sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Lé com cré

Gostaríamos de falar um pouco sobre os momentos da vida e como eles nos tocam e influenciam como, por exemplo, as datas comemorativas, festivas ou marcantes, já que estamos no período das festas... Obviamente, tais acontecimentos nos mobilizam e sensibilizam. Muitas vezes temos que nos planejar com antecedência e nos preparar para viajar, encontrar parentes e amigos, etc. Esse é um dado de realidade que nos permeia desde os primeiros anos de vida e assim somos constituídos.
Importantes ou não, chatos ou legais, eles são inevitáveis e extremamente relevantes, quer participemos ou não, afinal há uma possibilidade de fuga e ela não é descartável. Porém, durante tais períodos, ainda há rotina, mesmo que tutelada pelo evento principal. Há o dia e a noite, a segunda-feira, terça-feira, etc., o fim de semana. Há o dia a dia, o início e o fim do mês, etc. Há ciclos: horários, diários, semanais. E o que sobressalta nessa rotina é o repentino, já que dentro do previsto há o imprevisível que nos traz a novidade que deve ser administrada.
Então, por mais que haja rotina, há situações inusitadas e, na repetição, há a diferença. Um hábito, independentemente de sua frequência, é um hábito onde se pretende retomar uma experiência passada que nele é projetada. Um hábito é um fazer reiterado onde cada reiteração não é a mesma. De certa forma, uma rotina é sempre a garantia de que haverá a repetição, independentemente de quão diferente seja ou não, ou até que atinja certo limite, etc.
Se de dia falo lé e de noite falo cré, lé com cré são linguagens suplementares. Mas tanto lé influencia cré como cré influencia lé. Afinal somos um, embora nem sempre o mesmo. É dessa interação e dessa interminável e dinâmica sucessão que vamos construindo os momentos de nossa vida, ainda mais em período de festas, pois as variáveis se multiplicam. Embora anestesiados pela multiplicidade de tais situações sempre nos haveremos com nossos lés e nossos crés. E se não falo lé com cré é porque eu num qué.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Genealogia e Arqueologia [i]


“Portanto, os dois pontos propostos para essa discussão sobre o estatuto da diferença e da síntese correspondem ao pressuposto genealógico da diferença, identificado por meio de uma analítica, e ao universo metodológico da arqueologia, que transpõe a síntese para a esfera discursiva de uma “gramática casual”” (p. 256, grifo nosso).

Comecemos do fim, a partir da citação acima, porque queremos fazer um pequeno recorte desse breve, porém denso, ensaio. Há um procedimento em Foucault, inicial, de olhar a história analiticamente, como sucessão temporal de fatos e eventos, chamado de genealogia[ii]. Segundo Monica, esse procedimento assemelha-se à associação de Hume, através da qual a experiência é a base do entendimento humano na medida em que há uma série de eventos que vão se correlacionando e formando uma experiência complexa. Abstratamente, mas temporalmente, uma maçã é a soma da cor, sabor, cheiro, forma, etc.
Isso posto, entretanto, não há em Hume um sujeito unificador dessa experiência. A associação começa pela experiência do sujeito (analítica) capaz de distinguir ideias partindo em direção a uma síntese dessa experiência, porém não arbitrária ou necessária, mas que é realizada pela mente de forma imediata e, mais do que isso, temporal e que tende a regular as próximas experiências.
Porém, voltando à citação inicial e a Foucault, Monica argumenta que, depois que Foucault “difere” pequenos eventos históricos (assim como a mente, em Hume, difere as ideias na imaginação), em certo momento um grande período histórico se sintetiza no método arqueológico[iii]. Essa união, claramente, deixa de ser um processo analítico para buscar uma episteme de época que, segundo Monica, se baseia em um “a priori” de possibilidade no sentido kantiano comprometendo a diferença da genealogia. Foucault está entre a possibilidade de uma história contingente[iv] e sua tendência a um possível irracionalismo e lança mão do expediente kantiano para vislumbrar uma história possível em contraparte à história concreta da genealogia.
Daí que, se Hume e Foucault se valem de um expediente analítico baseado na diferença, a síntese em Hume se dá a posteriori pelo caminho percorrido pela analítica ao passo que Foucault retoma Kant, o que “significa recobrir a diferença com uma síntese que não é da ordem da temporalidade e da experiência, como em Hume, mas da ordem de um “a priori histórico” discursivo” (p. 256). Isso comprova que a história da filosofia não é progressiva e evolutiva e que Hume pode estar à frente de Foucault, em alguns aspectos. Resta a questão de saber se seria possível uma história puramente contingente e ainda racional, sem lançar mão de qualquer expediente kantiano, ou seja, que inclua um sujeito no comando.




[i] Ensaios de Filosofia em homenagem a Carlos Alberto R. de Moura. Débora Cristina Morato Pinto, Luiz Damon Santos Moutinho, Marcus Sacrini, Monica Loyola Stival (Orgs.). Curitiba: Editora UFPR, 2015. Diferença e Síntese em Hume e Foucault – Monica Loyola Stival.
[ii] Genealogia é o mapa das ligações biológicas entre diferentes indivíduos e gerações. Como ciência, é uma auxiliar da história, estudando a origem, evolução e dispersão das famílias e respectivos sobrenomes ou apelidos. Cf.: https://pt.wikipedia.org/wiki/Genealogia, visitado em 20/12/18.
[iii] Arqueologia é a ciência que estuda as culturas e os modos de vida das diferentes sociedades humanas - do passado e presente - a partir da análise de vestígios materiais. (...) A ciência arqueológica pode envolver trabalhos de prospecção e escavação (...) para assim traçar os comportamentos da sociedade que as produziu. Cf.: https://pt.wikipedia.org/wiki/Arqueologia, visitado em 20/12/18.
[iv] Foucault recorre ao expediente de olhar cada evento nominalmente em si evitando o uso de universais que normatizariam a narrativa.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

O deus brasileiro é fake

A eleição de Jair Bolsonaro para presidente do Brasil revela um lado sombrio do povo brasileiro, que se mantinha debaixo do tapete. A história de Jair Bolsonaro, pessoal e pública, e seu discurso, são marcados por violência, falas desconexas, exaltação à tortura, ameaça às minorias e aos direitos humanos. Jair Bolsonaro não disse isso uma ou duas vezes, disse isso inúmeras vezes, reiteradas vezes, no microfone e em rede nacional. Tal discurso ressoa na sociedade, trazendo medo e instabilidade.
Essa fala violenta de Jair Bolsonaro é ancorada por citações bíblicas, por referências a Deus. Mas, poderia a religião cristã (católica, evangélica) se valer desse discurso? Obviamente não. Isso só acontece porque as pessoas colocam as suas questões acima da religião, do próximo, de Deus e Jesus Cristo. Isso mostra que o homem usa a religião (por ele inventada) a seu bel prazer.
O Brasil, maior país católico do mundo, elege tal presidente consciente de suas falas, renegando os valores mais básicos da religião cristã. Os sacerdotes da fé, os gurus espirituais, guiaram seu rebanho nessa direção maligna. E o rebanho, cordeiros de Deus, segue de cabeça baixa pisando em o que quer que se encontre pela frente. O mote do novo presidente é o ódio, a negação ao PT e a negação a um suposto comunismo. O eleitorado que elege esse candidato desumano estampa frases sofre a família e sobre fé. Mas legitima um modo de vida preconceituoso e supremacista.
Racionalmente e emocionalmente, Jair Bolsonaro não se sustenta, não se explica. A população que se diz cristã, se contradiz. Tal estado de coisas conduz a duas possibilidades: ou Deus não existe e aí a religião é fake, já que Ele seria a base da igreja ou o Deus desses brasileiros (que votaram em Bolsonaro) é um deus-fake. Deus-fake que serve para juntar pessoas em torno de uma fé embaralhada, manipulada, distorcida. Como o discurso de Jair Bolsonaro é de matar pessoas, (Jair Bolsonaro não disse isso uma ou duas vezes, disse isso inúmeras vezes, reiteradas vezes, no microfone e em rede nacional) em tese é Cristo que morre porque Cristo está no outro, mas se esse deus é fake, ele pode ser morto.

domingo, 14 de outubro de 2018

Que é escrever?*


A partir de um breve apanhado de citações de Sartre gostaríamos de caracterizar a dialética da liberdade fruto de uma criação imaginária e mostrar como ela cria e é criada através de um processo de libertação, onde o fundamento da liberdade não é só um algo subjetivo, mas ela é posta na intersubjetividade e se objetiva em um processo crítico e utópico de libertação, em um processo cíclico que só é finalizado quando todos atuam livremente.
No primeiro capítulo do livro[i], Sartre procura fazer uma diferenciação das artes: “não é apenas a forma que diferencia, mas também a matéria”[ii], sendo essa última o elemento fundamental de sua abordagem, já que para o artista a cor, o som e a textura são coisas que correspondem a objetos imaginários não existentes, objetos criados: “um canto de dor é a própria dor (...) é uma dor que não existe mais, é uma dor que é”. Dor imaginária, do mesmo jeito que uma casa em um quadro é uma casa imaginária representada pelas cores com que foi pintada e é um objeto em si – não remete a outros objetos. “O escritor, ao contrário, lida com os significados. Mas cabe distinguir: o império dos signos é a prosa; a poesia está lado a lado com a pintura, a escultura, a música”. É ao tratar da matéria de cada arte que Sartre faz a limpeza de terreno para a prosa: enquanto as demais artes têm como matéria imagens que são fim em si mesmas, a prosa se utiliza da palavra como signo, como um sinal, uma passagem para um significado que se cria e se constrói. “Não se pintam significados, não se transformam significados em música; sendo assim, quem ousaria exigir do pintor ou do músico que se engajem?”.
Na base desta divisão está a possibilidade de engajamento pela utilização do signo: “Pois a ambiguidade do signo implica que se possa, a seu bel prazer, atravessá-lo como a uma vidraça, e visar através dele à coisa significada, ou voltar o olhar para a realidade do signo e considerá-lo como objeto”. Estamos no limite da produção imaginária, do perceber o signo como objeto ou de imaginar para nós outra significação: o contemplar da poesia ou o visar da prosa. A prosa se utiliza da linguagem, usa-a como instrumento de comunicação, como se fizesse parte do nosso corpo e dos nossos sentidos, como um meio que se faz pela ação e depois se esquece, serve para agir em um determinado momento e em determinada circunstância.
Uma vez delimitado o campo da prosa, Sartre vai caracterizar o ato de escrever, ato de falar, se comunicar, a partir de um jogo de perguntas e respostas, como uma ação que desvenda o mundo, como projeto de mudança da situação em que o escritor está inserido. O objetivo desse desvendamento é mudar o mundo revelando a verdade que se esconde na ação de cada homem e ao se mostrar e mostrar o mundo, esse deixa de ser ignorado e cada homem se torna responsável pelo mundo e pelos outros homens, cada homem se engaja. Mas a escrita deve se preocupar com o conteúdo e, como consequência dele a forma, o estilo: “trata-se de saber a respeito de que se quer escrever (...). E quando já se sabe, resta decidir como se escreverá.”. E a literatura que importa é a atual, contemporânea de cada época, uma literatura viva, de enfrentamento. Diferente da que tratam os críticos, que valorizam os grandes nomes e obras do passado, que já estão superados e não podem mais ser confrontados. “Tal é, pois, a “verdadeira” e “pura” literatura: uma subjetividade que se entrega sob a aparência de objetividade”, quando uma entrega subjetiva pelo engajamento vale mais que uma aparente objetividade.



* Da série Revisando o material de escola, a disciplina Ética e Filosofia Política II, no 1º Semestre de 2014, trouxe o tema da imaginação na filosofia francesa do final do XX e sua relação com a experiência de liberdade. Aqui trazemos um pequeno recorte do primeiro trabalho.

[i] SARTRE, Jean Paul. “Que é a literatura?”. São Paulo: Editora Ática, 2004.
[ii] “Que é a literatura?”, p. 10. Demais citações nas páginas seguintes.

sábado, 22 de setembro de 2018

Intersecção

Uma pessoa pode se confundir com outra? Se sim, até que ponto? Leio um livro e há uma estória ali, há vários personagens, uns mais marcantes e outros menos. O que ocorre é que a leitura, silenciosa, está dentro de nós. Exercício no mais das vezes solitário. Pensamos e imaginamos uma estória de outrem, mas que nos atinge. Nesse contexto há três instâncias em ação, que se interseccionam: o escritor, o leitor e os personagens, para onde saltamos ao imponderável.
Nessa interseção, até que ponto o escritor está no personagem e até que ponto o leitor está no personagem? De fato, eles o disputam, cada um à sua maneira, e o personagem, fantoche dessas ilusões, ganha vida: daqui para lá e de lá para cá, pois há uma luta incessante que só acaba quando o livro acaba que é quando tudo acaba. Porque o leitor, envolvido, deseja determinado caminho ou situação para o personagem que definitivamente, não está em seu poder de atuação, ou estaria? Já o escritor, dono da tinta, dá a palavra final. Mas qual a sua independência? Como não duvidar que, após ganhar vida, o personagem  não o domine?  Inglória disputa... Sem vencedor!
É quando nos encontramos com Trapo, de Tezza: um personagem professor que lê as memórias de um poeta precoce, que se suicidou. A transição entre vida de professor, escritos de poeta e sonhos de professor se da sutilmente e precisamos estar atentos para saber onde estamos. A intersecção da trama intersecciona a relação escritor leitor: há um limite ou é tudo uma coisa só? Da trama da vida real, de pessoas estanques, passamos para a trama dos papéis (personagem, leitor, escritor) para nos perdemos na trama dos personagens, quando já não há mais domínio de qualquer fato. 
Por hora, não sabemos aonde a trama de Tezza desembocara, mas o que podemos afirmar é que estamos interseccionados todos, na trama do mundo. Tudo nos toca e influencia, portanto, não nos resta alternativa: só a ação e o posicionamento podem de alguma forma mudar a história de nossa vida, mesmo que por linhas tortuosas.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

bichinho perdido

Imagine um bichinho perdido na selva. Para ajudar a imaginação e evitar devaneios, imagine que ele é um esquilo de meia-idade. Corpo bem desenvolvido, vasta pelagem e membros delineados, porém pequenino. Dentre tantos dotes, ele é um bichinho perdido na selva. Saltitante, vai daqui para lá e de lá para cá. Nas andanças, sempre procura comida e quando cansa, dorme. Mas o bichinho está aflito: ele está perdido e isso o contrai e contraria. Ele precisa se achar, essa é sua única preocupação, mas é uma preocupação incessante, estressante. O bichinho quando dorme, não importa se um predador vem a lhe espreitar, esse perigo não está em seus planos. O bichinho perdido só se verte a problemas reais, um problema que de fato existe e não se importa com possibilidades. No entanto, se o bichinho percebe o perigo, o vociferar da cadeia alimentícia, esse então se torna problema maior e, se perdido, fica pior: mais perdido estará, de tanto correr.
O bichinho está sempre aflito, mas come, dorme, excreta e descansa e, apesar disso, não se cansa: sua meta é se achar. Mas onde estão todos? Esse mato alto, um céu cinza, ecos do falcão. O bichinho procura tenso, superando obstáculos. Para o bichinho, todos esses afazeres são necessidades que se somam, de tão longe que o prazer se encontra. Se o veem, por ventura, comendo, não sabem os males que o atormentam. Mas se o veem correndo sabem que há motivo. O bichinho quer achar para se achar. O bichinho quer seu bando. Sem bando, sambando, segue, seu bando sabe-se lá onde está. Pobre bichinho, por que isso tanto te desconcerta? Afinal, esse problema, é um problema real?
O bichinho era só bichinho, sem sobrenome, mas de tanta força ganhou outro nome: bichinho perdido. Agora, tão conhecido, não se faz de rogado, sua sina seu batismo. Bichinho perdido, tu não podes viver assim, simplesmente perdido? Precisas estar aflito, sempre correndo? Bichinho perdido decida-se: o que te falta é o que tu queres ou tu queres a falta? Não te basta ser um bichinho perdido, por que tamanha aflição? Saiba bichinho que nessa selva há tantos e tantos outros bichinhos perdidos que não se incomodam. Você pode ser mais um bichinho perdido se for apenas um bichinho perdido, mas se for para ser um bichinho perdido aflito, se ache!! Afinal, se perder é mais difícil do que se achar.

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Respirar e seguir

Há muitos momentos esquisitos na vivência. O fluxo de imagens, sons, cores e cheiros que passam pelo mundo, e que nos perpassam, é um fluxo contínuo e dúbio, senão contraditório. Com certeza, não há certeza. Soma-se ao externo o interno, o mesmo fluxo de imagens, etc., está dentro de nós. Não importa aqui o que essas coisas sejam de fato, seus nomes as indicam e fazem delas objetos que nos tocam. É nessa balburdia que vivemos e assim confundimos o que está em nós, com o que nos perpassa e com o que está fora. Como ter certeza?
A imagem mental proveniente de um pensamento ou sentimento tem sua origem exclusivamente interna ou é uma interferência externa? Ela também pode ser um pouco de cada. Nessa incerteza, não há autonomia. Se uma houvesse a outra poderia ser teorizada. Mas há muitas outras teorias e teorizações, pois o cérebro humano, enquanto vivo, não para. Além disso, há palavras e sentimentos que nos tocam. Mais do que a objetividade externa que caracterizávamos, há uma subjetividade que a acompanha, muitas vezes.
E há conspirações. Não bastasse essa efeméride de eventos, ainda contribuímos com a produção desenfreada de ruídos de toda espécie. Há falsificações, estímulos nervosos de origem psíquica e impulsos cerebrais por vezes sem origem, embora na maioria das ocorrências uma dor seja uma dor física de um desgaste biológico. Porém, se por algum motivo o “momento esquisito” se transforme em um “estado esquisito”, só nos resta respirar e seguir.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Uma simples equação


Para o ser humano, tudo é viver e nada mais. Não importa como e nem por que. Basicamente é isso o que nos leva aos crimes mais hediondos e aos pequenos delitos. A necessidade de nos mantermos vivo é a força que faz com que nada pareça assustador. Mais do que nunca, é preciso sair do outro lado. E, de posse dessas variáveis de realidade, cada um constrói sua caminhada, uma mais dolorida, outra suportável. Além do mais, tudo muda o tempo todo e isso está definitivamente fora de nosso controle. Então, o que fazer?
A equação é simples: viver o momento presente tentando garantir que o rastro de deslocamento não deixe amarras ou feridas abertas para que o presente seja possível sem um peso extra e até visando algo. Mas isso é o de menos, porque tudo é muito igual. A gente muda daqui para ali, de lá para cá e tudo continua. Talvez esse seja o grande objetivo de mudar: permanecer o mesmo. Ainda mais se houver uma fórmula indicando a mudança: isso significará que a mudança é o fim e não o que permanece. A permanência perde seu lugar e, de menosprezada, desaparece. É quando se chega à velha formula: o que é solido desmancha no ar.
Mas não nos façamos de rogado, afinal há sempre uma cerveja. Há vontade de dormir, há o frio e o cobertor para quem tem. A gente vai se arrumando, vai se arranhando, vai ranhetando. E vivendo mal, muito mal. Mas querendo viver. Porque tudo é viver e nada mais. Jamais conheceremos a fórmula que garante certa leveza. Chore e siga. Siga e sorria. Afinal, a equação é simples.

sexta-feira, 6 de julho de 2018

Nosso Neymar


O Brasil é Neymar e Neymar é o Brasil. Se já éramos o país do futebol [de Pelé] então continuamos a ser o país do futebol [de Pelé e Neymar e tantos outros], assim como os Estados Unidos são o país do time dos sonhos do basquete e Cuba o país do boxe.  É copa do mundo de futebol e os especialistas no assunto olham para as seleções dos países participantes, mas tanto se fala de Neymar. Para o bem e para o mal, reforçando nosso sempre desgastado julgamento maniqueísta. E seguimos sendo o país do futebol.
É marcante como o futebol do Brasil inspira sentimentos por todo o globo e tal fato não é ocasional já que somos um dos melhores, senão o melhor. Ao longo da história, já tivemos muitos times que encantam, já ganhamos muitos campeonatos e exibimos um futebol alegre, envolvente e, às vezes, pragmático. A camisa amarela, que por um momento foi usada como símbolo de protesto para a derrubada de nossa presidenta, é a camisa usada por muitos, é uma camisa que conquista. E Neymar é o Brasil.
Neymar é o Brasil com sua ginga, improvisação e criatividade. O “jeitinho” brasileiro não é, necessariamente, a transgressão, mas um modo de ser, uma possibilidade de vitória. Neymar pensa rápido e é ligeiro e nosso jeitinho pode e deve ser responsável e ético, dentro das regras do jogo. Somos assim, fazemos samba como ninguém, jogamos capoeira, driblamos os problemas do dia a dia com ousadia.
Neymar é o Brasil da foto, o Brasil que se mostra. Somos grandes consumidores de mídias sociais, gostamos de compartilhar vídeos, mensagens, piadinhas. Neymar é um camaleão, de cabelo amarelo, cabelo raspado, todo tatuado. O jogador famoso que namora a atriz famosa, o rico amado pelos pobres e pela classe média, o rico odiado pelos pobres e pela classe média.
Neymar é a nata. Nesse país desigual, poucos têm muito e muito tem poucos. País de funk ostentação. Neymar tem muito, seu talento lhe deu isso é uma herança. O Brasil é o país da herança, da tradição que passa de pai para filho, das famílias abastadas. País da seletividade e de uma meritocracia utópica, já que só há mérito em iguais condições de possibilidade.
Neymar é o Brasil autoritário e conservador. Nossas autoridades e instituições ainda se destacam pela truculência, por imposições à sociedade. Neymar acossa juízes de dedo em riste, xinga os adversários, passa por cima. No Brasil o coronelato persiste forte, minorias são desrespeitadas, ativistas são assassinados. Cala-se o outro.
Neymar é o jogador do futuro. Os maiores são Messi e Cristiano Ronaldo, mas Neymar está ali, na sombra, quase chegando. O Brasil é o país do futuro, às vezes parece que vai, avança, mas de repente tem uma recaída e como retrocede! O que falta a Neymar? O que falta ao Brasil? O que queremos afinal? Ser um time que brilha um jogador que brilha? Ser um país que brilha ou uma elite que brilha? Queremos jogar bonito e dentro da lei? Queremos um povo educado e solidário, queremos um país justo?
Não importa isso agora, hoje é o Brasil em campo, a pátria de chuteiras, tudo para, todos veremos. Veremos Neymar entre a cruz e a espada, Neymar tentando vencer seus medos, suas fraquezas e o adversário. Ele pode e é capaz, do jeito certo. Porém, amanhã, seremos o país da eleição, que precisa decidir o caminho a seguir. A história de nossa democracia de 30 anos nos mostra muita coisa, saibamos aprender.
Vai Neymar!! Vai Brasil!!

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Idealista

Tem uma discussão antiga em Filosofia (ou moderna, mas não há porque precisar agora) que opõe idealismo e realismo, que vamos explorar um pouco nesse texto. Esse debate tem um pano de fundo epistemológico, ou seja, se refere à teoria do conhecimento ou ao que conhecemos e como conhecemos. Para os idealistas, o conhecimento provém das ideias e aí há muitas interpretações, mas, simplificando, temos um conhecimento inato, ou seja, que nos pertence desde que nascemos e que é mandatário para nossa vivência. Para os realistas, a realidade tem precedência sobre as ideias e, nesse sentido, há um enfraquecimento do idealismo, pois ele poderia ter, digamos, menos concretude. O idealismo projeta nossas ideias sobre a realidade e a torna irrelevante, desprezível, a força das ideias cria o mundo, as pessoas, tudo. Já para o realismo, talvez as ideias não sejam realmente tão importantes. É importante salientar como podemos conceber o mundo pelas ideias, pela nossa ideia: nós sempre nos impomos e atuamos como senhores desse mundo fabricado pelas ideias. Do que surge a pergunta: há realidade (objetividade) sem ideia (subjetividade)? De que serve uma objetividade em si, sem uma subjetividade para explorá-la? Do mesmo modo, uma subjetividade sem objetividade é vazia: esse é um velho debate!!!
Mas idealismo também significa que temos ideais: que imaginamos coisas que podem se dar na realidade, que podem superar a realidade. Um ideal é uma tentativa de superar uma realidade que é só real, mais nada. “Bem, o ideal é fazer assim, mas como não tem jeito, façamos assado”.  Ideal: assim, realidade: assado. É muito difícil mudar a realidade e isso só pode acontecer se houver uma idealidade que a supere. Mas também, ninguém vive somente de idealidades. Uma coisa importante a se ressaltar é: às vezes o pragmatismo da realidade nos impede de escaparmos para a utopia da idealidade. Em situações de crise (e nós sempre estamos em situação de crise porque somos seres humanos erráticos e falíveis) tendemos a nos agarrar à realidade porque ela é objetiva, está aí, está lá, é palpável. Já o idealismo, nesse sentido, é um desafio que nos inquieta: dizem que o ideal não é possível. Porém, por mais que o ideal não seja possível, realisticamente falando, ainda assim ele é possível para uma subjetividade e viver de fantasias pode ser nosso último porto seguro.

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Compatibilizando os qualias com o fisicalismo*

Seguimos com a abordagem que Vincetini faz dos qualia e que temos usado para nos trazer mais argumentos para a investigação epifenomenalista[i]. Trataremos primeiramente de Levin e sua tentativa de conciliar qualias com visão fisicalista. Relembremos primeiro, como sugere Vicentini, dos problemas colocados por Nagel, de que há um aspecto subjetivo na experiência que não pode ser reduzido à mera descrição objetiva (ser como morcego)[ii] e Jackson, do experimento do quarto de Mary que afirma que a experiência de ver cores é um acréscimo ao conhecimento. Na base desses dois argumentos está a crítica a redução materialista, ou seja, os qualias seriam uma barreira para o fisicalismo.
A partir deles, Levin argumenta que tais conhecimentos não são teóricos como queriam Nagel e Jackson, mas práticos, ou seja, são habilidades práticas e, por isso, não seriam tratados pelo fisicalismo. Para Levin, Mary, ao sair do quarto, não seria capaz de discriminar entre uma cor azul e outra amarela, já que nunca teve esse tipo de experiência, mas ela saberia que está tendo duas experiências distintas. O que importa, nesse caso, é como descrever cada cor objetivamente, independentemente dos qualias; eles não teriam papel em um conhecimento convencional [de cores]. O equívoco na abordagem dos qualias, segundo Levin, seria em relação ao reconhecimento direto (estado mental => experiência) e ele pode ocorrer devido a uma falta de conhecimento teórico ou dificuldade na aplicação prática de um conceito.
Entretanto, Vicentini tenta compreender como a experiência pode contribuir para o conhecimento teórico a partir de uma via indireta, transmitindo qualidades pela descrição. Por exemplo, ele cita o caso de um especialista em vinho que poderia descrever um novo paladar para outro especialista de maneira satisfatória e que chegaria próximo à fenomenologia objetiva almejada por Nagel, ainda que nessas situações bem peculiares, onde se tem uma experiência vasta no assunto.
Vicentini também aborda a proposta de Shoemaker de tratar os qualias cientificamente, via funcionalismo. Retomaremos aqui a refutação de Shoemaker à objeção mais importante ao funcionalismo, a dos qualias ausentes: haveria em algumas ocasiões a possibilidade de que dois estados mentais funcionalmente iguais pudessem um estar associado a um estado qualitativo e outro não. “An organism might be in pain even though it is feeling not at all, and his consequence seems totally unacceptable.” (p.70). Vicentini levanta se seria possível definir os qualias funcionalmente, ainda sob tal objeção. Shoemaker argumenta que se, mesmo via introspecção, que em último caso seria a nossa última ligação subjetiva com os qualias, não se poderia chegar à comprovação dos qualias, por outro lado, temos acesso a estados qualitativos quando, por exemplo, sentimos dor. Portanto, se a objeção dos qualias ausentes indica que não teríamos conhecimento dos qualias para “saber” se estamos tendo um estado qualitativo ou não, então não haveria como provar se eles existem ou não. Além disso, não há como se sentir a dor desassociada de um estado que qualifique essa dor.
O uso funcionalista dos qualias por Shoemaker se dá na proposta da equivalência qualitativa, ou seja, dados dois estados que possuem as mesmas entradas, saídas e estados sucessivos, funcionalmente falando, tais estados podem ser considerados qualitativamente os mesmos. “Se há, por exemplo, dois copos com líquidos na minha frente e ao prová-los constato que produzem em mim os mesmos qualia, eu tendo a acreditar que ambos têm o mesmo gosto e que são bons exemplos de vinho”. Embora Vicentini ressalte que a similaridade qualitativa só é viável se de fato não haja hipótese dos qualias ausentes, porque não conseguiria trata-los, ela é uma possibilidade interessante de exploração dos qualias cientificamente.



* Análise de Vicentini, Max Rogério. O problema dos qualia na filosofia da mente. Dissertação de Mestrado: Campinas, SP, 1998.
[ii] Não podemos deixar de citar o exemplo usado por Leonardo Stoppa de que os juízes, os ricos, sabem o que passam os pobres, o que os pobres podem sofrer, mas não sabem o que é ser um pobre (https://youtu.be/NaUIWJ3b7kc?t=1759: 9min30).

terça-feira, 5 de junho de 2018

Ciência de Dados

Após o advento da internet, que quebrou todos os paradigmas de comunicação, o computador (equipamento físico: desktop, laptop, etc.) perdeu espaço para os telefones celulares, hoje smartfones. Mais do que isso, o barateamento da tecnologia permitiu a universalização do uso dos telefones, acessível para boa parte da população e que nos possibilita estar “online” praticamente 24 horas por dia, até que o sono permita. Muito do que era feito no computador passa para o celular e uma infinidade de novos aplicativos surge para nos ajudar em todo o tipo de tarefa e para que economizemos tempo. Hoje em dia não vamos ao banco, mas levamos o banco no bolso. Acordamos e já sabemos a previsão do tempo e que roupa nós devemos usar e também já sabemos como está o trânsito e se podemos cochilar mais um pouco.
O celular, nosso novo alter ego, por um lado abstrai o contato com o mundo da vida, mundo que está aí e sempre estará, mundo concreto e, por outro, nos leva ao consumo, reprodução e produção de dados e informações infinitas no mundo virtual, digital.  Se o mundo concreto é mundo “big brother”, mundo com câmeras a nos olhar e vigiar, o mundo virtual, do celular, é um mundo de extrema rastreabilidade. Qualquer clique, o abrir um aplicativo, tirar uma foto, fazer um backup, etc., gera uma informação valiosa para os fornecedores de aplicação que passam a saber como nos comportamos, quais opções preferimos e o que os leva a alavancar vantagens e, obviamente, vender mais (o que significa nos dar o que queremos). A facilidade do celular só é fácil porque geramos dados que são processados pelas empresas que os recebem e nos devolvem na forma dessa facilidade. É o circulo virtuoso. Ou vicioso? Mais dados produzimos, mais estamos distantes do mundo da vida, mundo concreto, diverso, imprevisível. A estabilidade que o mundo virtual nos traz se converte em confiança para com o aparelho e em sua cumplicidade.
Não podemos nos esquecer, entretanto, das enormes contribuições que a produção de dados e a reprodutibilidade de condições e experimentos oferecem à medicina, organização social, infraestrutura, etc. Toda a sociedade tem se beneficiado, nos mais diversos aspectos, dessa explosão digital. Surge, no mundo da vida transformado em mundo digital, uma nova ciência de natureza digital: a ciência de dados. Ela se apoia fortemente na matemática, que encontrou seu rumo como ciência a muitos séculos atrás, e permite a mais abrangente e surpreendente análise e tratamento de dados. Vejamos os modelos de redes neurais, a comunicação entre máquinas, inteligência artificial, etc. Todo esse aparato tem se apropriado dos mais variados domínios do mundo da vida e, através da tecnologia da informação e da estatística, permitido quatro ações: 1) descrição das informações presentes em um determinado domínio, 2) o diagnóstico de porquê tais condições foram adquiridas e, sua dupla pedra de toque: 3) a predição do que pode ocorrer em determinado momento futuro e 4) a prescrição do que deve ser feito quando essa nova situação for encontrada.
Sem dúvida, a ciência de dados faz parte de um processo contemporâneo de decodificação dos dados de realidade pelas tecnologias emergentes, sua transformação e codificação que retorna com as orientações que podem interferir nas ações e projetos dos mais diversos domínios. Existem muitos dados e informações armazenados nos computadores do mundo todo, a maior parte da produção acadêmica e científica está exposta ao acesso digital via internet e suas infinitas combinações de buscas e resultados. O crescimento e as possiblidades são exponenciais, o mundo virtual se abre como um portal que abduz o mundo concreto. Todo o desenvolvimento humano sempre se surpreendeu com os avanços e retrocessos da técnica, que pode ser usada para o bem e para o mal. Mais do que os dados que temos disponíveis atualmente, há pessoas por trás desses dados e são elas que devem decidir o que fazer com eles e como eles podem contribuir com um mundo melhor, que seja virtual enquanto dure porque concreto jamais deixará de ser.

domingo, 27 de maio de 2018

Paradigmas do século XXI[i]

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han faz um diagnóstico de nossa época pela enfermidade, caracterizando o século XXI como das doenças neuronais. Isso não é nenhuma novidade, mas se filósofos dizem muitas obviedades, temos que observar como as dizem e de que maneira tal pensamento é construído. Sua argumentação começa com dois pontos que destacaremos aqui e que se referem a como nosso tempo se contrapõe ao anterior: a mudança na abordagem das doenças fundamentais e a superação do conceito foucaultiano de sociedade da disciplina.
Han enquadra o tratamento das patologias [bacteriológicas e virais] do último período na abordagem imunológica, ou seja, que se utiliza da negatividade no combate ao corpo estranho. A terminologia imunológica se utiliza de um vocabulário de guerra: combate a vírus invasores, criação de anticorpos de defesa, etc. Essa perspectiva de eliminação do estranho, segundo Han, orienta discursos sociais que se utilizam desse modelo imunológico, mas que já estaria superado no século XXI. Há uma mudança de paradigma e, se agora já não há mais intolerância ao estranho, há um excesso de positividade. Han cita, por exemplo, a questão dos imigrantes que atualmente deixam de ser uma ameaça para se tornarem um peso aos países que os recebe. Conforme Han: “O paradigma imunológico não se coaduna com o processo de globalização. A alteridade, que provocaria uma imunorreação atuaria contrapondo-se ao processo de suspensão de barreiras” (cap. 1, p. 13). A dialética da positividade das doenças neuronais não significa que não haja violência na sua atuação. Se o viral era repelido pela negação[ii], a violência da doença neuronal não é em relação ao estranho, mas ela é imanente, faz parte do sistema e é resultante da superprodução e do superdesempenho. Por isso, essa violência não se “revela” na estranheza que vem da inimizade do diferente, mas de positiva se dá em uma sociedade permissiva e pacificada.
Por outro lado, a sociedade disciplinar proposta por Foucault, aquela das instituições que “encarceram”, já não se aplica[iii]. Ela era baseada na negatividade, mas agora adentramos a sociedade do desempenho e reina a positividade. Dito pelo filósofo: “A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados” (cap. 2, p. 24). Han argumenta que há uma continuidade da produção, lá os corpos produtivos não serviam e eles deveriam ser tratados, aqui se deve produzir sempre mais. Estamos, pois bem, em tempos de sociedade do desempenho e temos que nos ver com nós mesmos e carregamos a marca da produtividade. Se parece que somos livres para fazer de acordo com o que queremos, na verdade estamos presos no fazer, sem pensar e temos que nos assumir como empreendedores, mas isso cansa. Conforme Han: “A lamúria do indivíduo depressivo de que nada é possível só se torna possível numa sociedade que crê que nada é impossível” (cap. 2, p. 29).
Podemos perceber, pelo diagnóstico de Han, seu pessimismo em relação ao nosso tempo. A positividade que se mostra tanto na violência sistêmica que gera doenças neuronais, como na sociedade de desempenho, acontece em um mundo saturado e não parece apontar saída. Essa não é a ética de Terra Dois[iv] que apresenta um mundo contemporâneo estimulado pela criatividade e onde a positividade pode ser encarada em novo modo de vida horizontalizado e leve. Entre um e outro, precisamos viver bem no século XXI. 



[i] HAN, BYUNG-CHUL. Sociedade do Cansaço. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017.
[ii] Negação da negação: um vírus é um corpo estranho que me invade para me negar e eu nego esse corpo estranho.

segunda-feira, 30 de abril de 2018

Aparato Terra Dois*

É difícil admitir, mas o mundo mudou. Há um novo tempo e nele estamos iguais ou diferentes, embora perceber o hoje possa diminuir nosso sofrimento. Simplesmente porque não há como resistir, ninguém escapa. Tudo o que era de uma forma estável e equilibrada, agora balança. O natural, o cotidiano se transformou e nos impacta. Esse novo tempo é Terra Dois. Em Terra Dois os pontos de vista se equiparam e a relação vertical se horizontaliza. A ética horizontal traz um novo tipo de responsabilidade e atua nas mais diversas áreas. Os pontos fixos de Terra Um, pontos de referência, são explodidos em Terra Dois e deles novos pontos aparecem espalhados, cindindo aqui e acolá, iluminando, apagando, criando.
Terra Dois não é melhor nem pior que Terra Um, mas as qualidades adquirem novo aspecto. O que era garantido e planejado, agora é provisório e inesperado, mas tanto lá como cá, deve ser construído e sedimentado. A dinâmica de Terra Dois é a do múltiplo e o farol aponta para muitas direções. A observância cede terreno para o questionamento e a imposição não se sustenta. O querer compete em pé de igualdade com o dever e não há nada que não possa ser de outro jeito. O controle espacial do tempo de Terra Um, segmentado, passa a ser um não controle atemporal já que algo sempre pode acontecer. Porém, a ética de Terra Dois não é superficial, é uma ética horizontal, não importando tanto a profundidade, mas a abrangência e o alcance.
Mas Terra Dois tem algo muito específico: seu aparato. O que salta aos olhos, primeiramente, é a ruptura: de repente nos encontramos em Terra Dois. Não há um fio que conduza de Terra Um a Terra Dois, Terra Dois é o agora a ser enfrentado. Marca fundamental de Terra Dois, a ruptura é o aparato essencial que permite abandonar Terra Um e relativizar Terra Dois. Um segundo ponto é o tecnológico. Não parece haver Terra Dois sem o digital que dita seu ritmo e dimensão. É o tecnológico que tudo conecta e Terra Dois é permanentemente conectada. O digital, por outro lado, se destaca, se descola e se desloca do concreto e, em algum sentido, nos remete ao mais remoto futurismo que, de supetão, está presente e nos abduz. O terceiro aspecto de Terra Dois é a pós-modernidade. Terra Dois significa que houve (há) Terra Um e por isso é o pós. Terra Dois substitui Terra Um, que ficou para trás. As bases de Terra Um são de alguma maneira todas diametralmente recortadas para que Terra Dois se apresente como horizonte.
Estando em Terra Dois, precisamos nos conscientizar de seu aparato e sua ética. E urge transportar tais aspectos para o econômico e o social. A universalidade de Terra Dois de algum modo tem que ser aplicada a certa coletividade que a teste e reproduza. A rede que Terra Dois proporciona deve ser capaz de abarcar o recôndito mais irracional e subjugado, de outro modo não será Terra Dois, mas Terra Meio, um pedaço de terra que descolou de Terra Um. Será a jangada de pedra de Saramago, que veleja pelo mar.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Proliferação plural progressista

O boom da internet é o boom da comunicação e o giro da informação. Por mais disputado que seja o espaço da rede, por mais capitalizado e capitalista, a internet é quase a nossa vida real. Ela faz com que o virtual seja tomado como real. Estando em casa, fechados, estamos no mundo. Se assim era com a TV, as mídias sociais acrescentam a interatividade e a possibilidade de posicionamento de cada um. Embora não haja qualquer garantia de neutralidade na rede e nos algoritmos, ainda assim o espaço parece mais democrático quando comparado com a mídia tradicional, que também ocupa essa nova plataforma.
De todo modo, se expor é, ao que parece, escolha individual. Porque há a internet como fim, somente para consumo de informações, mas há a internet como meio (de troca): escolhe-se não ser um alguém (lá) ou ser um alguém identificado, ambos consumindo. Mas o fato de se expor, se por um lado pode criar um conflito entre o privado e o público, por outro lado permite a associação de pessoas e ideias. Mais do que isso, permite o surgimento de lideranças e o compartilhamento – palavra chave em nosso tempo.
Dito isso, o que podemos constatar, pelos dois canais que apreciamos (Twitter e Youtube), é uma proliferação plural progressista. Uma proliferação pode não ser plural, por exemplo, uma proliferação de bactérias ou uma metástase. Já uma proliferação plural é muito abrangente, pois não filtra. Especificamente a proliferação plural progressista é a proliferação de ideias plurais dentro do campo de pensamento e atuação progressista. Isso não quer dizer que tal campo é 100% idôneo, sincero ou neutro, pelo contrário, é o viés que o classifica. A proliferação plural progressista (PPP), permite um contato direto entre os frequentadores do meio digital, sem interferência patronal ou editorial com censura velada. Permite a escolha.
Por exemplo, muitos de nós nos informamos pelos sites de notícias. Porém, qual critério é usado por eles? O UOL, por exemplo, de quanto em quanto tempo atualiza as manchetes de sua página principal? Quanto tempo ele deixa uma manchete e/ou imagem no topo de seu site e por quê? Que tipo de notícia é por eles escolhida e com que base de análise? Os colunistas, com qual critério são contratados? A Rede Globo, que ataca na TV, rádio, internet, etc., ao que se sabe não permite posicionamento político de seus empregados. Ou permite dependendo do viés? A que interesses servem UOL e Rede Globo, dentre outros? É interessante para nós sermos informados dessa maneira absolutamente passiva e manipulada?
A PPP, por lado, é o fluxo intenso do ir e vir de ideias, fatos e streaming. Com posicionamento livre e autônomo a PPP é arma de resistência. Por ela desfilam colunistas, jornalistas, comentaristas e, em seus programas e nas suas comunicações, passam as mais variadas personalidades e intelectuais dos mais diversos campos e que expõem seus pontos de vista e conhecimentos densamente. Nesse momento de crise e dúvidas a PPP pode e deve ser usada para nos iluminar ou, ao menos, indicar caminhos divergentes da opinião pública aceita como "oficial". E, quem sabe promover uma nova transformação social e democrática.

sábado, 24 de março de 2018

Os qualia: Fechamento Cognitivo*

De acordo com Colin McGinn, nos diz Vicentini, apesar de sermos incapazes de resolver os problemas que envolvem os qualia, ainda assim é possível pensar em uma solução. Dada à dificuldade de compreender o mistério envolvendo corpo-mente (especificamente aqui cérebro-consciência), haveria duas vias de solução: uma que tenta uma explicação natural, científica e outra por uma intervenção sobrenatural. McGinn opta pela via natural, porém ressaltando que jamais a compreenderemos, pelo conceito do fechamento cognitivo que versa que: uma mente M é cognitivamente fechada para uma propriedade P, ou teoria T, se esta mente M não possui mecanismos para compreender P ou T.
A partir disso, podemos pensar na propriedade P do cérebro que é responsável pela ligação do cérebro com a consciência (PCC). Então, há uma teoria T, que se refere a PCC, a partir da qual T explicaria a dependência dos estados de consciência em relação aos estados cerebrais (TCC). Pois bem, a mente humana MH pode conhecer PCC? Segundo McGinn, não, pois PCC nos é cognitivamente fechada e isso pode ser verificado tanto a partir do cérebro, quanto da consciência, já que só há dois modos de conhecimento de PCC: introspecção (investigação da consciência) e percepção (investigação do cérebro).
Pelo lado da introspeção chegaríamos a uma propriedade interna da consciência (PIC – os qualia), mas não teríamos acesso à ligação psicofísica (PCC), que interessa ao conhecimento científico. Então a introspecção está cognitivamente fechada para PCC, apontando para uma limitação de nosso conhecimento. Pelo lado do cérebro, o conhecimento da propriedade PCC não é observável e perceptualmente fechado[i]. Isso se dá porque nossos sentidos se acostumaram a ver as coisas no espaço, aquém da PCC. O fato de ser perceptualmente fechado leva ao fechamento cognitivo, já que, embora possamos formar conceitos sobre o que não é observável, não podemos extrair PCC da observação porque observamos propriedades físicas, que não alcançam a consciência.
Vicentini conclui que McGinn aceita os qualia sem questioná-los e que mente é produto de uma evolução biológica natural, assim como o corpo e apresenta limitações. Dada nossa dependência de introspecção ou percepção, haveria algum tipo de ciência capaz de explicar a consciência de maneira não misteriosa. Além disso, McGinn aceita que uma mente M conhece de acordo com sua consciência, o que impediria a MH de conhecer outras consciências[ii]. McGinn, podemos concluir, entende que há um problema em seu conhecimento científico, mas não há uma limitação filosófica e nos parece que se aproxima de uma visão funcionalista ou comportamental da mente. Embora se encaixe em um fisicalismo epifenomenalista, dado que a mente se origina da matéria cerebral.



(*) Extraído de Vicentini, Max Rogério. O problema dos qualia na filosofia da mente. Dissertação de Mestrado: Campinas, SP, 1998, cap. II.
[i] McGinn chama a consciência de númeno (oposto do fenômeno). A argumentação de McGinn assemelha-se a antinomia kantiana.
[ii] Segundo Vicentini, McGinn concorda e aceita a tese de Nagel: não conheceremos a mente de um morcego.

terça-feira, 20 de março de 2018

Os qualia*

Vicentini analisa os qualia fazendo uma polarização entre intuição e ciência e enfatizando que, usando tal noção como crítica ao fisicalismo, deixamos de lado sua conceituação. Seu ponto principal é: a partir do uso dos qualia pela tradição, seria possível tratá-los por uma abordagem fiscalista?
Intuição versus ciência. Para ele, há uma incongruência entre intuição e ciência. Por um lado, a intuição é a forma como experimentamos o mundo pelos sentidos, ou seja, o mundo como ele é, com seus odores, sabores e cores. Por outro lado, uma visão científica do mundo nos é apresentada como um conjunto de elementos básicos e enunciados de leis. Diante disso, há uma imagem do mundo que não tem lugar na descrição científica[i]. É aí que aparece o conceito de qualia que caracteriza a maneira como as coisas nos aparecem. Vicentini remete essa distinção ao século XVII, em um experimento de pensamento discutido pelos empiristas Locke e Berkeley.
Os limites do conhecimento teórico. A fim de mostrar que as ideias se originam dos sentidos, os empiristas ingleses propuseram um experimento do pensamento no qual se desejava saber se um cego, que de repente começasse a enxergar, poderia discriminar um cubo de uma esfera, apenas pela visão. A resposta dada é que não, já que a ideia das coisas visíveis se originava pela experiência visual[ii]. Do mesmo modo, não seria possível o conhecimento de um fato apenas pela descrição objetiva do vocabulário neutro da ciência. Entre a crença em nossas percepções qualitativas conscientes e a pretensão fisicalista que tudo pode ser conhecido objetivamente, a ciência não propicia uma visão completa do mundo.
A colocação do problema. Segundo Vicentini, qualia é um termo filosófico usado para denotar as características intrínsecas de nossas sensações obtidas pela introspecção e, como tal, se opõe à possibilidade de que a consciência caiba no cérebro, se opõe a uma consciência corporificada.[iii] Não obstante essa definição, Vicentini ressalta que a questão é mal formulada. Tais características intrínsecas teriam surgido nas décadas de 50 e 60 contra as teorias de identidade que reduziam a mente à matéria. Porém, para ele, há uma confusão no conceito de qualia que é usado para fazer a crítica ao fisicalismo. Do que questiona se a ideia de qualia seria intratável. Ou seja, ainda não se achou maneira de definir os qualia, como, por exemplo, explicar a outra pessoa o sabor do creme de cupuaçu se ela nem sabe que é uma fruta. Isso seria possível?
Dois problemas. Quais características que a tradição atribui ao conceito de quale? Vemos céu e mar igualmente azuis, como podemos afirmar que percebemos uma só cor? Fazemos isso comparando as duas sensações em nossa consciência e emitimos um juízo. Mas, como afirmar que outro observador tem a mesma sensação que a nossa ou até se tem alguma? Embora possa haver concordância verbal, a comparação das qualidades que experenciamos parece impossível. Tal impossibilidade sugere que os qualia são 1) de acesso somente privado, 2) inefáveis, dadas suas propriedades intrínsecas e 3) poderiam ser acessados diretamente por cada um de nós. Enfatiza Vicentini, qual o problema, então? Para ele, é o caso de saber se os qualia podem ser tratados por uma abordagem fisicalista, que seria crença dominante nas ciências da mente contemporâneas. A possibilidade de tratamento é a análise de argumentos para saber, primeiro, quais as propriedades dos qualia, através da literatura filosófica recente e, depois, se eles realmente existem. Vejamos o tratamento dado por Nagel e Jackson aos qualia para criticar o fisicalismo e a abordagem crítica de Dennett: intuições equivocadas e viciadas na visão cartesiana do mundo. Vicentini investigará se devemos aceitar os qualia como descreve a tradição ou colocar a questão em outros termos.
A abordagem de Thomas Nagel. Para Nagel, a ciência jamais alcançará o conhecimento do que é ser como algo (um morcego, por exemplo). Ele visa rebater a redução do mental ao físico e a dificuldade de abordar a consciência. Pois, se há ser consciente, existe algo que é ser como aquele organismo, mas isso é característica do caráter subjetivo pertencente intrinsicamente a quem experiencia o mundo. Então, há ignorância a respeito da ontologia desses estados mentais conscientes subjetivos pois, para cada estado consciente, há seu próprio ponto de vista, porém a ciência busca o ponto de vista objetivo e comum[iv]. Não podemos conhecer a experiência de um órgão dos sentidos que se comporte como sonar, pois não temos tal estrutura perceptiva e não podemos nem ao menos imaginar, já que a imaginação também é dependente de nossas experiências. Isso é um limite da capacidade humana de conhecer, porque “não podemos sentir como um morcego sem sermos também um morcego”. As nossas percepções são percepções para nós e não sabemos como a orientação espacial é sentida por um morcego. Há um tipo de experiência que escapa aos métodos científicos, onde o caráter subjetivo se contrapõe ao caráter objetivo da ciência moderna.
A abordagem de Frank Jackson. Seguindo a mesma linha, Jackson argumenta que o Fisicalismo ignora aspectos informacionais do mundo, como a nossa atividade consciente. Por mais informações físicas que tenhamos, elas não dão conta dos qualia, denotados por ele como sensações corpóreas e experiências perceptivas. Vicentini pergunta, por exemplo, se conseguimos descrever o aroma de uma flor[v]. Através do experimento do quarto de Mary, Jackson propõe a situação onde uma pessoa é confinada, desde o nascimento, em um quarto fechado sem contato com cores, com uma TV em preto e branco. Ela se torna uma neurofisióloga muito respeitada e sabe tudo sobre as cores e mesmo seus efeitos em nosso cérebro. A questão é, ao sair do quarto, Mary sabe que o sol é amarelo, mas ela tem acrescida uma nova informação do mundo ao ver o sol amarelo? Respondendo afirmativamente, Jackson se contrapõe ao fisicalismo, posicionando-se a favor dos qualia. Para Vicentini, tal argumentação está mais preocupada com uma crítica ao fisicalismo do que a conceituação dos qualia.
A abordagem de Daniel Dennett. Finalizaremos, por agora, com as pesquisas Dennett que apontam para uma aporia no tratamento dos qualia, pelo menos da forma como conceituados pela tradição. Lançando mão do experimento de pensamento dos qualia invertidos, originalmente proposto por Locke, seria impossível comparar a experiência subjetiva de duas pessoas ao ver uma cor. Não entraremos no detalhe dos experimentos, mas uma cirurgia poderia ser feita em uma pessoa e ela acordaria vendo o sol azul e a grama vermelha, porém não saberíamos se o que mudou foi algo no seu nervo ótico ou na memória das cores.
Então, concorde-se ou não com os qualia, esse é um importante conceito usado na filosofia da mente que nos ajuda pensar cada teoria a partir de seu tratamento. 


(*) Análise de Vicentini, Max Rogério. O problema dos qualia na filosofia da mente. Dissertação de Mestrado: Campinas, SP, 1998.
[i] Em algum aspecto essa polarização pode remeter à fenomenologia de Husserl.
[ii] Embora predominante, o esquema empirista considerava que a mente era uma folha em branco que se servia da experiência para escrever conceitos no cérebro. Mariano nos mostra que o cérebro não é uma tábula rasa, e mesmo bebês já tem uma importante maquinaria conceitual. Porém, embora o cérebro consiga ligar as experiências de todo o aparelho sensorial, o experimento de Locke tem validade, pois a visão sem uso se degenera em um cego. Cf A vida secreta da mente, de Mariano Sigman. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017. P. 15.
[iii] E a consciência encarnada de Merleau-Ponty?
[iv] Para Vicentini, não fica claro como Nagel afirma que morcegos têm consciência. Ainda mais que, considerando-se a subjetividade própria de cada um e que não se pode comprovar, Nagel se aproxima de uma visão solipsista, mas atribui consciência ao morcego. Muito embora, para Vicentini pareça anti-intuitivo negar que não a tenham, mesmo com argumentos comportamentalistas inconclusivos.
[v]  E, adicionamos, um sentimento de tristeza ou de angústia? No sentido epifenomenalista, um sentimento que causa um choro é uma causação descendente do mental ao corporal?

sexta-feira, 9 de março de 2018

Introdução ao epifenomenalismo

O epifenomenalismo é um termo que foi cunhado por William James, em 1890, significando que a mente é um fenômeno “superficial” [i]. A doutrina formula que estados mentais não possuem poderes causais, ou seja, a ação psicofísica é unidirecional: do corporal ao mental[ii]. Podemos utilizar duas metáforas[iii] para boa compreensão: o comportamento de uma sombra é dependente do comportamento da luz e do objeto em sua frente e ela também não pode causar alteração neles; e a fumaça produzida pela caldeira de uma locomotiva não é a causa dela se mover. Do mesmo modo, a mente seria um produto do cérebro/corpo, não tendo poderes causais sobre ele.
O conceito de mente que usamos aqui está próximo ao da consciência fenomênica (embora haja mente inconsciente) e ele se refere à experiência subjetiva, às qualidades fenomenológicas imediatas[iv] que englobam propriedades experienciais (vivenciais) das sensações, percepções, sentimentos, pensamentos, emoções e desejos. São os conhecidos qualia, as qualidades subjetivas. Embora não nos interesse aqui, Faria divide o epifenomenalismo de tipo forte, que não admite que qualquer tipo de estado mental cause alterações no plano físico, e o de tipo fraco, que admite que apenas os qualia causariam alterações no plano físico.
De acordo com Faria, o epifenomenalismo surge no fim do século XIX com os trabalhos do biólogo T. H. Huxley e do filósofo Shadworth Hodgson e tudo não passa de uma causação mecânica onde eventos físicos são processados desde o mundo externo passando pelos sentidos e provocando estímulos cerebrais que produzem sensação, consciência[v].  Então, Huxley propõe que um estado nervoso antecede o estado da consciência, ou seja, a partir de uma mudança molecular na estrutura cerebral aparece o estado de consciência como um símbolo dessa mudança, a chamada molécula ideagênica.
Embora Faria advirta que há poucos pensadores, na atualidade, que defendem a tese epifenomenalista, por outro lado ele ressalta que é uma doutrina filosófica sedutora  para quem rejeita o dualismo e compactua com alguma forma de fisicalismo, ou seja, para aqueles que pensam que a mente é irredutível à bases físico-químicas cerebrais e também para aqueles que prezam o fechamento causal do mundo físico. Assim, evita-se a “mão dupla“ do dualismo mantendo-se as conexões causais apenas no mundo físico e a mente seria inócua causalmente, uma excrescência, enfim, um epifenômeno. Como qualquer teoria, o epifenomenalismo terá de lidar com argumentos contrários, mas também se valerá de fortes indícios que os sustenta, mas esse aprofundamento requererá um novo texto.


[i] Osvaldo Pessoa Jr: Arquivos Lexicográficos. Atualizado em 24/04/2016.
[ii] Não podemos esquecer que o epifenomenalismo, diferente do materialismo, considera que há uma mente e não somente eventos físicos, químicos, mecânicos, etc. Ver: “Dá para desatar o nó do mundo?”, disponível em: http://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2016/03/da-para-desatar-o-no-do-mundo.html.
[iii] A partir daqui, grande influência de Faria: Notas históricas sobre o epifenomenalismo.
[iv] Cf. Arquivos Lexicográficos.
[v] Conforme Huxley, T.  H.  Sobre a hipótese de que animais são autômatos.