segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Desenvolvimento ou constituição do sujeito (do desejo)*

Sujeito como objeto. Para Freud-Lacan[1] não há um desenvolvimento do sujeito, mas ele se constitui por operações como o estádio do espelho e o complexo de Édipo. O sujeito é objeto do discurso dos pais antes mesmo de nascer da união que se dá entre o homem e a mulher regulada pela proibição do incesto. Ou seja, frente à indiferenciação natural há a lei cultural que tem por pressuposto a estrutura da linguagem, lei que se dá na ordem do discurso. Desde a vida uterina a mãe já está habitada pela lei e pelo desejo e a criança, antes de nascer, é objeto do outro. A satisfação das necessidades da criança, que não são naturais porque marcadas pela linguagem, implica o auxílio da mãe e por aí se dá o processo de constituição da subjetividade. O sujeito sustenta-se na vida pelo outro e no ordenamento simbólico dos desejos.
Desejo como faltaO grito do recém-nascido desamparado se faz demanda e passa-se de um estado de inanição à satisfação (diferença nada-tudo) que se constitui como um traço mnêmico que funda o aparelho psíquico. Quando a necessidade reaparece acontece um novo grito pela demanda (quer repetição), mas o que se oferece, difere: há uma falta (diferença) e o desejo se constitui como “estar em falta”. Essa experiência de satisfação é mítica porque o que se oferece é um objeto feito de cultura e o adulto não pode responder à altura dA Necessidade. A criança já nasce no quadro desiderativo do adulto em posição de objeto e o seu desejo não é natural: o desejo deseja o desejo do outro enquanto ser desejante. Desejamos ser desejados pelo outro como fomos na experiência mítica, portanto a subjetividade não se desenvolve como um germe no organismo. Se a subjetividade está no desejo do outro ela só precisa de um organismo para se encarnar e onde ocorre a luta entre desejos contraditórios e a luta entre o desejo e a biologia. A experiência originária de satisfação completa que não ocorreu torna-se modelo inalcançável de cumprimento do desejo que visa a repetição dessa satisfação incondicional.
Sujeito impulsionado pelo OutroSe o desejo é o sujeito em falta, há um impulso que o impele para frente associado à pulsão, cuja fonte é a zona erógena, o objeto é contingente e o fim é a satisfação. O desejo se realiza, mas não se satisfaz, pede qualquer demanda, volta a pedir o que foi tirado e, não satisfeito, reabre a pulsão. A pulsão [inconsciente] habita o “Id” (isso) mas não é interior, é o outro que pulsiona o sujeito a seguir avançando norteado pelo traço mnemônico. Os desejos são movidos por significantes e as coisas só estimulam enquanto significantes dos desejos dos outros. O sujeito é lançado no mundo buscando na realidade humanizada pelo discurso. Seu agir é de natureza discursiva capturada pelos significantes e ele cria mercadorias por intermédio da estrutura da linguagem.
Sujeito assujeitadoSe o desejo é condição, ele também é efeito do discurso, mas recalcado antes da aparição da linguagem como função. Assim, o sujeito é sujeitado ao discurso do Outro antes de ser seu autor como mostra o estádio do espelho: faz um no seio do outro.



* Alguns aspectos de "Desenvolvimento ou constituição do sujeito (do desejo)". Em LAJONQUIÈRE, R. De Piaget a Freud: para repensar as aprendizagens. Vozes, Petrópolis, 1993. FEUSP-EDF0294/201602 - prof. Douglas Emiliano Batista.
[1] conforme nota de aula de 26/09 o estádio do espelho é um conceito lacaniano.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Filosofia no Brasil: presa no passado e na primazia do ser que engessa a ação*

Para Janine, haveria um privilégio da leitura estruturada para estudar a história da filosofia já desde os anos 60 que, segundo Porchat, teria travado o debate filosófico. Haveria uma renúncia à filosofia, por um lado instrumental, buscando a interpretação rigorosa e segura do texto e por outro com relação ao conteúdo, tratando a filosofia como patrimônio inspirador que não muda o mundo. Para Janine, a filosofia deveria se refazer a partir de um choque com o virtual e a globalização, temas atuais. Ao invés da leitura estrutural dos escritos de Hobbes do século XVII, deveriam ser abordados os problemas políticos de hoje, como fazem os alemães que discutem a União Europeia. Segundo Janine, no Brasil a ágora seria infecunda já que as ideias novas apareceriam apenas nas teses acadêmicas. Então, pesquisar no Brasil se resume a uma leitura dos clássicos. Se os filósofos europeus debatem suas questões políticas, os filósofos latinos não debatem o Mercosul, não se debate o espaço público em termos filosóficos.
Janine acrescenta que a comunidade filosófica dialoga muito pouco: busca-se a interpretação do pensador sem mediação, ignorando-se o que foi escrito sobre ele. A tradição é vista sob um aspecto negativo (erros) e não positivo (acertos) buscando-se demonstrar a coerência interna do texto sem discutir os parti pris do método estrutural e sem explicar o contraditório da obra[1]. No que tange à filosofia política, procura-se lê-la pela chave da ontologia ou teoria do conhecimento. A filosofia da ação (seja ética enquanto dever ser ou política enquanto pode ser) fica subordinada ao ser. A história valoriza o conhecimento e o ser em detrimento da política[2].
Não discutimos nossa filosofia: se a Europa enuncia o universal, o Brasil fica restrito ao particular e, dado o desafio, ficamos no conforto do ser e na passividade da ação. Porém, hoje o ser está envolvido na ação e temas como o estudo do genoma abrem as possibilidades de escolha ou a informática que vai da res ao virtus trazendo novas formas de decisão e capacidades de ação.
Janine então aponta e comenta três pontos falhos do que é feito em filosofia aqui no Brasil: a subordinação da ação ao ser, a pressuposição de coerência no conflito da obra e a desconsideração da prioridade do autor em relação a sua obra. Ao substituir o conflito pela coerência, há um apagamento das diferenças e, ao se presar a leitura estrutural e lenta desqualifica-se uma leitura apressada que poderia ser vista como uma vertente de guerrilha[3]. A filosofia acadêmica desqualifica o adversário como defendendo o senso comum e, na lentidão da leitura, perde o pé da ação e pela linguagem compensa-se o fracasso do real. De fato, esconde-se aí a dificuldade do brasileiro de tratar do conflito escondendo-se em uma aparente harmonia. Recorrendo-se à história, evita-se o debate.
Também não se segue a opção do autor ou suas prioridades, elas são desqualificadas[4]. Porque preferimos “engessar a ação e dar primazia ao ser”, mantendo a nossa zona de conforto acomodada na história. Janine conclui apontando que todas essas questões estariam nos mostrando que estamos distantes da filosofia e essa falta de familiaridade nos impede de discutir nossos grandes temas da atualidade e criar o novo.


* Principais aspectos de Pode o Brasil renunciar a Filosofar?, Renato Janine em "A Filosofia entre nós". Indicação de FEUSP-EDM0424/201602 (prof. Paulo Henrique Fernandes Silveira).
[1] Embora possa haver uma aparente contradição entre textos de Rousseau, é possível procurar uma gestalt que de conta das bifurcações de seu pensamento.
[2] A frente falará Janine de Locke que não é estudado por sua política que funda as bases do liberalismo, muito mais pelo empirismo.
[3] Janine cita os aforismos de Nietzsche como trecho breve de uma guerrilha do conceito.
[4] Vide Hobbes que preferia a física à política.

domingo, 18 de setembro de 2016

Muitos domingos

Hoje é domingo e foram necessários muitos domingos para que existisse um Domingos, Montagner. Porém, Santos dos Anjos foi forjado de segunda a sábado, em nossos corpos e almas. A televisão nos apresentou um Domingos que não é o Domingos real, mas um Domingos que imaginamos, um Domingos palhaço, alegre, um Domingos querido. Mas há um Domingos estigmatizado e realizado em Santo dos Anjos, que conhecemos. E Santo dos Anjos é o homem simples, homem da terra que vive seus conflitos e procura justiça.
Santo dos Anjos é de Grotas e quase morreu após um atentado, mas o místico Velho Chico, os encantados e Terê o salvaram. Terê sofreu muito, lutou e os encantados a socorreram porque socorreram Santo. Camila sofreu muito, lutou, mas os encantados quiseram Domingos. E Camila, que conhece Domingos, agora vive uma realidade em que só pode atingir a imagem de Domingos, Domingos encantado.
Porque Camila e Domingos celebraram com o São Francisco uma passagem única: a passagem de Domingos. Essa passagem não é triste, é a passagem que a nós todos espera. Os encantados do nosso mundo, que é uma imagem do real, desta feita, quiseram Domingos como protetor do São Francisco e ele para lá foi, aceitando o desafio. Mas os encantados do mundo real imagético nos deixaram Santo, que ama o Velho Chico, ama Terê e a vida. O Gaiola Encantada passou e não carregou Santo, mas carregou Domingos, que lá está, feliz. Santo dos Anjos, é forte e guerreiro e sua luta não se acaba, ele estará para sempre conosco. E Domingos é Santo, dos Anjos.

sábado, 17 de setembro de 2016

Discurso laureado

[Na festa de fim de ano da empresa, após receber o prêmio no palco, com o microfone na mão e perante os colegas]
"Eu gostaria de agradecer à empresa pelo reconhecimento do meu trabalho, do nosso trabalho. Vocês sabem, nós somos fornecedores e o cliente espera muito de nós, o cliente espera tudo de nós. E nós temos os nossos fornecedores também, e cobramos muito deles. Vocês sabem o quanto os pressionamos, mas isso faz parte do jogo. O nosso trabalho, que serve ao mercado, demanda muita concentração e pouco riso, demanda um sacrifício diário em prol da empresa e, mais ainda, do cliente.
E nos esforçamos, colegas. Quantas reuniões, quantas decisões, quanta responsabilidade. Quantos dias trabalhando até mais tarde, quantas noites preocupados afugentando o sono, quantos compromissos e viagens desmarcados ou bruscamente interrompidos. Quantas vezes o telefone toca nos alertando que temos um dever a ser cumprido e que descansaremos depois, se possível. O cliente sabe, colegas, que resolveremos o problema. O cliente é o paciente febril e nós somos o médico confortador.
Mas, antes de sermos profissionais, antes de sermos colegas, somos homens. E o ser humano erra. Primeiramente, porque não é Deus e, segundamente, quando tenta ser Deus. Nós erramos e aprendemos com erros, somos seres falíveis. E, se somos homens fora da empresa, somos empregados dentro dela, ainda que homens, muito embora não vistos como tal. Dada a pressão e o nosso comprometimento para suportá-la, acredito, colegas, que se um empregado da empresa erra, ele NUNCA erra sozinho, só se premeditada e intencionalmente. Caso contrário, ele erra porque o vizinho de mesa o deixou errar. Ele erra porque o time o deixou errar, o gerente, o diretor e o presidente. Enfim, ele erra porque a empresa o deixou errar, porque há, sim, um inconsciente produtivo a serviço da empresa e que se serve de suas malezas. Então, colegas, por mais que a empresa nos sustente financeiramente, seu maior dever conosco é nos proteger das intempéries e arroubos do cliente e das reviravoltas do mercado. O local de trabalho é nosso segundo lar e a empresa é nossa mãe e nosso pai, é nossa segunda família.
É por isso, caros colegas, que me sinto honrado pelo prêmio recebido, mas não pelo seu valor, mas pela sua garantia. Premiado, obviamente firmo um compromisso com a empresa, mas ela firma comigo. Porque a empresa é, ao mesmo tempo, um ente abstrato, mas é todos nós, somos todos nós. E, se porventura algum dia esse vínculo se quebrar por alguma artimanha autoritária e desleal desse ente, saibam, colegas, tal ente, o abstrato, não existirá mais. Se a empresa é o corpo de funcionários e cada funcionário é um órgão da empresa, ela jamais poderá cortar um órgão seu inadvertidamente, porque o sangue que vier a escorrer deixará uma sequela irremediável para ambos e para o terceiro: o cliente que nos faz."

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

O que é estrutural

Dizer que algo é estrutural (veja aqui conceituação do racismo estrutural) é dizer que faz parte do humano e constitui o sujeito (e isso não é marxista e tampouco de esquerda, embora pudéssemos pensar em uma análise estruturalista do materialismo histórico). O sujeito está sempre inserido em relações dadas de antemão por estruturas (o movimento estruturalista pode ser explorado aqui).
Mas não é isso que queremos abordar. Gostaríamos de retomar do início e verificar o estrutural pela chave psicanalítica freud-lacaniana[1] de maneira embrionária ainda (não trataremos do desejo). O campo do humano é o campo do simbólico, da linguagem. Porém, ao nascermos e enquanto bebês, não nos desenvolvemos em um percurso evolutivo biológico, mas nos constituímos a partir do discurso dos outros: da mãe, do pai, etc. Já há um discurso estabelecido em um campo simbólico historicamente constituído e é ele que nos constitui e por ele que adquirimos novos conhecimentos que nada mais são do que rearranjos dos conhecimentos já estabelecidos e encarnados nos outros.
A psicanálise lacaniana divide a psique no simbólico, imaginário, e real. O simbólico como estamos destacando é o campo que recorta o real e que permite sua significação pelo discurso e também a intersubjetividade. Esse é o campo humano que é caracterizado como o Outro. O real não é acessível, o real é o resto, a sobra do discurso. Isso porque não há uma natureza humana; ela foi perdida na constituição do sujeito pelo discurso que cindiu a possibilidade do encontro com objetos puros, físicos. A partir do discurso então construímos objetos imaginários, formamos uma imagem do real que não é o real.
Mas o simbólico é estrutural porque ele provém do inconsciente. Freud cindiu a psique no consciente e no inconsciente (algumas lições podem ser consultadas aqui). Porém, o consciente é sobre determinado pelo inconsciente. O consciente forja um EU que não passa de uma ilusão que tenta agregar nossas representações. O inconsciente é o lugar dos desejos reprimidos, lugar de convivência entre o contraditório que foi recalcado pelo sujeito consciente. Daí que as nossas ações, nosso discurso, os sonhos são pautados pela imprevisibilidade da estrutura inconsciente que está por detrás não somente do conhecimento público compartilhado, mas também da própria constituição do sujeito que não é um organismo vivo, mas um corpo objetivado pelo simbólico.
Portanto, dizer que algo é estrutural é dizer que esse algo é o que nos constitui e está constituído no Outro. O estrutural é a linguagem que nos torna humanos. O estrutural é o inconsciente que pauta o consciente. O sujeito se assujeita no discurso do outro e assim é constituído. Diante disso[2], podemos concluir que estamos de posse de um quadro estrutural dado, abrangente, aculturado e que vitimiza quem chega. Mas também significa que temos que nos apropriar desse discurso para formamos um discurso nosso que vai constituir os outros, recíproca e inversamente. Significa que a luta se dá pela linguagem, no campo do humano e que só poderemos superar o estrutural partindo de um esforço muito grande de readequação dos significantes que circulam nas cadeias discursivas mais conservadoras.




[1] Baseado em FEUSP-EDF0294/201602 (prof. Douglas Emiliano Batista) e Lajonquière (de Piaget a Freud).
[2] Aqui já é nossa argumentação.

domingo, 4 de setembro de 2016

Qual a classe morfológica da filosofia? Verbo ou substantivo?*


Bolzani argumenta que o emprego do termo filosofia se dá de diversas formas e muitas vezes pensa-se uma coisa quando de fato é outra. Distinguem-se, então, filosofia como algo que suscita equívocos e "filosofar" como a autêntica expressão necessária para a filosofia. Para ele, a filosofia é tratada, atualmente pelo senso comum, como algo que versa sobre quase tudo, mas não serve para nada. Isso porque se revela um sentido distorcido quando é vista como entidade: a Filosofia. A filosofia não é algo pronto para uso e que vai trazer respostas para os nossos problemas atendendo ao ideal de consumo imediato que hoje vigora. Isso posto, qual o significado autêntico da filosofia? Para Bolzani, seria o de filosofar como atitude (o verbo) em oposição ao sentido passivo de filosofia (o substantivo).
Bolzani nos propõe que a filosofia pode ser uma forma de vida, assim como fez Sócrates, que morreu pela sua filosofia e fundou a racionalidade ocidental unindo teoria e prática. Ele instaura o conflito entre o livre pensar e o poder instituído e, em nome da sua verdade e respeitando as leis, manteve-se convicto e não aceitou a fuga e nem a redução de sua pena capital. Diante disso, percebemos que a atitude socrática era a atividade de interrogação, porque Sócrates sabia que nada sabia. Se o filósofo pregou a vida frugal do corpo para fortalecer a alma, na morte manteve o questionamento de não saber o que se sucederia dali para frente. Bolzani afirma que, desde então, ele é o paradigma, modelo de filósofo.
A primeira atitude do filosofar socrático é a aporia, a dúvida (espanto de admiração ou perturbação) que se segue pela investigação, o exame, o desconfiar de verdades estabelecidas, mas que, a partir de razões, pode fundamentar um caminho que seja universal e valha para todos. A pergunta “O que é?” pretende verificar se a resposta atende a todos os casos possíveis, se pode ser generalizada e proporcionar um saber totalizante e que traga o bem e a felicidade. E o filósofo não quer somente descobrir a verdade para si, mas para os outros. Então, o filosofar é uma abertura para a investigação de assuntos que sobre eles nada sabemos e que coloca em choque nosso conhecimento com um novo. Seguindo essa prescrição, séculos depois, Descartes estabelece como método suspender todos os conhecimentos adquiridos e colocá-los em dúvida para verificar o que deles podemos conhecer. E a dúvida se torna o meio de filosofar: devemos verificar as opiniões dos outros e as nossas para saber se são verdades ou meros preconceitos, exercendo o filosofar com paciência e nem sempre procedendo para frente, senão que recuando e repensando a direção a seguir. Bolzani ressalta que o filosofar é atividade com dupla exigência: solitária para consigo, mas solidária para com os outros, na vida pública, o que leva à cidadania. O ensino de filosofia não deve ser conjunto de conteúdos prontos, mas atitude investigante e reflexão crítica. Segundo ele: “Não se trata, portanto, de culto à filosofia: bem ao contrário, trata-se de cultivo do filosofar”. Filosofar é um trabalho do pensamento incessante e que não se deve basear na nossa interioridade e verdades, mas que deve trazer consigo a incerteza que a dúvida impõe.
Outro aspecto fundamental do filosofar que Bolzani nos indica é o olhar para a história e seus 25 séculos de filosofia para pensar como as inquietações são tratadas em cada tempo e para se confirmar que não começamos os questionamentos agora, pois já há um caminho iniciado. Isso porque, tal como “parece” ocorrer na ciência, não há um processo acumulativo na filosofia e a última seria a mais atualizada e aceita sem contestação. Para Bolzani, seria possível defender uma “tese” do progresso em filosofia e enumerar “descobertas” dos filósofos anteriores, mas sempre há retomadas de conceitos e interpretações apropriadas em outras filosofias. Nesse sentido, não haveria um filosofar livre, autônomo e original que se desse ex abrupta, geração espontânea sem se considerar as bases fundadas pelas filosofias anteriores e com elas dialogar. Porque, conforme bem coloca Bolzani, liberdade não é transgredir o que está estabelecido, mas agir sabendo por que fazemos determinadas coisas através de razões bem avaliadas. Ele prossegue acrescentando que a criação de conceitos pelo filósofo só se dá a partir das propostas conceituais da tradição, compreendo filosofias e diferentes maneiras de se operar com a linguagem e com o mundo. Somente “ruminando” os textos filosóficos e nos permitindo experienciá-los como verdadeiros conseguriemos procurar novas formulações e respostas. Ainda, o filosofar também não é a escolha de uma filosofia para defendê-la, mas a avaliação de diferentes filosofias que proporcionem um processo formador.
Bolzani conclui enfatizando que fez o elogio do filosofar (e não da Filosofia) como procedimento difícil e longo, que se preocupa com a utilização das palavras e seu uso justo e ético em benefício dos homens, referindo-se aqui a Paul Ricoeur. É pelo filosofar que contrastamos o imediatismo da tecnologia e velocidade da informação de nosso tempo com aquele espanto de admiração e perturbação que só a dúvida filosófica nos proporciona.



* Sobre filosofia e filosofar. Roberto Bolzani Filho. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/62569.

sábado, 3 de setembro de 2016

Cinco lições de psicanálise*

Primeira Lição (estudos sobre a histeria): Parece um quadro grave fatal, mas é histeria, desde os gregos. E, na época de Freud, o médico não sabe como tratar e despreza o histérico. Há o uso da hipnose para reproduzir estados de ausência. A paciente de Breuer tinha sede e não bebia água e ele descobriu que os sintomas se originavam de experiências emocionais, traumas psíquicos a partir de um tratamento reconstituindo cenas[1]. Os histéricos sofrem de reminiscências. São símbolos traumáticos, como os símbolos de uma cidade, que fazem com que neuróticos e histéricos se prendam ao passado não vivenciando o presente e a realidade[2]. Há então que se considerar o elemento de subjugar fortes emoções que são descarregadas na cura (tem que ser assim). Conversão histérica é a inibição somática como sintoma físico do caso. Expressão das emoções é a parte da excitação psíquica que vai para inervação somática. Além disso, o doente tem vários estados mentais que podem ser agrupados e separados ou trazidos pela hipnose (ex. normal, confusão, alteração de caráter), agrupamentos independentes, e a consciência oscila entre consciente e inconsciente. Inconsciente (da hipnose) pode influenciar no consciente... A teoria dos estados hipnoides de Breuer onde aparecem sintomas histéricos já é uma teoria abandonada em 1909.
Segunda lição (psicanálise): Se, por um lado, a primeira doente de Breuer foi curada pelo tratamento catártico a partir dos mecanismos psíquicos dos fenômenos histéricos, na França concebia-se que a dissociação psíquica era resultado da incapacidade de síntese mental do doente. Freud via de outra forma a dissociação histérica[3] e, a despeito da hipnose que ele passa a considerar processo enfadonho e difícil de ser obtido, senão mítico, busca o procedimento catártico independente dela, com o doente em estado normal. Freud incitava o doente a revelar a cena patogênica originária que estaria relacionada ao sintoma, colocando a mão na fronte dele. Se a lembrança não havia se perdido, havia uma força que a mantinha no estado inconsciente. O processo de repressão se baseia em forças de resistência que agem tanto para expulsar da consciência o acidente patogênico como para não permitir que ele volte à consciência. O que causava essa repressão era o surgimento de um desejo violento incompatível com a ética do sujeito e, do conflito entre ego e ideia, essa era expulsa da consciência por essas forças repressoras que evitavam o desprazer de tal desejo. O desejo reprimido no inconsciente procura um substituto, ou sintoma, que tenta voltar à consciência e é protegido pelo ego para evitar o desprazer, causando grande sofrimento. Reprime-se o desejo e colocam-se resistências para que o incômodo não se repita, ou seja, a psique joga para o inconsciente o problema, ocorrendo a divisão psíquica com a consciência e o conflito dessas forças mentais contrárias. O eu se esforça para se defender de recordações penosas[4]. Caberia ao médico, na terapia psicanalítica da neurose, acomodar aquele desejo no quadro consciente do paciente restituindo o que fora reprimido pela quebra das resistências, resolvendo-se o conflito psíquico que era protegido pela repressão. No final das contas, ou se aceita o desejo ou o controla.
Terceira Lição (recursos técnicos): Nem sempre é certo que o primeiro pensamento traz a inadvertida lembrança, apareciam pensamentos inexatos e lamento do abandono do hipnotismo. Pelo conflito do doente em trazer o esquecido e a resistência, a ideia trazida por ele era um sintoma, substituição da ideia procurada e poderia seguir-se por ela. Situação análoga é o chiste, a pilhéria. Ela também é uma alusão, substituto do que está no íntimo, algo o impede de dizer francamente. Produz uma ideia de substituição distorcida. Escola de Zurique, Bleuler, Jung, conceito de complexo: elementos ideacionais interdependentes, associações livres por onde se pode buscar o complexo reprimido. Processo fastidioso de descobrir o elemento reprimido. Esperar ideias livres aparecerem. Pedir ao paciente para expor tudo. O doente rejeita o material como insignificante por causa da resistência, experiência da associação usada por Jung. Além da divagação, há dois outros recursos técnicos para sondar o inconsciente: a interpretação dos sonhos e o estudo dos atos e lapsos causais. A interpretação dos sonhos é a estrada real para o conhecimento do inconsciente, base da psicanálise. Parece alienação, mas é compatível com a mais perfeita saúde. Psiquiatras contra o método. Desprezamos os sonhos como o doente despreza as ideias soltas despertas pelo psicanalista. Nas criancinhas e nos adultos os sonhos visam realizar os desejos não satisfeitos no dia do sonho. Embora os sonhos pareçam ininteligíveis pelas forças de resistência de defesa do ego, há neles um conteúdo latente existente no inconsciente. Não reconhecemos o sentido dos sonhos como o histérico não reconhece a correlação dos seus sintomas. A investigação busca o nexo entre o conteúdo latente e o manifesto, que visa à realização dos desejos não satisfeitos. A elaboração onírica é o processo que permite estudar os dois processos psíquicos que se passam no sonho, consciente e inconsciente, divisão semelhante à deformação que transforma em sintomas os complexos cuja repressão fracassou. No sonho do adulto também se esconde a criança, trazendo suas diferentes disposições. Pela análise dos sonhos também se descobre a representação de complexos sexuais pelo inconsciente por trás de nossos mitos e lendas. Mesmo os pesadelos podem ser explicados como uma reação do ego contra desejos reprimidos violentamente, a ansiedade. O terceiro recurso técnico é a interpretação de atos falhos, lapsos e atrapalhações corriqueiras que exprimem impulsos e intenções que deveriam ficar ocultos à consciência e testemunham a existência da repressão e da substituição dos desejos inconscientes. Por meio dessas técnicas, então, é possível fazer com que a consciência chegue ao material psíquico patogênico que causa os padecimentos da produção de sintomas de substituição.
Quarta Lição (sexualidade infantil): a psicanálise revela uma estreita associação entre os sintomas mórbidos e a vida erótica do doente que influencia nos fenômenos de repressão e formação de substitutivos ressaltando a importância da etiologia sexual no tratamento. Se há dificuldades para manifestação da intimidade sexual, o paciente deve estar a vontade para formar juízo do problema. O exame psicanalítico mostra que é preciso retroceder até a infância para trazer de volta a consciência os desejos reprimidos que expliquem os traumatismos atuais, como no caso dos sonhos, revelando que há, sim, instintos e atividade sexual infantil. Não é na adolescência, as crianças já sentem emoções intensas e se enamoram na tenra idade dos três anos, instintos complexos desmembrados em componentes de origem diversa. A criança se vale de um autoerotismo e busca sensações agradáveis em partes do corpo excitáveis, as zonas erógenas, se utiliza da masturbação que pode carregar pela vida e não associa o sexo à procriação, como os adultos.  Revela-se na criança, também, componentes da libido que pressupõe objeto ou pessoa estranha e podem ser instintos ativos (será a sede de saber) e passivos (será arte e teatro) como os relacionados ao sofrimento: o sadismo e o masoquismo. Mas, se na criança a conquista do gozo se dá de maneira desordenada por impulsos independentes, ela vai se condensar na zona genital como preparação para o ato sexual de propagação da espécie e repelindo o autoerotismo pela satisfação na pessoa amada, formando o caráter sexual definitivo ao final da puberdade. Porém, nesse processo, instintos são reprimidos na vida sexual pela educação ou a moral, como os prazeres coprófilos[5]. E o desenvolvimento da função sexual pode apresentar incidentes e gerar distúrbios: impulsos parciais que não se submetem à soberania da zona genital são transformados em perversão que substitui a vida sexual normal; o autoerotismo pode não ser superado; pode conservar-se a equivalência primitiva dos sexos levando à homossexualidade. Como as perversões mantêm os complexos e formam os sintomas, as neuroses, por outro lado, firmam-se no inconsciente apesar da repressão.  Então, a perversão se liga à neurose e a vida sexual somática da criança, mas também psíquica. A primitiva escolha da criança pelo objeto de desejos eróticos dirige-se primeiramente aos genitores que, nesse sentido, estimulam as crianças: se a mãe tem preferência pelo filho e o pai pela filha, aquele reage desejando o lugar do pai, assim como a menina, gerando sentimentos de hostilidade que serão reprimidos, mas continuarão a agir no inconsciente como complexo nuclear de cada neurose[6]. Antes do complexo ser reprimido a criança ainda formula diversas teorias sexuais infantis que não se acabam por falta de conhecimento e podem interferir na formação do caráter da criança e na neurose. O modelo usado na primeira escolha amorosa se referindo aos pais será usado para pessoas estranhas na escolha definitiva por isso a criança deve se desprender dos pais e cumprir sua função social. Livre da repressão que seleciona os impulsos parciais da vida sexual e da repressão dos pais, deve-se priorizar o trabalho educativo que pode ser realizado pelo tratamento psicanalítico para vencer os resíduos infantis.
Quinta Lição (a cura): Sendo os componentes eróticos instintivos os sintomas das neuroses, nota-se que os indivíduos se refugiam na moléstia pela falta de satisfação sexual na realidade, buscando satisfação substitutiva. A cura passa por retirar do ego do doente a repressão e verificar se a realidade oferece satisfação melhor que o estado patológico que traz o prazer imediato que remonta a satisfação causada na infância, seja temporalmente a libido retornando ao passado e formalmente usando os meios psíquicos de outrora. Se a vida pressiona e reprime e a realidade é insatisfatória, busca-se a fantasia para realização dos desejos e obtenção do gozo. A neurose passa por essa regressão à vida infantil para reavivar os desejos, embora pessoas com dotes artísticos transformem sintomas em criações artísticas que podem reatar a ligação com a realidade. Os mesmos conteúdos psíquicos dos neuróticos encontram-se nos sãos, porém em quantidade ou proporção diferentes. Mas é no processo de transferência, que o paciente estabelece com o médico e que provém das fantasias tornadas inconscientes, que o doente se dá conta dos sentimentos sexuais que aí se elevam e se transformam em outros produtos psíquicos. Opondo-se a psicanálise, teme-se que os instintos sexuais reprimidos ao serem trazidos à consciência possam entrar em conflito com a moral do sujeito e causar mais sofrimentos, porém a destruição do caráter civilizado pelos impulsos liberados da repressão é impossível, já que era inconscientemente que eles se manifestavam com mais força. Tais desejos se tornam inofensivos à vida do indivíduo seja pela ação mental de sentimentos contrários dominando o que lhe é hostil; seja fazendo utilização conveniente dos impulsos inconscientes no processo de sublimação, permutando os fins sexuais por outros de maior valor social; seja satisfazendo parte dos desejos libidinais reprimidos já que a civilização não pode negar a felicidade individual e nem nos fazer desviar o instinto sexual de sua finalidade própria.


Pronunciadas por Ocasião das Comemorações do Vigésimo Aniversário da Fundação da CLARK UNIVERSITY, WORCESTER, MASSACHUSETTS. Freud, Setembro de 1909. Tradução do professor Professor Durval Marcondes. Em: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, volume XI.
[1] Método semiótico e terapêutico de Breuer.
[2] Fixação anormal ao passado.
[3] Divisão da consciência.
[4] Então, a hipnose utilizada por Breuer permitiria superar a resistência e ter acesso a esse setor psíquico.
[5] Prazeres que se relacionam com excrementos.
[6] Referências ao mito do rei Édipo e Hamlet.