A partir de um breve apanhado de citações de Sartre gostaríamos de
caracterizar a dialética da liberdade fruto de uma criação imaginária e mostrar
como ela cria e é criada através de um processo de libertação, onde o
fundamento da liberdade não é só um algo subjetivo, mas ela é posta na
intersubjetividade e se objetiva em um processo crítico e utópico de
libertação, em um processo cíclico que só é finalizado quando todos atuam
livremente.
No primeiro capítulo do livro[i],
Sartre procura fazer uma diferenciação das artes: “não é apenas a forma que
diferencia, mas também a matéria”[ii],
sendo essa última o elemento fundamental de sua abordagem, já que para o
artista a cor, o som e a textura são coisas que correspondem a objetos
imaginários não existentes, objetos criados: “um canto de dor é a própria dor
(...) é uma dor que não existe mais, é uma dor que é”. Dor imaginária, do mesmo
jeito que uma casa em um quadro é uma casa imaginária representada pelas cores
com que foi pintada e é um objeto em si – não remete a outros objetos. “O
escritor, ao contrário, lida com os significados. Mas cabe distinguir: o
império dos signos é a prosa; a poesia está lado a lado com a pintura, a
escultura, a música”. É ao tratar da matéria de cada arte que Sartre faz a
limpeza de terreno para a prosa: enquanto as demais artes têm como matéria
imagens que são fim em si mesmas, a prosa se utiliza da palavra como signo, como um sinal, uma passagem para um significado
que se cria e se constrói. “Não se pintam significados, não se transformam
significados em música; sendo assim, quem ousaria exigir do pintor ou do músico
que se engajem?”.
Na base desta divisão está a possibilidade de engajamento pela utilização
do signo: “Pois a ambiguidade do signo implica que se possa, a seu bel prazer,
atravessá-lo como a uma vidraça, e visar através dele à coisa significada, ou
voltar o olhar para a realidade do signo e considerá-lo como objeto”. Estamos
no limite da produção imaginária, do perceber o signo como objeto ou de
imaginar para nós outra significação: o contemplar da poesia ou o visar da
prosa. A prosa se utiliza da linguagem, usa-a como instrumento de comunicação, como se fizesse parte do nosso corpo e
dos nossos sentidos, como um meio que se faz pela ação e depois se esquece,
serve para agir em um determinado momento e em determinada circunstância.
Uma vez delimitado o campo da prosa, Sartre vai caracterizar o ato de
escrever, ato de falar, se comunicar, a partir de um jogo de perguntas e
respostas, como uma ação que desvenda o mundo, como projeto de mudança da
situação em que o escritor está inserido. O objetivo desse desvendamento é
mudar o mundo revelando a verdade que se esconde na ação de cada homem e ao se
mostrar e mostrar o mundo, esse deixa de ser ignorado e cada homem se torna
responsável pelo mundo e pelos outros homens, cada homem se engaja. Mas a
escrita deve se preocupar com o conteúdo e, como consequência dele a forma, o
estilo: “trata-se de saber a respeito de que se quer escrever (...). E quando
já se sabe, resta decidir como se escreverá.”. E a literatura que importa é a
atual, contemporânea de cada época, uma literatura viva, de enfrentamento.
Diferente da que tratam os críticos, que valorizam os grandes nomes e obras do
passado, que já estão superados e não podem mais ser confrontados. “Tal é,
pois, a “verdadeira” e “pura” literatura: uma subjetividade que se entrega sob
a aparência de objetividade”, quando uma entrega subjetiva pelo engajamento vale
mais que uma aparente objetividade.
* Da série Revisando o material de
escola, a disciplina Ética e Filosofia Política II, no 1º Semestre de 2014,
trouxe o tema da imaginação na filosofia francesa do final do XX e sua relação
com a experiência de liberdade. Aqui trazemos um pequeno recorte do primeiro trabalho.
[i] SARTRE, Jean Paul. “Que é a literatura?”. São Paulo: Editora Ática, 2004.
[ii]
“Que é a literatura?”, p. 10. Demais citações nas
páginas seguintes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário