sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

There's only Gaia but Gaia is not One

Sobre uma nova agência que explica a vida na Terra, a partir de Lovelock[i]

1. Galileu, Lovelock: duas descobertas simétricas. A respeito da simetria, para Latour, se Galileu enfileirou a Terra no rol de planetas parecidos, Lovelock a trata como único, ou seja, fomos para o infinito, mas voltamos para nossos limites. Já em 65, em Pasadena, Lovelock dizia que ao invés de enviar grandes foguetes para buscar vida em Marte, bastaria um simples instrumento para verificar se sua atmosfera seria inerte ou não[ii].

Galileu, ao verificar sombras na Lua, traz uma nova concepção de cosmos em que não há mundo sublunar, mas também uma chaga filosófica que faz dos astros “bolas de bilhar” com as qualidades primárias de extensão e movimento. Isto é, todo o universo, infinito porquê seguidor das leis da natureza, é uma res extensa cartesiana. Porém, dentro dessa res extensa infinita, Lovelock postula que Vênus, Lua, etecetera, são mortos pois estão em equilíbrio químico ao passo que a Terra é viva pois seu desequilíbrio químico nos permitiu superar todas as adversidades as quais passamos, sejam vulcões ou meteoros, por bilhões de anos. Mas, prossegue Latour, essa força terrena é uma agência cuja potência de agir precisa ser investigada e, assim, estamos de volta ao mundo sublunar.

É a pergunta que traz Latour das ideias de Lovelock: por que temos o privilégio de sermos um planeta vivo[iii]? A despeito de seu envoltório para manter as diferenças internas e externas, Lovelock traz as qualidades secundárias para o primeiro plano, isto é, a terra e seu comportamento[iv], muito além do movimento descoberto por Galileu e que, lá, instalou uma dúvida que agora se renova. Se não somos o centro do universo como pensavam os antigos, estamos presos em nossa atmosfera local, sozinhos. Sublinha Latour que não há como escaparmos para o espaço, teremos que nos ver aqui embaixo.

2. Gaia, um nome mítico perigoso para uma teoria científica. Se é Gaia o nome que Lovelock escolhe para batizar sua teoria, Latour a investiga na mitologia grega, onde Gaia aparece não como uma deusa ou figura harmoniosa, mas controversa que traz bons conselhos ao mesmo tempo que aterroriza e é impiedosa. Bem, se há uma maldição a respeito de Gaia e, não obstante os avisos recebidos para não levar Lovelock a sério, Latour explica que persistiu, pois também teria sido difícil levar Galileu a sério lá pelos idos de 1610. Mas o problema ocorre, segundo ele, ao fazer da distinção galileana de qualidades primárias e secundárias, necessária para sua abordagem, a distinção moderna Cultura / Natureza[v] que passa a ser usada como filosofia geral que retira da terra qualquer comportamento.

É daí que surge a bifurcação da natureza tratada por Whitehead[vi] e que faz com que Gaia não se encaixe nesse esquema, assim como no cosmos medieval não cabia o movimento. Porém, uma nomenclatura alternativa como “ciência do Sistema Terra” não traduz o que Lovelock propõe sobre uma Terra com sua potência de agir. A Gaia de Lovelock não é um todo já composto e nem um sistema passivo de seres inertes que mantem viva a sua fina película. Gaia que, se não tem alma, a sua natureza também não é de cunho moral quase religioso oriunda de Galileu. Gaia é, enfatiza Latour, inteiramente secular, isto é, mundana e fora da lei.

3. Um paralelo com os micróbios de Pasteur. Latour, então, faz referência a Pasteur quando tentou convencer os cirurgiões de que seus instrumentos infectados com micróbios poderiam matar os pacientes, assim como Lovelock adverte que somos a doença de Gaia, mantendo-se o desafio de guerra e paz. A batalha de Pasteur vem com a inclusão de um agente desconhecido que “superanima” o mundo, superando o que era feito na época por uma análise estritamente química. Nos exemplos que Latour apresenta, seja da levedura que é agente da fermentação ou a potência de agir dos micróbios que eliminavam a suposta geração espontânea, há sempre novos objetos que surgem povoando o mundo, seja o da metafisica ou o cosmológico (da antropologia).

4. Lovelock também está espalhando os micros atores. Se a microbiologia lutou contra químicos eminentes, Lovelock luta contra os geólogos para passar da geoquímica para a “geofisiologia”. Conforme mostra Latour, a proporção de oxigênio e dióxido de carbono na atmosfera, responsável por adiar o desaparecimento do planeta, não é somente uma questão química, mas está ligada à erosão das rochas. Trata-se não só de forças geofísicas e geoquímicas, mas de uma série de micro-organismos vivos invisíveis que regulam nossa vida, por exemplo, evitando a concentração de nitrogênio nos oceanos.

5. Como evitar a ideia de sistema? Ocorre que, segundo Latour, há a questão de não superanimar a Terra como organismo vivo: apenas um e único agente coordenador. Se Lovelock diz que a Terra se comporta como um sistema autorregulado e sugere um ser senciente, isso dá a medida de seu esforço de definição de Gaia, mas não significa que se trata de um “Todo Superior”.

6. Os organismos fazem seu ambiente, não se adaptam a ele. Também, contrariando Darwin, para Lovelock os organismos não se adaptam ao ambiente, mas ajustam o ambiente para eles, manipulando-o em vista de seus interesses[vii]. Latour ressalta que Gaia não é uma composição de partes extra partes, mas de seres que se auto contagiam intencionalmente[viii]. Não somente humanos, mas formigas e vírus, enfim, todos agem transformando sua vizinhança em prol do que lhes favorecem e isso significa que não se trata de antropomorfismo, mas de uma característica geral da qual também participamos. Então, não há uma intencionalidade da totalidade, mas uma intencionalidade diluída, ou um caos de retroalimentações mútuas.

7. Sobre uma ligeira complicação do darwinismo. Rebatendo a crítica do darwinismo, continua Latour, há certo egoísmo no cálculo de interesse de cada agente, que de forma alguma é para algum todo superior, isto é, não há um planeta vivo lutando pela sobrevivência. Conforme Latour: “se há um resto de Providência, é nos darwinianos que corremos o risco de encontrá-la” (p. 168), já que o modelo de Darwin tem a sombra de um Criador agindo na seleção natural. Latour afirma que a biologia empresta da teoria econômica um modelo de cálculo matemático entre uma necessidade interna e o ambiente externo que não faz sentido se aplicado para Gaia e seus acasos e ruídos.

8. Espaço, filho da história. Se os evolucionistas insistiram em Gaia como um todo, mantendo uma separação entre indivíduo e totalidade, também não perceberam que Lovelock não só não toma as partes, como também não usa a totalidade para tratar das escalas. Porém, para isso conta com Margulis[ix na tarefa de mostrar, por exemplo, que o oxigênio surge no final do Arqueano a partir de microrganismos que, se tóxico, permitiu o surgimento da vida e da fotossíntese. Ou seja, o veneno trouxe novas perspectivas. Mas aí não há diferença de escalas, não há uma res extensa pelo qual os indivíduos se espalham, mas campos de interações. Se não há partes extra partes, conforme já dito, somos consequência do tempo e de agentes que se desenvolvem de maneira contingente e oportuna.

9. Antropomorfizar o homo economicus na era da geo-história. De acordo com Latour e a teoria de Gaia, então, não há uma natureza em sentido clássico, mas um emaranhado de acontecimentos imprevistos e ocasionais na geo-história que agora os humanos deixam sua marca.

Entretanto, Latour enfatiza que há um humanoide que calcula, que é econômico e que se universalizou trazendo a globalização que impede a homodiversidade. Seu padrão de comportamento é o da governança e o homo economicus não passa de um cérebro simples de capitalização e consumo com mínimos desejos e preso em sua natureza econômica. A modernidade trouxe a divisão entre uma natureza necessária e o reino da liberdade humana, mas que agora cai por terra a partir do acontecimento geo-histórico que nos deixa a mercê dos acontecimentos não humanos. Nos torna humanos imóveis, impassíveis em vias de desaparecer no antes espetáculo da natureza.

Por fim, Latour lembra novamente da bifurcação na natureza, de Whitehead, que agora se transmuta em qualidades primárias que são de sensibilidade e incerteza. Acontece que Latour ressalta que não se trata de uma antropomorfização da natureza a partir de nossos valores, mas de nos enquadrar nesse novo cenário em que perdemos o papel principal, ainda que na época do Antropoceno.



[i] Resenha da Terceira Conferência de Bruno Latour: Gaia: uma figura (enfim profana) da natureza. Em LATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo / Rio de Janeiro: Ubu Editora / Ateliê de Humanidades Editorial, 2020.

[ii] Tão simples quanto o telescópio de Galileu, mas para descoberta oposta, segundo Latour.

[iii] O que quer dizer corruptível, mas animado.

[iv] Potência de agir e comportamento são elaborados na segunda conferência, a qual já tratamos.

[v] Precisaríamos voltar à primeira conferência para revisitar o tratamento desse tema.

[vi] Autor que teremos que investigar, mas que Latour usa para opor uma natureza inanimada à nossa natureza animada.

[vii] Talvez seja possível fazer uma aproximação com Simondon, tópico Evolução da Realidade Técnica, referência: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2021/05/para-uma-educacao-tecnica.html.

[viii] Isto é, segundo ele, geoquímica versus geofisiologia.

[ix] Conforme https://pt.wikipedia.org/wiki/Lynn_Margulis: Lynn Margulis foi uma bióloga e professora na Universidade de Massachusetts. (...) Margulis também foi a co-desenvolvedora da hipótese de Gaia com o químico britânico James Lovelock, propondo que a Terra funcionasse como um sistema único de autorregulação, e foi a principal defensora e promotora da classificação dos cinco reinos de Robert Whittaker.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Químicos orgânicos em Marte

Trata de elucidar alguns termos técnicos relativos à matéria sobre a descoberta de químicos orgânicos em Marte[i]

Olhar Digital informa que o rover Perseverance encontrou traços de compostos orgânicos no planeta vermelho, especificamente na Cratera Jezero onde a nave posou em fevereiro desse ano e que teria sido um grande lago há alguns milhares de anos[ii]. O rover Perseverance foi lançado em 30 de julho de 2020 e faz parte da missão Mars para “procurar sinais de vida antiga e coletar amostras de rocha e regolito (rocha quebrada e solo) para possível retorno à Terra”[iii].

A matéria informa que essa descoberta é um marco histórico pois, como os elementos são compostos por carbono, haveria a possibilidade de ter existido vida naquele planeta[iv]. Por outro lado, pela reportagem não se pode ter certeza já que tais complexos podem ser de origem não biológica e as conclusões, talvez, só possam ser aprofundadas com a volta da missão, prevista para 2031.

Mas é justamente o fato de ter havido água naquele ponto o foco da coleta. Também, pela presença de água ocorreu menos erosão e maior chance de armazenamento de vida nas rochas sedimentares[v]. Enfim, o rover segue sua missão de coleta de pedras para tentar verificar a habitabilidade de Marte, bem como desvendar um pouco mais da história daquele planeta. Inclusive com o uso do helicóptero Ingenuity a ele acoplado e que pode fazer voos multidirecionais aonde o rover tem dificuldade de acesso.



[ii] Marte é chamado de planeta vermelho em virtude da grande concentração de óxido de ferro (ferro e oxigênio) no solo. Conforme https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/planeta-marte.htm, sua temperatura média atual é de -60 graus, o que inviabiliza a presença de água em estado líquido.

[iv] Conforme Wikipedia: “O carbono é um componente-chave de toda a vida que ocorre naturalmente na Terra. Moléculas complexas estão estruturadas por carbonos ligados com outros elementos químicos, especificamente o oxigénio, o hidrogénio e o nitrogénio, sendo que o carbono é capaz de formar ligações com eles(...)”. Acesso: https://pt.wikipedia.org/wiki/Vida_baseada_em_carbono.

[v] “Rochas sedimentares são formadas pela deposição e compactação de diversos tipos de sedimentos ao longo de milhões de anos. Os principais agentes atuantes na área de origem dos sedimentos são o intemperismo e erosão. O intemperismo físico desagrega as rochas. O intemperismo químico transforma minerais e rochas em sólidos alterados, soluções e precipitados. Já a erosão remobiliza as partículas produzidas pelo intemperismo para outras áreas de deposição. As rochas sedimentares possuem grande importância econômica, dentre as quais destacam-se as jazidas de carvão, petróleo e gás, que são originadas de partículas orgânicas depositadas junto a outros sedimentos nas bacias sedimentares. Além disso, são as rochas sedimentares que abrigam os fósseis, que são os restos de animais e plantas que viveram no passado, e se preservaram nesse tipo de rocha, possibilitando a compreensão e interpretação da evolução da vida ao longo dos diferentes períodos de idade da Terra.” Conforme: https://www.infoescola.com/geologia/rochas-sedimentares/.

domingo, 28 de novembro de 2021

If you see something say something

Prescreve um discurso híbrido (descritivo-prescritivo) para a ciência contemporânea[i]

Bruno Latour retoma o tema da primeira conferência, ou seja, da disputa entre climatologistas e climatocéticos, tratando a questão do clima como uma guerra sobre a qual os cientistas não podem se calar. A conferência traz verdades inconvenientes, a partir de uma matéria do Le Monde, que mostra que o nível de dióxido de carbono no ar é o mais alto em 2,5 milhões de anos[ii]. Ora, mais do que descrever um fato, tal reportagem também o prescreve, independentemente de se em tom de constatação ou performativo e, também, a reboque do que deve ser enfatizado sobre o Antropoceno[iii]: sim, o ser humano mudou a geo-história e já a teria impactado em um ponto de não retorno.

Porém, rompendo a neutralidade axiomática, tais enunciados sobre o clima alertam para um agir, uma potência de agir no sentido espinosano, como adverte Latour, mas eles não dizem detalhadamente o que fazer. Ora, além disso, a potência de agir se rompe a atores inertes que seriam do discurso científico ou animados, da subjetividade humana ou de um rio, exemplo que Latour apresenta, e tais fronteiras se confundem quando eventos naturais são mais potentes que ações humanas, etc.[iv] A isso soma-se também o antropomorfismo que jornalistas acrescentam em suas descrições de fatos científicos e que se transformam em dramas narrativos, conforme continua a argumentação de Latour. Ali, vê-se como hormônios e neurotransmissores “inertes” atuam no organismo e impõem a sua vontade, etc., e se mostra como atores humanos podem ter sua vontade relegada e atores não humanos terem a vontade exacerbada, assim como não se distingue Natureza e Cultura, todos tendo objetivos e intenções ao invés de se partir de atores arbitrários.

Se Galileu disse: “A terra se move!”, hoje podemos dizer: “A terra se co-move” (treme, terra animada...). Se lá ele mostrou que não só a terra era corruptível[v], hoje mais do que corruptível, além de movimento, ela tem um comportamento. Latour trata de uma contrarrevolução copernicana, o Novo Regime Climático, no qual emerge uma terra inquieta e desperta pela nossa ação e que tem ela mesma potência de agir. Terra que passa de mundo objetivo a ser controlado pela ciência para sujeito, esvaziando a polarização moderna sujeito-objeto[vi].

Então, passa-se do contrato social proposto por Rousseau ao contrato natural desenvolvido por Michel Serres[vii]. Esse último com inspiração newtoniana, pois foi Newton quem tratou da interação entre “objetos”, por exemplo, como é o caso da força de gravidade, conceito que explicava a atração entre corpos e que poderia, sub-repticiamente, se dar por uma “força angelical”, senão que força seria essa que não a dos anjos? Todavia, o contrato natural se dilui em um compêndio de entes com suas potências de agir em exercício, seja um ser humano, um rio ou um hormônio.

Mas é precisamente uma distinção entre Cultura e Natureza que tenta fazer com que se (des)anime os atores materiais e se superanime os humanos. Se as narrativas dos acontecimentos têm causas e consequências que se pretendem fora do mundo da liberdade humana, Latour argumenta que a própria semiótica pode se aplicar a todos os agentes que ele trata em seus exemplos, pois é pela ação que eles significam a sua existência em um mundo aninado no qual estamos implicados.

*  *  *  *  *  *

Fechando questão, nessa 2ª. Conferência Latour procurou mostrar que a Terra não tem somente movimento, mas comportamento e, nesse sentido, “não está morta”, não é inerte como tendendo a permanecer na inércia, oriunda, segundo ele, de uma potência de agir entre causas e consequências, mas presa nas primeiras e produzindo o efeito da desanimação mas também aí remetendo a uma causa primeira como que criacionista.

Segundo Latour, uma visão científica da natureza dentro da série causal deixa de fora o acontecimento e retira do mundo sua historicidade. Ele aponta, então, que se saia da “religião da natureza” e se possa vê-la animada ainda que hoje como Gaia em estado permanente de guerra. A natureza deixa de ser pano de fundo e se junta à luta e passa a ser um sujeito ativo enquanto os humanos estão passivos, senão inertes.



[i] Resenha da Segunda Conferência de Bruno Latour: Como não des(animar) a natureza. Em LATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo / Rio de Janeiro: Ubu Editora / Ateliê de Humanidades Editorial, 2020.

[ii] Ultrapassou-se o limiar de 400 partes por milhão (ppm). Outro dado que Latour cita é a conversão de nitrogênio atmosférico em fertilizantes, o que nos leva a eventos da ordem de bilhões de anos atrás. Conforme Agricultura industrial e ciclo do nitrogênio, artigo de Antonio Silvio Hendges, disponível em https://www.ecodebate.com.br/2010/07/01/agricultura-industrial-e-ciclo-do-nitrogenio-artigo-de-antonio-silvio-hendges/, esse processo era antes natural e passa a ser feito industrialmente depois da 2ª. Grande Guerra, pelas sobras de nitrato de amônio usado para fabricar explosivos. Então, “ainda estamos comendo as sobras da Segunda Guerra (Vandana Shiva)”. Porém, tem por base os combustíveis fósseis, na proporção de uma caloria de combustível fóssil por uma caloria de comida. Apesar de haver 78% de nitrogênio atmosférico, sua distribuição é irregular, com grandes populações subnutridas sem acesso a ele, como na África. Por outro lado, em monoculturas há grande contaminação ambiental por conta do nitrogênio sintético que se perde no processo produtivo, principalmente no Brasil, China e Rússia. Conforme Antônio: “Os efeitos da utilização indiscriminada de fertilizantes nitrogenados e do atual modelo de desenvolvimento da agricultura e da agropecuária podem ser tão impactantes e prejudiciais para o ambiente e a humanidade como as mudanças climáticas, sendo um dos principais fatores que afetam negativamente a biodiversidade.”

[iii] Conforme https://museudoamanha.org.br/pt-br/antropoceno: Antropoceno é um termo formulado por Paul Crutzen, Prêmio Nobel de Química de 1995. O prefixo grego “antropo” significa humano; e o sufixo “ceno” denota as eras geológicas. Este é, portanto, o momento em que nos encontramos hoje: a Época dos Humanos. Aquela em que o Homo sapiens constata que a civilização se tornou uma força de alcance planetário e de duração e abrangência geológicas. Somos bilhões de pessoas no mundo e continuamos nos multiplicando.

[iv] Os exemplos e passagens que Latour descreve tornam cristalina tal divisão (p. 87 e seguintes).

[vi] E aqui vemos brotar um pensamento originalmente pós-moderno, contemporâneo.

[vii] Ainda não o conhecemos... conforme Wikipédia: “Michel Serres foi um filósofo francês. Escreveu entre outras obras "O terceiro instruído" e "O contrato natural". Atuou como professor visitante na Universidade de São Paulo. Desde 1990 ele ocupou a poltrona 18 da Academia francesa”.


quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Seita do aquecimento

Busca saber se o aquecimento global é de origem humana[i]

Bruno Latour trata da “disputa” entre climatologistas e climatocéticos a respeito da “paternidade” do aquecimento global. Há aí uma questão moral de fundo, pois, se “comprovada” a responsabilidade humana no aquecimento global, isso nos tornaria culpados pela catástrofe global, o que, se por um lado nos envergonharia, por outro nos imporia a necessidade da busca de ações no sentido de uma mudança radical de vida[ii].

Além da questão moral, há obviamente a questão capitalista-político-financeira, já que partiria do lobby de grandes grupos econômicos o financiamento das campanhas climatocéticas, isto é, aqueles que tratam o aquecimento global como uma questão independente de nós e que, oxalá, já estivesse superada.

Entretanto, Latour argumenta que há uma nova era geológica criada pelo ser humano, um novo ponto de inflexão. Ou seja, a nossa ação teria causado abalos em toda a estrutura terrestre, pela contribuição com o efeito estufa através da difusão de dióxido de carbono, CO2. Mas é justamente esse ponto que as grandes empresas desejam esconder, advogando contra o que apresentam os cientistas.

Diante disso, introduzimos a terceira questão que apreendemos em uma primeira lida do texto de Latour: a questão da certeza científica, quer dizer, o problema epistemológico. Dado que os climatocéticos dizem que não se pode comprovar as mazelas naturais a partir da ação humana, eles transferem toda a responsabilização da certeza dos eventos para os cientistas. Ora, é aí que entra o dogmatismo científico que deveria trazer essa certeza inabalável sob pena de culpa, em caso contrário.

Mas é justamente sobre esse ponto que Latour se opõe: não se trata de uma seita do aquecimento, de um grupo liderado para imprimir essa condição ao ser humano. A valer, é a estratégia climatocética que pretende trazer à tona essa caracterização da ciência como impositora da verdade e que não passa de uma armadilha: se os cientistas negam tal condição, ficam à mercê de um debate muitas vezes infrutífero, se aceitam, se auto intitulam dogmáticos.

O que parece ser a saída para essa encruzilhada é trabalhar com os fatos e os dados que mostram um planeta cada vez mais dilacerado. Parece que a saída será apontada por Willian James, pelo seu pragmatismo, mas isso são cenas dos próximos capítulos. Por hora ficaremos por aqui, mas esperando voltar ao assunto em breve.



[i] Breve comentário sobre a Primeira Conferência de Bruno Latour: Sobre a instabilidade da (noção) de natureza. Em LATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo / Rio de Janeiro: Ubu Editora / Ateliê de Humanidades Editorial, 2020.

[ii] Mas, conforme Latour ressalta, isso já foi refutado por Bush: “The American way of life is not negotiable” (nota 43, p. 52).

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Um debate sobre privacidade e segurança a partir dos vazamentos de Snowden

Trata da promiscuidade e ambivalência no ecossistema tripartite do Big Data, que envolve instituições, empresas e academia[i]

Introdução. Na introdução do artigo, van Dijck recapitula o vazamento de Snowden, em 2013, que relata práticas de espionagem da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos no Facebook, Google, Apple, etc., ocasião em que se mostrava ao mundo que seus agentes tinham acesso aos dados dos cidadãos de forma integral. Isso já se revelava pela máxima: “Confiamos em Deus, todos os outros, nós monitoramos” e, então, ficava claro que nossas informações pessoais têm seus metadados compartilhados pelas corporações de redes sociais com agências de inteligência ou comercializados com terceiros, o que significa exposição da privacidade em troca de serviços gratuitos.

Para van Dijck, a tolerância das pessoas com tal prática se daria devido à difusão da datificação como novo paradigma científico e social[ii]. Entretanto, van Dijck visa desconstruir as bases ideológicas dessa prática que vem se difundindo na academia e entre os adeptos da tecnologia como oportunidade de investigar o comportamento humano. Incomoda van Dijck a crença na quantificação objetiva que, apesar de exemplos convincentes do Big Data, também envolve a confiança nos agentes institucionais que manipulam tais (meta)dados.

Essas noções de crença e confiança são particularmente problemáticas para van Dijck pois os documentos de Snowden já mostravam que as pessoas têm fé nas regras que os agentes se guiam para executar a vigilância dos dados, quando na verdade a NSA costuma desobedecer a decisões judiciais e testar limites legais sobre a invasão de privacidade. Tudo isso mostra uma confusão nas premissas ideológicas do dataísmo[iii] colocando a credibilidade do ecossistema em xeque e a pergunta que van Dijck faz sobre qual atitude crítica tomar perante esse cenário.

Datificação e “mineração da vida” como um novo paradigma científico. Foi o advento da Web 2.0 e redes sociais como Facebook, Twitter, LinkedIn e Youtube, que fizeram da datificação um paradigma, na medida que permite codificação de comportamentos sociais que, quantificados em metadados, se tornam recursos valiosos. Ressalta van Dijck que o Big Data surge como “santo graal do conhecimento comportamental”, como se pode notar quando o Twitter, se passando por plataforma neutra, traz a espontaneidade dos “trends” como termômetros de emoções e reações sociais, ainda que baseados em hashtags e algoritmos. Para os cientistas da informação, a mídia social ecoa pegadas naturais que veem o Twitter como detector de sentimentos que promete ser mais confiável que entrevistas ou levantamentos tradicionais, embora se tenha em conta os vieses da representatividade dos dados lá coletados ou mesmo o favorecimento de usuários influentes.

Além disso, os entusiastas da datificação também ressaltam os padrões que são gerados nas plataformas que, através de likes do Facebook, permitem predizer comportamentos como orientação sexual e valores religiosos que ajudariam em analises psicológicas e recomendação de produtos, além de aperfeiçoar seus próprios serviços. Porém, importa registrar tudo para prever planos futuros, a chamada “mineração da vida” (life mining) que gera conhecimentos úteis para serviços de inteligência policial, isto é, vigilância, e também marketing. Contudo, parece-se ignorar comportamentos como manipulação por robôs e / ou as chamadas estratégias de monetização pelos algoritmos de recomendação que vão de encontro à dita neutralidade. É aí que van Dijck mostra que a datificação se apoia em pressupostos de normas sociais dominantes, por uma permuta de informações pessoais por serviços e abrindo mão da privacidade. Tudo isso serve de ativo que é processado fora de contexto para serem vendidos pelas plataformas e, chancelado pela ANS, deixa claro o papel ideológico em um inextricável nó entre sociabilidade, pesquisa e comércio.

Dataísmo: desvendando as bases ideológicas da datificação. Conforme van Dijck, a racionalidade da mineração de dados se assenta em duas pressuposições ontológicas e epistemológicas: a crença na objetividade da quantificação do comportamento humano e na sua predição em cima de (meta)dados. Sobre o primeiro ponto, as pilhas de (meta)dados são tudo, menos objetivas, já que por trás de “likes” e trending topics há algoritmos subjacentes que calculam valores sociais. Ora, os dados brutos então é que são minerados para se extrair algo e, como podem ser ruins, incompletos ou insuficientes, acabam sendo guiados por questões delimitadas. Ou seja, há questões de fundo que formam um quadro interpretativo que prefigura a análise dos dados e, daí, geram um padrão preditivo[iv].

Há de se perguntar sobre por que buscar determinados padrões nas bases de (meta)dados, com quais objetivos e interesses? Milhares de postagens de mães jovens no Facebook podem ser investigados sobre um prisma comportamental (hábitos alimentares), médico (depressão pós-parto) ou de consumo (produtos para bebê), por exemplo. Conforme van Dijck:

“Os métodos quantitativos requerem firme questionamento qualitativo para contestar a alegação de que os padrões de dados são fenômenos naturais. A pesquisa de Big Data sempre envolve um (sem trocadilho) prisma explícito.”

Ou seja, dados brutos minerados pelo Big Data poderiam tomar outras visões se por um enfoque das ciências humanas ou sociais: há perspectivas diferentes entre médicos e criminologistas. Mas é nessa retórica dos dados que a lógica dataísta pretende convencer, de que os dados estariam fora de estrutura predefinidas, sem objetivos prévios ou por mero interesse no comportamento humano. Isso posto, há que se explicitar tais prerrogativas se se deseja a confiança no paradigma da datificação.

Dataísmo e confiança nas instituições. Com o aumento de atividades online todo o ecossistema necessita da confiança dos usuários, mas sua integridade, segundo as plataformas, deveria estar a cargo das agências de governo que deveriam zelar pela privacidade. Se os autores de Big Data clamam por auditores de governança, chamados “algoritmistas”, a academia também pede transparência das agências.  Fica claro, então, a distinção de papel de cada ator na busca por confiança e credibilidade embora, conforme os arquivos de Snowden mostraram, muitas vezes instituição de coleta se misturem com agências reguladoras. Na verdade, tanto o meio corporativo, quanto o acadêmico e estatal desejam acesso aos dados e manutenção do paradigma da datificação, posto as promessas de predição do comportamento. Mas, mostra-se que academia e setor público usufruem dos dados coletados das plataformas, que se dizem mais eficientes e capazes de antecipar as tendências. Além disso, a forte intercâmbio de técnicos entre NSA e Vale do Silício, por exemplo, com desenvolvimento conjunto de tecnologia, embora um buscando inteligência e outro dinheiro, mas muitas vezes convergindo, os três setores, no uso de ferramentas.

Pois bem, a doção do dataísmo traz uma crença na proteção dos dados dos usuários, mas também confiança na independência entre plataformas, agências e pesquisadores. Porém, aí reside o conflito, já que o ecossistema está todo conectado, seja na infraestrutura como na lógica operacional. A credibilidade se coloca em risco devido ao monumental fluxo de dados (e-mails, vídeos, texto, som e metadados) que extrapola territórios e se digladia em zonas de acesso e restrições, levando ao questionamento dos usuários-cidadãos sobre as interrelações entre empresas e governo, levando a debates políticos e confrontos judiciais. É essa agregação problemática entre a confiança institucional e as premissas da datificação que van Dijck enfatiza, somando-se ainda o interesse relevante na data vigilância.

Data vigilância e a luta por credibilidade. Data vigilância significa monitoramento contínuo de dados com sérias consequências no contrato social entre empresas e governo, bem como envolvendo os cidadãos consumidores. Ora, a questão data vigilância como fator de risco na confiança do ecossistema se colocou depois do vazamento de Snowden, quando surpreendentemente as plataformas (Google, Facebook, Yahoo e Microsoft) processaram a NSA por colocar em risco a privacidade das pessoas em troca de sua proteção.

Mas é ambivalência que está na base da relação das plataformas com as agências. Depois do 11 de setembro e a Lei Patriótica, as empresas se submente ao governo diminuindo a confiança do público nas estratégias de data vigilância. Por outro lado, as empresas, ao mesmo tempo que pedem mais leis, acusam o governo de regulamentação excessiva. Ambivalência que se mostra em uma suposta relação de transparência entre empresas e usuários: se elas apelam pelo compartilhamento de dados, não devolvem transparência, além de constantemente atualizarem seus Termos de Uso sobre políticas de privacidade, que levam a acionamentos de grupo de defesa de consumidores. E a ambivalência também ocorre dentro do governo, já que as agências de inteligência têm interesses contraditórios com os órgãos reguladores, o que dificulta ainda mais a confiança no ecossistema e na relação privacidade-segurança.

Contudo, van Dijck aponta que a responsabilidade por manter a credibilidade do sistema vem da academia, mostrando que o paradigma de datificação não é neutro e evitando aceitação acrítica de suas premissas ideológicas e comerciais. Se já foi mostrado aqui os vieses e indagações, van Dijck sugere uma investigação do método cientifico que traga abordagens computacionais, etnográficas e estatísticas para verificabilidade das análises preditivas. São os acadêmicos que precisam passar em revista as questões epistemológicas e ontológicas, já que podem arbitrar, sobre fatos e opiniões, conforme a referência que van Dijck faz a Bruno Latour.

Por fim, van Dijck salienta que foram as ações inescrupulosas de Snowden que desencadearam o debate sobre data vigilância, mostrando a força de uma “agente bomba” que abalou o complexo de forças estatal-industrial-acadêmico, que mostraram as falhas estruturais do ecossistema, a incapacidade dos usuários frente a complexidade do sistema e ao novo paradigma de sociabilidade. Entretanto, a despeito da maioria dos estadunidenses ainda acreditam que os dados são usados para fins outros que a luta contra o terrorismo, a dataficação com paradigma neutro e data vigilância normalizada como prática de monitoramento social faz com que esses temas ainda devam ser esclarecidos perante à sociedade.


[i] Conforme Dijck, J. van. (2017). Confiamos nos dados? As implicações da datificação para o monitoramento social. MATRIZes, 11(1), 39-59. https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v11i1p39-59. Abstrai-se na resenha todas as referências, para tal deve-se buscar o original.

[ii] O termo “datafication” foi cunhado por Mayer-Schoenberger e Cukier, em 2013, para se referirem à transformação da ação social em dados que podem ser quantificados e usados em tempo real ou para fazer predições sobre o comportamento humano. Já tratamos do tema em uma reflexão anterior a partir do Lab404, aqui: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2021/10/dataficacao-da-vida.html, porém como dataficação e não datificação.

[iii] No artigo o autor usa indistintamente datificação e dataísmo. O último, entendemos, estaria mais ligado a Yuval Harari.

[iv] Por exemplo, acompanhar o comportamento de determinados grupos em situações específicas para prever situações de compra que são repassadas aos anunciantes.

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Notas sobre Ockham

Sobre Ockham e a querela dos universais, que já por aí fundamenta a sua famosa “navalha” e abre caminho para Ciência Moderna[i]

1. Sobre sua vida. Ockham viveu na Inglaterra, por volta dos anos 1300, na alta Escolástica. Frade franciscano e classificado por Vitor como um vanguardista, foi denunciado como herege por sua luta contra a teocracia e a proposta de separar fé e razão, ficando essa a cargo da filosofia e, por conseguinte, precursora da liberdade de expressão.

2. Herança aristotélica. Porém o que nos importa aqui é verificar a contribuição de Ockham no problema dos universais, que percorre a Idade Média. Antes das obras de Aristóteles serem reintroduzidas em seu todo pela Escolástica, haviam apenas traduções de obras lógicas oriundas de Boécio e Porfírio, o último influenciado principalmente pelas Categorias[ii]. A esse respeito, se pergunta Porfírio:

- Os gêneros e as espécies têm existência real?

- Se sim, eles são materiais, imateriais ou existem só na mente?

3. A árvore de Porfírio. Vitor ressalta que se o tratado das Categorias é uma ontologia do real, do que há de mais geral na realidade, Porfírio passa para a predicação, combinando frases e a ligação entre sujeito e predicado. Daí surge a “árvore de Porfírio”, na qual as espécies são divididas dentro dos gêneros e pela qual uma espécie pode se tornar um gênero e vice-versa[iii]. Então, há uma hierarquia de universais que são espécies e gêneros, dentre eles o homem, o animal, o corpo, etc.

4. A colocação do problema. Mas, teriam esses universais uma existência real? Existe o homem ou somente existem indivíduos? Seria o homem um conceito na mente? Se Platão postulou que sim, que há formas reais, essências[iv], para Aristóteles existe a forma homem, mas em cada indivíduo, que também é matéria, com a exceção do primeiro motor[v].

5. Possíveis soluções. Pois bem, haveriam três possíveis soluções para o problema dos universais. A primeira delas é do tipo platônico, um realismo que postula que universais são entidades metafísicas subsistentes. Ou seja, além de existirem vários gatos que conhecemos, existe a forma “gato”, separada. Assim como o belo, a justiça, etc. Há o nominalismo, para o qual os universais não têm existência própria e, nesse caso, “gato” é só uma convenção, uma questão de linguagem. Por fim, para o conceitualismo, “gato” é uma abstração que a razão cria a partir das várias realidades individuais, isto é, dos gatos.

6. A resposta de Ockham.  De acordo com Vitor, Ockham se situa em um nominalismo que se aproxima do conceitualismo, pois não se trata somente de meros nomes. Isso porque, o nominalismo tende a ser relativista, ao passo que o conceito estabelece uma relação com a coisa nomeada. Para o nominalismo tanto fará uma coisa se chamar A ou B, digamos.

7. Religião, ciência e ontologia. Isso posto, para Ockham, os artigos da fé não são princípios de demonstração, e aí se contrapondo a São Tomás. E também não são auto evidentes. Deus é onipotente e não se vincula a nós: de um lado a fé e do outro a filosofia, a primeira com Deus e a segunda com os indivíduos que estudamos.

Essa argumentação está em linha com um pensamento que não se filia ao universal. Para Ockham, não se conhece a sabedoria de Deus. Há um “primado do indivíduo”: um mundo com elementos individuais desvinculados entre eles. E, também, o objeto da ciência não é universal, como em Aristóteles, já que não sabemos se há o universal. Sabemos que existem indivíduos contingentes e não há nenhum nexo necessário, metafísico, causal que os correlacionam.

É o “primado para experiência”: conhecimento de termos singulares, que passam pelos sentidos. Assim funciona o pensamento, feito de conceitos na mente, formas verbais.

8. A Navalha de Ockham. Por fim, Ockham reduz a régua ontológica aristotélica que postulava as dez categorias do real. Para ele devemos descrever a realidade sem complicação excessiva e cortar entidades que não precisam existir. Mais simples, mais próximo da verdade. É o princípio da parcimônia que faz com que as categorias se resumam a substâncias e qualidades, quiçá somente acidentes. Para Vitor, cortar o que está sobrando na teoria prenuncia a ciência moderna (como funciona) e não mais o que é determinada coisa (ciência antiga / medieva).

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

A identidade de Vênus, segundo Frege

Visa explicar a diferença de valor cognitivo entre sentenças de identidade que possuem as formas "a = a" e "a = b" [i]

Suponhamos que existam duas sentenças de identidade, conforme abaixo:

Sentença 1: [a = a].

Sentença 2: [a = b].

Tomando a como: “a estrela da manhã” e b como “a estrela da tarde”, teríamos:

Sentença 1: [a estrela da manhã = a estrela da manhã]. Isto é: “A estrela da manhã é a estrela da manhã”.

Sentença 2: [a estrela da manhã = a estrela da tarde]. Isto é: “A estrela da manhã é a estrela da tarde”.

De acordo com Frege, a sentença 1 é evidente em si, ou seja, é analítica e a priori. Seus próprios termos já solucionam a questão. Ela é uma sentença trivial. Já a sentença 2 não é evidente em si, ou seja, é sintética e a posteriori e os termos não a solucionam pois há informação que deve ser investigada. Ela é uma sentença informacional. Então, tendo uma diferença de grau de informatividade, elas têm diferença de valor cognitivo pois permitem diferentes compreensões[ii], como:

Opção 1: Acreditar que “A estrela da manhã é a estrela da manhã, mas não acreditar que “A estrela da manhã é a estrela da tarde”.

Opção 2: Não saber que “A estrela da manhã é a estrela da tarde” e descobrir que “A estrela da manhã é a estrela da tarde”, ou seja, ampliar o conhecimento.  

Agora, tomando a como “Vênus” e b como “a estrela da manhã”, teríamos:

Sentença 1: “Vênus é Vênus”.

Sentença 2: “Vênus é a estrela da manhã”.

Esses novos exemplos parecem deixar claro que as sentenças tratam do mesmo conteúdo (Vênus) e, nesse caso, como seria possível terem valor cognitivo diferente? Naidon postula que, de acordo Frege, elas teriam valor cognitivo diferente porque a sentença 2 possui dois termos singulares: "Vênus" e "a estrela da manhã" (assim como no primeiro exemplo). Mas, ambas se referem ao mesmo objeto, embora a primeira seja mais trivial. Não só isso, eles (os dois termos) são exatamente, numericamente, o mesmo[iii].

O problema que surge é que parece ser uma solução arbitrária porque nada garante que cada termo singular designe o mesmo objeto, e aí poderíamos usar sentenças que tomassem qualquer definição. Então, não se trata de agregar um conhecimento real fora da linguagem e, daí, poderiam ter o mesmo valor cognitivo, o que inviabiliza tudo o que foi dito até agora e traz uma nova perspectiva ao problema que estamos tratando, da diferença de valor cognitivo entre sentenças de identidade.

Conclui-se que não se trata somente de conteúdo, mas do sentido e sua referência. Se expressamos "Vênus" ora como a estrela da manhã e ora como a estrela da tarde, não se trata de nos perguntarmos pelo conteúdo do que é dito (a mesma referência, digamos assim), mas do sentido, da informação que se transmite de modos diferentes. E cada modo é um sentido diferente e, por isso, um valor cognitivo diferente, um pensamento diferente, não havendo necessidade de referir-se ao conteúdo em si.

Vênus, estrela d´alva, estrela Vésper, tem brilhado muito esses dias. Agora, de lá, teríamos essa visão da Terra:

https://pbs.twimg.com/media/FDX6hBnWEAUnvK4?format=jpg&name=small

(Conforme: Black Hole: https://twitter.com/konstructivizm).



[i] A partir de https://revistas.pucsp.br/cognitio/article/download/5808/4118, acessado em 06/11/2021.

[ii] Conforme Naidon: "Valor cognitivo consiste, por conseguinte, no quanto uma sentença é capaz de fornecer conhecimento a quem a compreende se ela for verdadeira".

[iii] Sobre Vênus e identidade numérica: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2020/02/duas-acepcoes-de-identidadei.html.