domingo, 14 de outubro de 2018

Que é escrever?*


A partir de um breve apanhado de citações de Sartre gostaríamos de caracterizar a dialética da liberdade fruto de uma criação imaginária e mostrar como ela cria e é criada através de um processo de libertação, onde o fundamento da liberdade não é só um algo subjetivo, mas ela é posta na intersubjetividade e se objetiva em um processo crítico e utópico de libertação, em um processo cíclico que só é finalizado quando todos atuam livremente.
No primeiro capítulo do livro[i], Sartre procura fazer uma diferenciação das artes: “não é apenas a forma que diferencia, mas também a matéria”[ii], sendo essa última o elemento fundamental de sua abordagem, já que para o artista a cor, o som e a textura são coisas que correspondem a objetos imaginários não existentes, objetos criados: “um canto de dor é a própria dor (...) é uma dor que não existe mais, é uma dor que é”. Dor imaginária, do mesmo jeito que uma casa em um quadro é uma casa imaginária representada pelas cores com que foi pintada e é um objeto em si – não remete a outros objetos. “O escritor, ao contrário, lida com os significados. Mas cabe distinguir: o império dos signos é a prosa; a poesia está lado a lado com a pintura, a escultura, a música”. É ao tratar da matéria de cada arte que Sartre faz a limpeza de terreno para a prosa: enquanto as demais artes têm como matéria imagens que são fim em si mesmas, a prosa se utiliza da palavra como signo, como um sinal, uma passagem para um significado que se cria e se constrói. “Não se pintam significados, não se transformam significados em música; sendo assim, quem ousaria exigir do pintor ou do músico que se engajem?”.
Na base desta divisão está a possibilidade de engajamento pela utilização do signo: “Pois a ambiguidade do signo implica que se possa, a seu bel prazer, atravessá-lo como a uma vidraça, e visar através dele à coisa significada, ou voltar o olhar para a realidade do signo e considerá-lo como objeto”. Estamos no limite da produção imaginária, do perceber o signo como objeto ou de imaginar para nós outra significação: o contemplar da poesia ou o visar da prosa. A prosa se utiliza da linguagem, usa-a como instrumento de comunicação, como se fizesse parte do nosso corpo e dos nossos sentidos, como um meio que se faz pela ação e depois se esquece, serve para agir em um determinado momento e em determinada circunstância.
Uma vez delimitado o campo da prosa, Sartre vai caracterizar o ato de escrever, ato de falar, se comunicar, a partir de um jogo de perguntas e respostas, como uma ação que desvenda o mundo, como projeto de mudança da situação em que o escritor está inserido. O objetivo desse desvendamento é mudar o mundo revelando a verdade que se esconde na ação de cada homem e ao se mostrar e mostrar o mundo, esse deixa de ser ignorado e cada homem se torna responsável pelo mundo e pelos outros homens, cada homem se engaja. Mas a escrita deve se preocupar com o conteúdo e, como consequência dele a forma, o estilo: “trata-se de saber a respeito de que se quer escrever (...). E quando já se sabe, resta decidir como se escreverá.”. E a literatura que importa é a atual, contemporânea de cada época, uma literatura viva, de enfrentamento. Diferente da que tratam os críticos, que valorizam os grandes nomes e obras do passado, que já estão superados e não podem mais ser confrontados. “Tal é, pois, a “verdadeira” e “pura” literatura: uma subjetividade que se entrega sob a aparência de objetividade”, quando uma entrega subjetiva pelo engajamento vale mais que uma aparente objetividade.



* Da série Revisando o material de escola, a disciplina Ética e Filosofia Política II, no 1º Semestre de 2014, trouxe o tema da imaginação na filosofia francesa do final do XX e sua relação com a experiência de liberdade. Aqui trazemos um pequeno recorte do primeiro trabalho.

[i] SARTRE, Jean Paul. “Que é a literatura?”. São Paulo: Editora Ática, 2004.
[ii] “Que é a literatura?”, p. 10. Demais citações nas páginas seguintes.

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