram as reflexões. Elas eram amuletos, eram reclamações, punições, confissões, mas, mais do que tudo, eram emanações sentimentais. Do que se passa a esse blog feito de reflexões que de certa forma remetem a algum conceito, uma dedução qualquer ou mesmo a tentativa de vasculhar os aspectos técnicos da filosofia, de forma livre. Há resenhas, sim, às vezes fala-se do mundo, reclama-se e há espaço para a retórica, enfim. Mas, porque escrever?
Uma pergunta é uma das coisas mais incompletas desse mundo porque nunca há uma reposta única e certa. Por que escrever? Talvez não haja um por que. Tem que ter? Vê-se que a reposta se transformou em pergunta... Estamos nesse mundo de passagem, sem bem saber o porquê e procurando ou não um sentido. Explicação nunca se terá todas. Enquanto eu estiver aqui vivo sempre faltarão respostas. É acreditar em algo, ter uma fé, buscar algo, simplesmente viver. Arrumar problemas e problemas para não pensarmos nas explicações. Dar contribuições para a sociedade ou não. Mendigar, viver na rua - burlar a lei, torcer a lei, negar a lei. Tem tanta coisa para fazer, não??? Tem escrever. Não sei se tem utilidade ou se deve ser útil, mas sabemos pouco. Não há um sentido declarado, é necessário viver, de alguma forma, da forma que for possível.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Depurando o sujeito

Depurar o sujeito... Para que depurar o sujeito? Para encontrar seus segredos e suas verdades? Mas, haveria esse tipo de coisa “dentro” do sujeito? É muito difícil haver uma verdade em alguém porque, expressamente, uma verdade é algo imutável. O que seria esse imutável da verdade de cada um? Onde ele se localizaria? No coração, no cérebro, na mente, na alma, em cada célula, espalhado? Ou a verdade seria o todo do todo de cada um e, aí, o todo seria imutável, o que não se verifica na prática. Mais do que isso, uma verdade de um sujeito seria algo líquido e certo e, nesse sentido, não fica claro porque revelar tal verdade. Cada verdade revelada e manifestada por um sujeito se chocaria com a verdade de outro sujeito e nada resultaria desse choque, a não ser um dispêndio de energia inútil e inaproveitável.
Depurar o sujeito... Por que depurar o sujeito? Para retirar algo dele? Depurando-o não aniquilaríamos suas vontades? A vontade de um sujeito deve ser conservada porque um sujeito com vontade faz. Um sujeito sem vontade é um sujeito depurado. O que fazer com um sujeito depurado? O que fazer com o que foi depurado de um sujeito?
Em algum momento, porém, sujeitos precisam ser depurados. E só o são por outros sujeitos. Sãos. Sujeitos são depurados por sujeitos sãos. Sujeitos sãos depuram, mas também podem ser depurados. Acaba havendo, assim, uma cadeia de depuração dos mais sãos aos menos sãos e procurando um sentido...
Não é fácil achar o ponto onde começa a depuração de um e termina a do outro e também não é fácil chegar ao sentido. Tudo isso não passa de pura ficção, fantasia. O sentido não é achar um sentido, o sentido é procurar um sentido. Depurar não é achar um sentido, é procurar um sentido. Ser depurado é um talvez, sem verdade, com vontade, procurando.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Hume e a teoria das probabilidades

Seria possível que a teoria do conhecimento e a teoria da moral humana em Hume se orientassem somente por uma teoria das probabilidades? De fato, para que fosse possível fundamentar assim seu pensamento, seria necessário implodir a distinção necessidade / contingência* do determinismo causal. A necessidade não seria uma série causal distinta das séries contingentes porque ela estaria debaixo da probabilística. Pensar na necessidade como categoria separada significa pensar no dever ser, significa acreditar que há um modus operandi ideal da sequência de acontecimentos, sejam eles naturais ou humanos, físicos ou mentais. Não existe, então, a necessidade como certeza e o resto; existe, sempre, possibilidades.
Isso, por um lado, dá um caráter provisório e suspenso a toda e qualquer existência, ao mundo e a toda e qualquer verdade. Mas, de maneira alguma, isso nos limita; há sempre um algo a se buscar dentro da esfera do possível. O possível é o conjunto do que vai acontecer e, para que algo aconteça, diversos fatores se sobrepõem e diversas condições a serem satisfeitas resultam em determinados eventos que a experiência mostra. Seja o sol nascer amanhã: um movimento de um corpo celeste, seja eu conseguir urinar: um movimento biológico meu. Há variáveis para que ambos os movimentos ocorram. Conhecemos todas? Hoje não. Conhecê-lo-emas? Não acreditamos. Porque nossa natureza somente permite determinados conhecimentos e o levantamento de algumas variáveis para que façamos com elas um diagnóstico presente e uma teoria das probabilidades do que poderá ocorrer e, assim, possamos nos mover no mundo.
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* A boutade de Charing-Cross, Gérard Lebrun 

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Dri

Gostaria de definir Dri, mas isso é tarefa inviável e inexequível. Sei algo de Dri, mas não sei se o que sei de Dri é de fato Dri, se é o que Dri diz de si mesmo ou o que dizem de Dri. Porque Dri é um e é muitos. Dri é o que vejo agora, Dri é o que me afeta nesse momento. Mas crio esse Dri da maneira que mais me apetece. Cada um cria "o" Dri da melhor maneira que lhe apetece.
Eu podia pedir que Dri se definisse, mas de nada adiantaria porque a definição de Dri de agora não seria a definição de Dri de daqui a pouco. Porque eu mudo, Dri muda e todos nós mudamos, continuamente. Porém, Dri mudar, não significa que não haja um caráter nele, de fato Dri é muito ético e corajoso. Dri mudar significa que ele não é idêntico. É como o rio de Heráclito: no mesmo rio nos banhamos e não nos banhamos. O rio que vejo aqui e agora não é o mesmo rio que verei em breve, a água que me molha agora será outra água depois, embora o rio, em seu todo, seja um só. Assim como Dri, cada gesto, cada palavra, cada música e cada expressão de Dri são diferentes e se espalham no ar, mas cada manifestação de Dri compõe um Dri-total.
Então, desisto de definir Dri... Simplesmente drilipeio Dri. Drilipar é, ao mesmo tempo, um ato de Dri e uma remissão a Dri. Sempre que houver um Dri, quer passivamente em meu pensamento, quer em uma frase ou em algum canto no mundo, aí estará constituída uma drilipação. Mas também, sempre que Dri fizer algo, seja dormir, comer ou defecar, aí também haverá um drilipamento, mas em sentido ativo. Dri se une em cada drilipação de qualquer tipo. Cada suspiro do Dri compõe a Dri-vida total. E muitas coisas emanam de Dri. Seja Dri-mãe, Dri-vó, Dri-tia, até Dri-etc. Seja o tempo decorrido antes e depois de Dri. Sei que qualquer fala de Dri fica no mundo e falarão de Dri para sempre. O mundo era um com Dri, mas é outro agora. É um mundo drilipado, drilipento. E Dri está aí para drilipar o quanto for possível e nós, drilipados e drilipando com ele, também estaremos aqui, enquanto possível.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

AIE Escola*

Sobre a reprodução das condições de produção. Ensinamento básico sobre o capitalismo: ao mesmo tempo em que produz tem que reproduzir as condições de produção (renovar). Para o capitalista, não basta somente produzir hoje, as mesmas condições devem ser reproduzidas amanhã, para que seja possível produzir novamente. É difícil pensar sobre isso, abstrair que seja, porque as evidências da produção estão embutidas em nossa consciência. Mas é certo que a formação social deve reproduzir as forças produtivas e as relações de produção existentes.

Reprodução dos meios de produção. Não há produção possível sem que haja a reprodução das condições materiais de produção. Todo ano cada empresa deve prever o que é usado ou o que se gasta em sua produção. A reprodução ocorre não somente dentro da empresa, mas mesmo em nível nacional ou mundial, para que a procura possa ser satisfeita pela oferta.

Reprodução da força de trabalho. A reprodução das forças produtivas acontece essencialmente fora das empresas. O salário que figura na empresa só como capital “mão de obra” é a condição na qual o proletário se reproduz. Esse valor vem de um mínimo historicamente consolidado a partir da luta de classes. Mas a força de trabalho deve ser qualificada e reproduzida como tal e é assegurada pelo sistema escolar capitalista que ensina saberes práticos, além das outras instituições que também reproduzem o capital. A escola também ensina regras de conduta e a preservar ordem estabelecida. Escola, igreja, exército: essas instituições ensinam saberes práticos, mas também como se submeter à ideologia dominante, seja para mandar ou obedecer. Reproduzir a força de trabalho é reproduzir qualificação e sujeição.

Infraestrutura e superestrutura (linguagem da tópica). Metáfora do edifício: na base econômica ou infraestrutura estão as forças produtivas e as relações de produção, nos andares superiores está a superestrutura com o jurídico, o político e as ideologias. A superestrutura é afetada pela base, mas há uma autonomia relativa da superestrutura sobre a base e também uma ação em retorno. É a partir do ponto de vista da reprodução que é possível e necessário pensar o que caracteriza o essencial da existência e natureza da superestrutura.

O Estado. Máquina de repressão que permite à classe dominante submeter a classe operária ao processo de extorsão da mais valia. A teoria marxista-leninista capta o aparelho de estado como aparato jurídico e político e como exército que intervém diretamente, quando necessário.

Da teoria descritiva à teoria. A metáfora do edifício e a natureza do estado são descritivas. Teoria descritiva é a primeira fase de toda teoria, mas transitória porque qualquer teoria deve ultrapassar o caráter descritivo. E a acumulação de fatos do estado não faz avançar em direção a sua definição, a uma teoria científica.

O essencial da teoria marxista do estado. O aparelho de estado só tem sentido em função do poder do estado. O objetivo da luta de classes visa o poder do estado e a utilização do aparelho de estado para seus objetivos de classe. De acordo com Marx, até a destruição do estado, um dia, pelo proletariado.

Os aparelhos ideológicos de estado - AIE. A teoria do estado deve distinguir poder de estado e aparelho de estado, mas também, os aparelhos ideológicos de estado. O que, na teoria de Marx, significa aparelho de estado, aqui será chamado aparelho repressivo de estado que usa violência, mesmo que não física. AIE são as instituições: AIE religioso, AIE escolar, AIE familiar, AIE jurídico, político, sindical, da informação e cultural. Enquanto o aparelho (repressivo) de estado pertence inteiramente ao domínio público, o AIE pertence aos domínios privados (e o domínio do estado escapa ao público e ao privado). Diferença fundamental: o AE funciona por violência e o AIE por ideologia, embora às vezes eles se combinem. Os AIE, apesar de diversos, o que os une é funcionar pela ideologia, a ideologia da classe dominante. Entretanto, os AIE são não somente os alvos, mas o local das lutas de classes, dada a dificuldade de acesso ao aparelho repressivo.

Sobre a reprodução das relações de produção. A reprodução das relações de produção é assegurada pela superestrutura jurídico-política e ideológica. É assegurada pelo exercício de poder de Estado nos aparelhos de Estado.
Então:
1. Aparelhos de estado funcionam pela repressão e ideologia - AE massivamente pela repressão e AIE pela ideologia.
2. Aparelho (repressivo) de Estado funciona como um todo organizado sob um comando único na mão da classe que detém o poder; os AIE são múltiplos, distintos e sujeitos a contradição.
3. Unidade dos AE assegurada por organização central, dos AIE assegurada em formas contraditórias pela ideologia dominante que é a da classe dominante.

A representação da reprodução das relações de produção se dá pelo papel do aparelho repressivo de estado que assegura pela força as condições políticas da reprodução das relações de produção e assegura pela repressão as condições políticas do exercício dos aparelhos ideológicos de estado. Se, na formação social capitalista, há um elevado número de AIE, no feudalismo, embora a unidade do aparelho repressivo fosse semelhante, o número de AIE era menos elevado. Na verdade, o AIE religioso, a Igreja, consolidava muitos AIE: escola, cultura, etc., e atuava em conjunto com a família. Tanto o AIE dominante era a igreja, que se seguiram a reforma e uma luta ideológica de séculos, e mesmo a revolução francesa. A burguesia visava suprimir o poder ideológico dominante da igreja e, ao lutar pela ideologia política, a burguesia também visou a luta da reprodução das relações de produção capitalista pela hegemonia ideológica, que, já nessa fase, era o AIE escolar (embora parecesse ser o AIE do estado político). Isso porque com a burguesia no poder variou o AIE político: seja de democracia, da monarquia, etc. Então o duo escola-família substitui o duo igreja-família. 
Portanto:
1. Todos os AIE concorrem para a reprodução das relações de produção, ou seja, de exploração.
2. Cada um com a parcela que lhe cabe, imprensa, política, cultura, religião, etc.
3. O concerto é dominado por uma partitura única (moralismo, nacionalismo e economismo) que de vez em quando é perturbado pelas contradições.
4. Nesse concerto, o AIE dominante é a escola.

A escola toma a cargo todas as crianças de todas as classes sociais, entre o AIE familiar e o AIE escolar, inculca a ideologia dominante, e forma operários, funcionários médios, agentes de mando, agentes de exploração e agentes de repressão. Cada um sabe seu papel de acordo com a ideologia que lhe foi inculcada, já que a escola dispõe de muito tempo no dia e muitos anos na vida. É na aprendizagem que são reproduzidas as relações de produção de uma formação social capitalista pela ideologia da classe dominante, dissimulada na neutralidade da escola, como se fosse desprovida de ideologia.
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* Louis Althusser, Os Aparelhos Ideológicos de Estado.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Limpeza de terreno

É importante estar consciente do que deve ser feito. Muitas vezes nos deparamos com uma trave nos olhos que nos impede de termos tranquilidade para nos debruçarmos sobre o que é relevante. Senão trave, cisco, ou ciscos. Um cisquinho que seja tira nossa atenção. Isso é tão simples e trivial que não nos preocupamos e, assim, seguimos ocupados com o que não é mais importante no momento.  E não nos damos conta de que isso acontece, seja por nossa própria desorganização, seja por imposição. E desperdiçamos energia porque sempre estamos agindo. A inação é uma ação e, por isso, tudo deve ser canalizado em prol de algo que, de certa forma, valha a pena. O valer a pena aqui não é uma essência, mas uma questão de sobrevivência; tem que valer a pena estar aqui e isso envolve muitos interesses, os nossos, principalmente e, naturalmente o dos outros. 
Às vezes, então somos levados voluntariamente ou forçosamente a desviar a atenção para assuntos indevidos. Fazemos um algo disparatado, mas fazemos. De certa forma, acaba importando gastar energia para dormir tranquilo, que seja cansado.
É um fato corriqueiro e cotidiano. Cada vez mais nos distanciamos das reais possibilidades e de nossos potenciais. Há uma força nos segurando, controlando nossos passos e ações. Há um regulamento há ser seguido, há uma preocupação com a nossa conservação. Essa manutenção de um sabe lá o que é uma covardia repugnante, às vezes escondida pelo cisco. Está atrás dele e não vemos. E, irrefletidamente, corremos, fazemos, vivemos e morremos.
Não é fácil sair desse círculo vicioso. Mas seja despertando por nós mesmos, seja como resultado de uma confluência ocasional que nos atinge, algo pode acontecer. Levantar a cabeça pode significar uma transformação interessante. Retirar a trave, sacudir a poeira, limpar o terreno. Enxergar! Fazer sem peso. Pensar sem fazer também é possível. Importa mais possibilidades do que resultados; importa mais sair da loteria inebriante. Se isso acontecer, pelo menos uma vez, terá valido a pena. Será recompensador, independente de qualquer valor. 

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Política sem sujeito

    Eu queria pensar em um princípio que norteasse nossas escolhas políticas ou, pelo menos, a maneira como opinamos, senão que indicasse como formulamos pensamentos muito formais e potencialmente transformadores. Vivemos sob grande sombra do estado artificial. Mais do que nunca, somos modernos. Um dia nos agrupamos e nos associamos e não importa agora sabermos o porque. Faz tanto tempo! De fato, sempre há um poder que de algum modo se estabelece. Eu queria achar uma fórmula base para tal desenvolvimento. Marx pensou historicamente uma luta pela propriedade. Para ele há um valor. Eu queria concordar com ele e buscar um valor também. Afinal não pensamos sempre e opinamos fundamentados em um valor? 
    Mas essa minha tentativa só revela o quão dogmático eu sou por acreditar que há um alguém ou muitos por trás disso tudo. Então, me lembro de que Sartre arrochou esse eu, esse que queria isso e aquilo: lançou-o para o mundo. Não há esse eu por detrás das ações, simplesmente somos atraídos pelo mundo, o primeiro estalo é intencional e irrefletido. Não há valor aí, somos apenas reflexos quase sempre mal condicionados. O agir é estupidamente livre e essa é a nossa responsabilidade: fica difícil teorizar sobre formas de verdade e encontrar saídas. Mas tudo isso parece muito sentimental. A ação deve se estabelecer um pouco mais acima.
    Precisamos entender como funcionaria uma política sem sujeito. Faz tanto tempo que esse eu vem perdendo espaço, mas a sua síntese ainda ecoa nessas reflexões. Minha revolução copernicana é expulsar esse eu da política, dissolvê-lo para poder pensar. Soa paradoxal, mas me parece um caminho. 

domingo, 4 de outubro de 2015

A fenomenologia e a guinada transcendental*

A fenomenologia visava investigar as condições subjetivas que tornavam possível o conhecimento e a experiência em geral. Mas se, de início, Husserl propusera a filosofia noética que partia da redução eidética, depois entraria em questão a temática transcendental que baseava sua análise na evidência intuitiva e não somente em restrições lógicas que às vezes não se compreende. Se, antes, tratava-se de passar da experiência para seus condicionantes formais, um novo método, da redução fenomenológica, modifica a experiência revelando nela a camada fenomenal constituinte e, através da epoché haveria a suspensão da validade objetiva existencial que é atribuída a toda a experiência. Assim, a experiência se daria de duas maneiras: a experiência natural, que é a habitual, estaria voltada os objetos a maior parte do tempo e a experiência transcendental que, pelo método da redução fenomenológica modificaria aquela experiência natural e buscaria o núcleo fenomenal em qualquer experiência, um núcleo de evidência absoluta.
Portanto, o transcendental não seria um domínio de formas abstratas, ao qual se chegaria ao abandonar a experiência; ele se trataria de um modo próprio da experiência, reduzindo-a ao seu núcleo fenomenal fundante. Para fazer filosofia deveria se modificar a experiência natural voltada para os objetos e suspender a validade das crenças pela redução: restaria o puro fenômeno, intuitivo. Se a experiência epistemológica já suporia o objeto, a experiência transcendental deveria modificá-la para esclarecer a condição de possibilidade epistemológica. Na filosofia transcendental de Husserl, não falamos de ser, falamos do que aparece como fenômeno: um lado do ser, a experiência transcendental é composta de faces, que são o núcleo da percepção visual. A redução fenomenológica busca o núcleo evidente de certeza dentro das camadas confusas da experiência.
Inicialmente, Husserl considerava que o eu tinha que ser objetivado em sentido mínimo, o eu tinha que ter algum tipo de conteúdo, deveria poder ser tema, senão não se poderia falar dele, referir-se a ele, constatá-lo, deveria se supor um caminho intuitivo para que se pudesse atestar o eu, não como ficção linguística. Do que se depreendia a incapacidade de intuí-lo, apreendê-lo, como centro de referência idêntico, como um eu puro, porque seria difícil encontrá-lo além das vivências particulares. Só seria possível trazer à intuição o eu empírico no fluxo de experiências, e não como polo unificador. Na reflexão apareceria o eu em relação às suas vivências e objetos; o eu se reduziria à unidade do fluxo fenomenológico.
Na vivência (irrefletida) a consciência estaria absorvida em seus polos objetivos e não apareceria um eu; esse somente surgiria pela modificação reflexiva. Na vivência irrefletida a consciência estaria absorvida em sua relação com os objetos intencionais que ela faria aparecer e não haveria algo como um eu coordenando essa experiência. Para surgir o eu, teríamos que pensar nele, voltar-se sobre aquela vivência irrefletida. Portanto haveria um eu fraco como unidade de todas as vivências, uma unidade de fluxo, esse eu estaria dissolvido na unidade das vivências entrelaçadas. Então a reflexão modificaria o irrefletido e tenderia a atribuir um eu. A reflexão também teria uma vivência com sensações e ações, mas a alteraria para fazer aparecer um eu. Mas, de acordo com Husserl (e Hume), para haver fluxo de experiência não seria preciso do eu, elas seriam por elas só. Portanto, o eu fenomenológico não seria senão a unidade contínua das vivências da consciência, o eu não seria o ponto diferente das vivências.
Mas, a partir da guinada transcendental, Husserl defenderia o oposto: haveria um eu puro. A fenomenologia transcendental defendera a tesa que a filosofia seria a passagem entre duas orientações do pensamento entre as quais a experiência é vivida: a orientação na natural (que não teria eu) e a orientação fenomenológico-transcendental, modificação da experiência natural. A orientação natural se voltaria para a experiência cotidiana, semelhante àquela das ciências e da verdade dos juízos, visando o mundo real, concreto. Seria uma interpretação ingênua e objetiva, voltada para as coisas que aparecem. Para fazer filosofia, seria necessária uma interpretação antinatural, que rompesse com o modo natural de fazer ciência. Pela epoché, suspender-se-ia o ser das coisas e situações transcendentes, reduzindo a experiência ao seu núcleo fenomenal evidente.  Seria suspendendo-se o ser que se iria para o modo do vivenciar que tornaria visível o âmbito fenomenal.
O eu puro seria tema da fenomenologia a partir da redução fenomenológica da orientação natural em três passos: ao partir de da descrição pessoal da orientação natural do pensar (de dentro), haveria uma sistematização teórica da tese de orientação natural, para a exposição da epoché. A reflexão natural (sem epoché) seria uma descrição da orientação natural por orientação simples: seria um discurso em primeira pessoa que cada um poderia fazer. Então, não haveria uma descrição do mundo, esse seria apresentado como uma narrativa do eu e não abstraída. Essa narrativa respeitava que a experiência comum seria pessoal e distinta dos eventos narrados, esse discurso remeteria a um eu. O que esse eu natural narraria? Em um discurso ingênuo, narraria que apareceria para o eu natural o mundo (material e cultural) como já dado, o eu se relacionaria e se adaptaria a ele. O que valesse para o narrador valeria para todos os outros eus-sujeitos, haveria uma validade intersubjetiva da experiência porque seria o mesmo mundo com existência pressuposto por todos. O cogito seria o conjunto de atos e estados subjetivos por meio dos quais a experiência natural seria vivida e ele poderia ser irrefletido nas vivências. O sujeito voltar-se-ia sobre si e narraria suas experiências, narraria o cogito e atos subjetivos e aí surgiria o eu: eu faria isso, eu faria aquilo... a orientação natural seria experimentada de forma egológica marcante, de forma personalizada.
A partir da orientação natural, Husserl isolaria um componente da narrativa: a tese ou posição de ser acerca dos polos objetivos que apareceriam e um dos seus componentes mais gerais: a crença na efetividade do mundo natural e de seus modos de ser (isso é, isso não é...). Então ele tiraria de ação essa tese e apresentaria a suspensão da validade da posição de ser. A epoché que suspenderia a orientação natural faria aparecer puros fenômenos sem orientação de ser e apareceria de modo absolutamente evidente na experiência reduzida um eu puro. Esse eu puro seria um polo idêntico de proveniência de atos, sem se confundir com nenhum deles poderia ser intuído, esse eu poderia ser tematizado como objeto. Portanto, o eu puro estaria ligado ao modo como Husserl apresentava a narrativa natural, mas seria um dado da experiência transcendental. A experiência reduzida seria fruto de uma modificação da experiência natural, a qual seria egológica, narrada do ponto de vista de um eu. Ou seja, na experiência natural existe um ego que pressupõe posições de ser. Pela epoché, a experiência reduzida suspende as posições de ser, mas mantém esse ego, mantém a forma narrativa egológica, que passa do natural para o transcendental. 

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* notas de aula de História da Filosofia Contemporânea, prof. Marcus Sacrini (primeiro semestre/2015).

Hume anti cartesiano*

Descartes enfatizou o problema do conhecimento que vem dos sentidos que nos enganam, quer uma vez ou sempre. Ele suspendeu o mundo e se fechou no penso. Remetendo à Platão e seu mundo das ideias mais reais que o mundo real, ideias antes do mundo, ideias antes da existência. Platão buscava um ideal de conhecimento verdadeiro que vinha da ideia universal, do imutável que é em si e está nas coisas. Descartes flertava com o conhecimento certo e seguro que é estabelecido a partir de regras racionais de dedução, conhecimento demonstrativo e operado pelo juízo. Conhecimento de objetos matemáticos ideais descolados porque, para ele, se a causa do erro era o sentido, ainda assim precisaríamos fazer ciência.
Grandes impropérios para Hume que apostou que toda ideia vinha da experiência, do sensível. Assim, o conhecimento possível é o da impressão que é mais viva e dela viria a ideia. Se não referenciasse o dado não haveria garantias. Descartes: cético dos sentidos, Hume: cético da racionalidade, a segurança cartesiana se despedaça na nossa imperfeição, na nossa limitação natural. Mover-se no mundo é guiar se por crenças que se comprovam na experiência, é se valer de hábitos adquiridos, comprovados, ousados, abusados e relacionados pela imaginação. A nossa natureza age assim relacionando e conhecendo o que há. Limitada e imperfeita, é a imperfeição que abre espaços para as conexões, o certo e seguro cartesiano, que é abstrato, não tem lugar aqui. 
Isso posto à guisa de introdução, fica a questão de saber qual telos se esconde por trás de tais filosofias. Descartes queria um  conhecimento científico e inabalável em um momento de autoridade da igreja e fez malabarismos. Não é tarefa fácil rasgar a tradição vigiado pela tradição. E achou um ponto arquimediano, enfim. Hume repousou em berço esplêndido de nova, mas consistente tradição racionalista, mas inovou. Ante a prova cartesiana, a possibilidade humiana. Hume verificou uma característica da nossa natureza que não acessa os segredos e causas primeiras e propôs uma filosofia experimental que lhe fosse adequada, a superação de uma metafísica de ciência dogmática em prol do possível. É porque Descartes fica no dentro, na escrivaninha, que ele consome e produz ideias. Hume vai para fora, para um fora de impressões e descobertas.
De nossa parte, em meu tempo, junto os dois, mas separando-os, Descartes de dia e Hume de noite. Se Descartes foi ciência aqui é trabalho. Divido os dois não pela episteme, mas pela linguagem que hoje me intriga. Assim penso em usar duas linguagens, uma certa e segura e outra imperfeita. Uma pensada, útil, necessária, vital. Vital porque o sistema nos onera e exige essa linguagem. Não há espaço para divagações e ruído. O público hoje virou trabalho, o público não é participação política, o público é obrigação, compromisso, quase escravidão. De noite, fora do local de trabalho, na rua, em casa, a linguagem é outra, é a que viaja, relaciona. Isso talvez pareça Habermas e sua razão comunicativa. Mas também parece conciliação e já é um progresso do pensamento sair da racionalidade em algum momento.

(*) esboço a ser aprofundado.

domingo, 13 de setembro de 2015

Como reconhecer o estruturalismo*

     Quem é estruturalista em 1967: o linguista R. Jakobson, o sociólogo Lévi-Strauss, o psicanalista J. Lacan, o filósofo M. Foucault, o filósofo marxista L. Althusser, o crítico literário R. Barthes, entre tantos outros. Eles se valem de um espírito do tempo e usam a estrutura (ou sistema) nos mais variados domínios. Ela se origina na linguística de Saussure: só há estrutura do que é linguagem. Nos domínios temos a estrutura do inconsciente: ele fala e é linguagem; a estrutura dos corpos que falam com a linguagem dos sintomas; das coisas através do discurso silencioso da linguagem dos signos.
     A primeira descoberta do estruturalismo é a dimensão do simbólico que rompe a oposição (ou fusão) entre real e imaginário – jogo dialético que vem da filosofia clássica e, depois, é abarcado pela psicanálise. Seu começo na linguística reporta, por um lado, para a palavra que tem realidade e partes sonoras, imagens e conceitos, mas, por outro, existe o elemento simbólico, o objeto estrutural. A estrutura encarna-se na realidade e nas imagens a partir de séries determinadas e os perturba porque é mais profunda que eles; a estrutura é o subsolo. Havia o pai real e imagens do pai na psicanálise, Lacan descobre um terceiro pai: o Nome-do-pai. O terceiro elemento é o simbólico, mas a própria estrutura é pelo menos triádica porque há um terceiro irreal, mas não imaginável. A ordem simbólica nada tem a ver com uma forma sensível que se exerceria no real ou na percepção, nem com uma figura da imaginação e nem tanto com alguma essência inteligível, seus elementos formais não tem forma, representação, significação, conteúdo, realidade, enfim. Pode-se haver um desconhecimento da ordem simbólica por um lado, por outro o estruturalismo permite uma reinterpretação de obras e teorias.
     Os elementos de uma estrutura só tem o sentido de posição, dentro de um espaço topológico e inextenso os elementos estão em uma relação de vizinhança em seu interior. São primeiros em relação a coisas e seres que os virão a ocupar e mesmo aos papéis imaginários que daí surge. Portanto os lugares são mais importantes de quem os preenche, pai, filho, esposa, são lugares a serem ocupados nas estruturas, entramos na fila e chegaremos lá, um dia ocuparemos o papel de morto. O elemento simbólico, sendo sentido de posição sem designação extrínseca ou significação intrínseca, é um sentido que resulta da combinação de elementos não significantes. Combinação excessiva dos elementos, elementos sobrepostos, sobre determinados. O estruturalismo se vale do jogo: no baralho o coringa circula pela estrutura; pensar é lançar os dados. Estruturalismo que aponta para um anti-humanismo ao valorizar a posição e não quem a ocupa...
     As unidades de posição entram em relações diferenciais. Há a relação real: 2/3, 3+2, com elementos e relações reais. Há a relação imaginária: 2x+y=0, valor não especificado, mas que deve ser determinado caso a caso. E as simbólicas: dx/dy=x/y, os elementos não têm qualquer valor determinado, mas se determinam na relação diferencial, ela sim determinada. A natureza simbólica é definida nesse processo de determinação recíproca no seio da relação. E surgem singularidades na determinação recíproca (dos pontos forma-se a curva), da determinação recíproca temos a determinação completa. As estruturas apresentam, então, os aspectos: um sistema de relações diferenciais segundo as quais os elementos simbólicos se determinam reciprocamente (pai só é pai se tem filho; filho só é filho se tem pai) e um sistema de singularidades correspondendo a essas relações e traçando o espaço da estrutura. Com Althusser, as relações diferenciais se dão entre elementos simbólicos, são categorias, designações: força de trabalho e meios de produção em relações de propriedade. Já as singularidades se referem a funções, atitudes: cada modo de produção é uma singularidade que corresponde aos valores das relações. O verdadeiro sujeito não é o homem, mas a definição dos lugares e funções. A estrutura é inconsciente e virtual, é real sem ser atual e ideal sem ser abstrata. É uma virtualidade de coexistência que se atualiza em direções exclusivas. Somente determinadas relações e singularidades se atualizam aqui e agora. Diferenciação: conjunto das diferenças em uma estrutura, a nível vertical, fora do espaço e tempo. Diferenciação: conjunto atualizado num dado espaço e tempo da estrutura. A gênese e o tempo na estrutura vão do virtual ao atual, não há atualização forma-forma, sempre se remete ao virtual. Atualizam-se as relações diferenciais (espécies diferenciadas) e as singularidades (partes diferenciadas da espécie). A estrutura é diferencial não só nos efeitos que nela se atualizam, mas diferencial em si mesma. A imaginação opera sobre os efeitos de superfície que escondem o mecanismo diferencial de pensamento simbólico. Então, a estrutura sendo inconsciente (e diferencial) se confunde com seus efeitos. De acordo com o campo simbólico, o inconsciente se coloca, e coloca problemas e questões a serem resolvidos em cada domínio. 
     Qualquer estrutura é serial, multisserial, cada série composta de elementos simbólicos que se relacionam e só assim a série se põe em movimento. Séries de elementos e relações, sistemas, diferença. Não há regra geral para a organização das séries constitutivas de uma estrutura. O problema que o estruturalismo coloca objetivamente se resolve a partir dessas constituições seriais. As séries se deslocam umas em relação às outras, não é um deslocamento imaginário, é estrutural e simbólico, pertence aos lugares no espaço da estrutura e aciona os disfarces imaginários dos seres e objetos que secundariamente ocuparão esses lugares.
     A casa vazia, objeto = x paradoxal que aparece nas estruturas, é capaz de convergir séries divergentes, se move e circula em cada série. Como nas canções onde o refrão é relativo ao objeto = x e as estrofes as séries divergentes pelas quais ele circula. Objeto sempre deslocado a si mesmo, está onde não se procura. Não é real porque falta no seu lugar, não é imagem porque falta na sua própria semelhança, não é conceito porque falta na própria identidade. O objeto = x é o diferenciante da diferença. Como no jogo que só funciona com a casa vazia que muda de posição constantemente. É a palavra "coisa" que possui excesso de sentido, que significa nada ou qualquer coisa, ou que dota de sentido o significante e o significado. Ou o objeto = x é determinado como falo,  nem o falo real, nem as imagens a ele associadas, mas o falo simbólico que funda a sexualidade. O falo é uma questão e designa a casa vazia da estrutura sexual. Assim como na estrutura econômica a casa vazia é o valor, o não empírico atribuído ao trabalho em geral. Mas, o que vem primeiro, o valor ou o falo? Não há ordem nas estruturas, elas estão perpendiculares umas as outras e à experiência única do indivíduo.
     Então a estrutura é preenchida em si por elementos simbólicos e, atualizada, é preenchida por seres reais;  o que não se preenche é a casa vazia. Vazio positivo que não é lacuna, mas espaço a ser preenchido. O sujeito é a instância que segue o lugar vazio, menos sujeito e mais sujeitado, o estruturalismo dissipa o sujeito e o faz nômade, individual, mas impessoal. E podem ocorrer dois acidentes na estrutura: ou a casa vazia não é preenchida (vira lacuna) ou é preenchida e sua mobilidade perdida. Esses acidentes são aventuras da casa vazia suscitados por contradições internas à própria estrutura, acontecimentos que afetam a casa vazia (ou sujeito). O sujeito não preenche, mas deve acompanhar o deslocamento da casa vazia, deslocamentos que geram novas singularidades, e pela práxis essas singularidades são redistribuídas; novos dados são lançados. Portanto, há um processo de produção estrutural que produz efeitos nos diferentes níveis da estrutura, sejam eles: o real (os seres reais); o imaginário (as ideologias); o sentido e a contradição.
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*Resenha (e colagens, recortes) do texto homônimo de Gilles Deleuze.

Bando de loucos

     Eu vejo gente conversando na rua, dois homens indo para o trabalho. Eu passando pela calçada observo uma mesa com pessoas reunidas por detrás de uma porta de vidro. Eu vou ao bar e há grupos de amigos bebendo e trocando ideias. Eu vejo tudo isso e acho estranho... Sobre o que essas pessoas conversam? O que elas pretendem conversando? Será que elas pretendem emitir uma opinião, se resguardar, influenciar o interlocutor, enfatizar suas convicções, enfim, o quê? Eu me pergunto se, na verdade, elas sabem o que pretendem. Creio que não... Mas eu tenho a impressão que elas não sabem o que pretendem porque não sabem o que é possível. Não por elas próprias, mas pelas condições a que são submetidas.
    As pessoas se encontram e falam, falam. Falam e não sabem se são ouvidas, mas falam. Eu suspeito que elas não sejam ouvidas e que mal sabem o que falam e porque falam. De fato, surgimos nesse mundo de falar em que não se sabe se escutar e, muito menos, comunicar. Não examinamos essa condição[1] e acreditamos que é natural e que é o único meio que temos de viver. Porque quase tudo se faz falando ou se comunicando.
     Entretanto, estou certo que em um mundo com a quantidade enorme de ruídos que temos qualquer tipo de comunicação é inviável (senão impossível), pelo menos da forma que conhecemos atualmente. Por que nascemos assim, utilizamos a linguagem, tudo não passa de certa instrumentalização. A linguagem não é fim, ela é meio. Ela serve a interesses e, por isso, não é confiável. O objetivo do homem ao falar é se valer de uma necessidade que é criada. O objetivo do homem não é uma comunicação stricto sensu. O homem sabe que tem ruído na conversa e usa isso como moeda de manipulação. Está na hora de começarmos a desvelar essa forma de comunicação hipócrita e comezinha. 
     Embora me seja simpático, não quero propor aqui uma volta a um estado de natureza antissocial. Mas também não quero esse meio termo da linguagem que conhecemos. Não é viável tal tipo de comunicação em que falamos, falamos e, às vezes, escutamos, escutamos. E? E, nada! E falamos e escutamos, somente.
     Uma forma de comunicação só seria aceita se houvessem todas as garantias de um profundo entendimento. Oh, mas e a subjetividade, a relação de transferência, a liberdade que por aí se insere? Não há liberdade aí. O que há é um não saber disfarçado de liberdade. O que há é um contentar-se com pouco. Evoluamos! Não significa dominemos o mundo, não significa vida eterna. É somente uma busca por uma forma de comunicação mais elementar, básica, consistente e que também pode ser estimulante e surpreendente. Não sejamos um bando de loucos.
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[1] Aqui não entraremos no mérito da linguagem enquanto estrutura subjetiva partilhada historicamente por todos os homens.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Desconstruindo o sujeito*

    Vem da modernidade o projeto de recuperação do homem antigo e uma fundamentação da racionalidade. O eu revitalizado e revalorizado irrompe com suas ideias e sua consciência. O eu é autônomo, é possível falar ontologicamente de um eu que age, a subjetividade do eu é marcante na filosofia. 
    Os séculos se passam e o eu perde força até que Freud inventa o inconsciente. Há um algo além da nossa subjetividade, um desconhecido que não podemos explicar. Althusser propõe uma leitura de Marx pelo não dito, pelas lacunas. Mas o que é esse invisível? É o inconsciente, sempre presente, latente. Há o dito e o não dito, que às vezes diz mais. E ele ainda argumenta que o próprio Marx usou esse expediente na leitura dos economistas clássicos...
    De toda forma, o inconsciente é estruturado. O estruturalismo francês coloca o sujeito em estruturas predeterminadas, estruturas feitas de relações e de lugares que ocupamos, como sujeitos. Exemplifico, ontem fui a um casamento, havia uma noiva, um noivo, o pai da noiva, os amigos, etc. Em todo casamento existem esses lugares a serem ocupados, de pai, mãe, convidado, etc. E ocupamos em cada casamento, lugares diferentes. Estamos nessas estruturas existentes antes de nós. A subjetividade perde espaço em prol da estrutura dada. Para Althusser, o próprio capitalismo se vale da estrutura: relações de produção, modos de produção, a forma mercadoria, todo um aparato em que nós, sujeitos, apenas nos encaixamos.
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* A partir do que pude apreender em notas de aula de Teoria das Ciências Humanas, prof. Vladimir Safatle.

sábado, 29 de agosto de 2015

Camadas de artificialidade

No começo era a terra, a água, o verde da natureza e os bichos. Depois veio o homem com seus instintos: comer, dormir, se reproduzir. Ele era o bom selvagem* e precisava sobreviver, mas tinha compaixão de si e do sofrimento alheio. Em algum momento o homem começou a se expressar individualmente e a comunicar-se [entre si], formou comunidades e se socializou. Acreditamos que por aí se mostra a primeira camada de artificialidade: a produção da linguagem e a criação de regras de convívio social. Tudo o que é produção humana é artificial, excetuando-se a procriação que é natural. O organismo humano é natural e ele estava bastante ligado à natureza, naquele tempo longínquo. Na natureza, os fenômenos e as interações entre os seres seguem sua lógica, na qual o homem se insere. Mas, quando ele se insere, ele muda a correlação de forças, porque produz coisas artificiais. O homem não soube (ou não quis) se manter na lei natural, ele criou a sua própria lei e submeteu a ela a própria natureza. Se a primeira camada de artificialidade era composta pela linguagem e valores éticos, a ela se sucederam outras: a vestimenta, a propriedade, a moeda de troca, os utensílios, as armas. De fato, nos parece que a primeira camada de artificialidade foi não material [ou virtual], oriunda de esforço mental e psicológico, e dela surgiram necessidades materiais: os objetos criados a partir de transformações naturais. A partir dessas duas camadas, de suas sobreposições, de seus relacionamentos e cruzamentos, advieram outras camadas artificiais materiais e virtuais, até chegarmos aos nossos dias.
Portanto, houve um processo histórico que irrompeu na atualidade e seguindo um determinado caminho, transpondo e criando camadas artificiais. Seria um trabalho importante identificar séries que trilharam determinadas camadas materiais e virtuais para poder identificar sua origem natural e qual o alvo artificial atingido. Contudo, o que a construção das camadas artificiais nos permite concluir é que elas são fator determinante em todos os nossos atos e relações. A tal ponto que fica realmente difícil poder estabelecer qualquer valor de verdade, de certo ou errado e de julgamento. A densidade de artificialidade polui nossos interesses e não temos nenhuma garantia de como ou porque defendê-los. Nossos interesses, se perdendo nas camadas de artificialidade, se alinham ou se chocam com os interesses dos outros e, sem o estabelecimento ou a publicação da cadeia perpassada em cada camada artificial, realmente não podemos chegar a nenhuma conclusão, não podemos defender nossos pontos de vista e nem lutar por eles.
Esse histórico artificial extrapolou na atualidade e caímos em um relativismo absoluto. Nenhum argumento que se dê muita acima de camadas de artificialidade pode ser factível ou provável. De qualquer forma, algumas esferas institucionais, sociais, etc., procuram se precaver. Isso pode ser verificado no caso das ciências que delimitam seu contexto e suas variáveis, mas querendo se fazer neutras pecam em uma petição de princípio: atestar neutralidade já não é ser neutro. Além do mais, as ciências acabam por se fechar em si mesmas e, por mais que procurem se aproximar de uma camada natural, primitiva e essencial, produzem resultados que ecoam em camadas de artificialidade desprovidas de critérios de escolha e seleção, ao Deus dará da poluição e confusão que elas causam.
Por tudo isso, as infinitas camadas de artificialidade combinadas, regadas aos mais diversos elementos materiais e virtuais nos devem fazer desconfiar de qualquer necessidade vital nossa. Individualmente, não temos critérios de garantia. Então, se isso vale para mim, vale para os outros e vale para toda e qualquer relação de transferência ou zona de diálogo entre eu e os outros. Do que podemos concluir que não devemos estar tão entrincheirados e que qualquer guerra não parece ter fundamento, se não forem retrocedidas a um algo natural ou se não forem elucidadas todas as camadas artificias materiais e virtuais por ela atravessadas e que forneçam subsídios para o ataque.
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* Aqui nos inspiramos na teoria naturalista de J.J. Rousseau.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Ceticismo alegre e modesto*

Sobre a obra de Hume importa ressaltar que começa com o Tratado da Natureza Humana, que não foi acolhida pelo público e faz com que o filósofo mude o estilo e parta para as investigações (acerca do entendimento humano e acerca dos princípios da moral), recolhendo fatos e usando o inquérito como principal recurso. A filosofia é um jogo que tem suas regras e onde é preciso inquirir; a filosofia é uma caçada. Remetendo à tradição britânica de Lorde Bacon e Sir Isaac Newton, a investigação aplica o método experimental da ciência para entender a natureza humana, entender o homem em suas ações e ser entendido por ele: "Sede filósofo, mas sede sempre homem".
Reforçando o conceito, para o empirista Hume, as ideias provêm das impressões, sendo as últimas mais vivas que as primeiras, mas as primeiras se estabelecendo a partir da reflexão, do pensar. Esse é o papel do pensamento: organizar ideias que são metódicas, estabelecer conexões a partir das regras de semelhança, contiguidade, causalidade, etc. Nesse processo, o espírito é guiado pela experiência, se não há experiência, ele vagueia. Por outro lado, pelo empirismo cético, a inferência de um efeito a partir de sua causa é feita pela imaginação, a razão nada pode demonstrar a esse respeito. Aqui se abre espaço para a ação: é ela que combate nossa ignorância, a partir do hábito passado posso acreditar no futuro. É a imaginação que domina a mente. A natureza humana se guia pela crença que nos permite assumir o que não existe como já existente, cremos em ideias quase tão vivas quanto às impressões. Às vezes, existe espaço para a ficção: algo ocorre diferente do previsto - nesse caso, só sabemos a posteriori. Portanto, é a crença que é o princípio diretor de nossas ações, ela toca o nosso espírito de tal forma que nos faz distinguir entre as ideias do julgamento das ficções da imaginação.
Hume atesta o poder da imaginação: somos irracionais, mas imaginativos. A imaginação é extremamente livre, se nos faz acreditar em quimeras, ela harmoniza o curso da natureza com a sucessão de nossas ideias. Somos guiados pela experiência usando a liberdade da imaginação para agir. Mas a liberdade é condicional porque se baseia na conjunção das causas e feitos, nossa moral vem com regras e apreciações a reboque. Na esfera moral nada podemos prescrever e não há orientação sobre o que fazer porque a causa da ação vem da experiência. Pelo método de Hume, é aí que devemos procurar a impressão que está por trás de uma aprovação ou desaprovação, através do inquérito sobre a origem de nossos sentimentos.
A moral de Hume combate o egoísmo e se volta para a ação, exaltando a simpatia entre os homens, mas sem dispensar o caráter de utilidade. Somos benévolos com os outros porque a nossa situação é precária, senão não precisaríamos ser. Da mesma forma que a justiça não é útil em uma sociedade com abundância. De qualquer forma, há um sentimento moral que nos empurra para a ação, seja para a benevolência ou para a justiça. E somos parciais, mas podemos aprender as vantagens de sermos justos. Isso não quer dizer que haja um cálculo frio, somos orientados na ação moral pela paixão - aquela impressão de segundo grau e reflexiva. Menos a razão fria que diferencia o verdadeiro do falso, mais a paixão que age e inventa; menos a indiferença irracional e mais o calor natural.
Por outro lado, as investigações, o inquérito, sempre deixam algo no ar. Há espaço para diálogo e aqui se insere o ceticismo temperado de Hume. A moral se orienta pelos mesmos princípios racionais, embora tire conclusões diferentes; não há uma filosofia doutrinária, mas uma filosofia modesta, de troca. É preciso, menos do que concluir, aprender a pensar. Hume não renuncia ao homem, mas domestica suas surpresas.
E, para lá das investigações, ainda permanecem as difíceis questões do tratado, como, por exemplo, a ideia de um eu, considerando que as nossas experiências se constituem a partir de um tecido de impressões particulares. Se a experiência só apresenta impressões sucessivas como podemos considerá-las unificadas pelo eu? O fluxo de causa e efeito da natureza é o mesmo fluxo de causa e efeito de nossas ideias... Deixemos essas pendências em aberto para exame posterior.

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* Resenha do capítulo sobre Hume no livro Gradus philosophicus: a construção da Filosofia ocidental, organizado por Laurent JAFFRO e Monique LABRUNE. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Mandarim, 1996.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Empirismo lógico*

Hume provoca uma guinada no empirismo: conceito histórico que limita o mundo das ideias ao que recebemos dos sentidos, todo o conhecimento se origina na experiência. Para Hume, as impressões que recebemos vêm dos sentidos e compõem nossas ideias, mas cada ideia é um termo separado, e cada ideia é ligada a outra por uma relação, ou seja, há ideias de termos e ideias de relações. Uma ideia não é atribuída à outra por um juízo, pelo verbo "é", mas elas são justapostas e ligadas pela conjunção "e"; é uma lógica das relações. Aqui já temos um esboço do empirismo lógico: recebemos impressões sensíveis e as ligamos logicamente.
A relação, então, é a passagem de uma ideia a outra e faz parte da natureza humana, como, por exemplo, os princípios de associação, causalidade, etc. Pelo princípio de causalidade de nossa natureza usamos locuções que não se dão na experiência, como: amanhã, sempre, necessariamente. O sol necessariamente nascerá amanhã? Não temos certeza porque isso não está dado na natureza agora, mas inferimos, cremos, daí as crenças que estão na base de nossos conhecimentos. As crenças se baseiam em casos semelhantes (todo dia o sol nasce...) que se fundem em nossa imaginação e formam nossos hábitos, mas no entendimento esses casos permanecem distintos e fundamentados na experiência. 
Portanto, as relações que estabelecemos vêm do entendimento e da imaginação. Mas podemos passar de uma ideia a outra ao acaso. Quando isso ocorre, a imaginação usa as regras do entendimento para produzir ficções, delírios, forjando princípios de natureza humana. A fantasia cria relações fictícias nos fazendo crer em loucuras e mesmo duplicando os casos reais por uma repetição verbal - e cremos no que falamos! Se o ceticismo vinha do erro dos sentidos, de sermos enganados pela impressão das coisas (lembremo-nos do exemplo de Descartes do tamanho do sol que nos aparece pela visão e é diferente do tamanho real), para Hume não há erro, não há crenças falsas, mas crenças ilegítimas. Pelas relações de causa e efeito fazemos cálculos de probabilidade, mas, às vezes, a ficção não pode ser corrigida e mesmo crenças ilegítimas vão fazendo parte de nossa natureza humana. Como acontece com as crenças ilegítimas no mundo, no eu e em Deus que formam a base de nossas crenças legítimas.
A investigação sobre o conhecimento começa e termina no ceticismo, mistura ficção e natureza humana. Mas a natureza humana não se guia somente pelos princípios de associação de onde decorrem as relações, mas de princípios de paixão de onde decorrem os pendores. Na base da associação: relações + pendores. Se os princípios da associação nos fazem ultrapassar o dado, no fundo das paixões não há egoísmo, mas parcialidade, nos apaixonamos pelos que estão próximos de nós. De forma diferente do contrato social que limita egoísmos, a proposta é superar a parcialidade, de um estado de limitações legais deveríamos criar artifícios, invenções institucionais para superar nossa parcialidade. Se Hume embricou o conhecimento entre ficção e natureza humana, agora a natureza humana deve ser inventiva para ultrapassar as parcialidades.
As paixões são a extensão artificial para superar a parcialidade humana, elas ressoam na imaginação fazendo ultrapassar os limites naturais. Os princípios de associação estão estabelecidos na imaginação como regras de cálculo, como objeto do conhecimento. As paixões, os sentimentos estéticos, morais, políticos se sobrepõem a esses objetos e formam as regras de gosto, do direito, etc. Na posse, o que vale é a relação que estabelecemos com o objeto, que seja suficiente para apresentar garantias: não basta lançar um dardo sobre a porta para garantir sua posse, é preciso tocá-la.
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*Resenha do texto: Iluminismo – Hume. De Deleuze, na coleção de História de Châtelet.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O princípio de nossas ações

Gostaríamos de entender se há um princípio básico norteando nossas ações e se ele poderia ser o mesmo para qualquer pessoa. Existem ações instintivas, fisiológicas, mas existem outras ações que se originam a partir de um valor, de uma reflexão intelectual, um cálculo. Também existe cálculo na ação instintiva, mas ele se situa na esfera da conservação de si, é um cálculo orientado para a necessidade de sobrevivência e esse valor parte de um princípio vital.
E qual seria o valor, qual seria o princípio considerando as ações que se seguem a partir de pensamentos? Por exemplo, o ato de ir trabalhar pode ser considerado um ato não instintivo. Quando acordo cedo e estou com sono, meu organismo tende a querer dormir, mas existe uma ação de levantar para ir trabalhar. Trabalho por que faço parte de uma sociedade que depende de várias funções, trabalho por que preciso ganhar dinheiro ou trabalho por que gosto? (Nos ocorre agora apenas esses três princípios para a "ação exemplo" trabalhar, mas podemos fazer outros exercícios, com outros princípios ou outras ações).
Considerando que trabalho porque faço parte de uma sociedade, trabalho para essa sociedade, mas também para que a sociedade trabalhe para mim. Nesse caso, existem várias funções e, quando possível, tentamos escolher qual função queremos realizar. Comparamos as funções utilizando vários critérios, mas escolhemos dentre as que cremos melhores para nós. Escolhendo a que consideramos a melhor, deixamos as que restam para os outros.
Considerando que trabalho porque preciso ganhar dinheiro, a resposta já está na pergunta: se preciso ganhar dinheiro me movo pela competição - quanto mais eu ganho, menos alguém ganha, não há fórmula diferente. Nessa abordagem somos forçados (por pura falta de opção), nos regulamos por uma lei da selva que me beneficie de alguma forma.
Se eu trabalho porque gosto é porque eu quero me sentir bem, independentemente do que se aplique aos outros. Eu posso gostar de trabalhar, embora todos queiram gostar de trabalhar, mas o que importa é que me seja de bom grado.
Qual valor tange os três princípios que orientam a ação de trabalhar? Obviamente, todas as ações são realizadas por um eu. Há sempre um eu como princípio de nossas ações, mas também há sempre um eu como fim, como objetivo. O eu é causa e consequência. E o valor: por trás de todas as nossas ações há um princípio básico de estudo das melhores opções para o eu, independente de consequências morais, políticas, sociais, etc., mesmo que dentro da lei. É somente esse princípio que rege as nossas ações, ele é o único valor, independente de qualquer aparência. Continuaremos com o tema...