quinta-feira, 30 de maio de 2019

Sobre a indução*

Como Russell nos mostrou até agora[i], o conhecimento das coisas existentes e que adquirimos pela nossa experiência nos limita e ampliar esse conhecimento passa pela inferência (p.ex. sabermos que o barulho do trovão é sempre precedido por um raio, etc.). A respeito do sol que nasce todo dia, Russell se pergunta se confiar que ele nascerá novamente amanhã é um resultado cego do que vemos diariamente ou poderia ser uma crença razoável.
Ele argumenta que é plausível supor que o sol nasça amanhã porque nasce todos os dias (resultado cego), mas podemos inferir essa crença das leis do movimento da terra, dos astros, etc., leis essas em que confiamos porque sempre aconteceram (crença razoável). Ou seja e ainda assim, a probabilidade do sol nascer amanhã se basearia nas nossas observações diárias e, por isso, coisas que ocorrem frequentemente seriam a causa para que acreditemos que continuem ocorrendo frequentemente, embora possam ser enganosas, às vezes. Nesse sentido, Russell cita o inusitado caso do frango que sempre foi alimentado diariamente por seu dono até que teve seu pescoço torcido. Então, não estaríamos na mesma posição desse frango? Que certeza nós teríamos para esperar que tais eventos ocorram?
A pergunta se volta se podemos crer nessa uniformidade da natureza, onde há leis gerais como as leis do movimento e a lei da gravidade que são usadas pela ciência e tomadas como “sem exceção”. Elas se mostram válidas até agora, mas podemos crer que o que houve no passado continuará a ocorrer, por alguma razão específica? Haveria uma lei garantidora do futuro que não o próprio passado (que já foi futuro...)? Há garantias de que duas coisas que normalmente estão associadas continuarão a estar? A partir dessas perguntas, Russell diz: “On our answer to this question must depend the validity of the whole of our expectations as to the future, the whole of the results obtained by induction, and in fact practically all the beliefs upon which our daily life is based.”
Logo, estamos no terreno da probabilidade que, se pode sempre aumentar, nunca é certa já que o último exemplo pode ser uma falha (lembremos do frango!!). Russell, então, define o princípio da indução baseado na frequência da associação em que, se elevando a probabilidade, pode chegar à certeza. E do particular ele formula a regra geral:
“(a) The greater the number of cases in which a thing the sort A has been found associated with a thing the sort B, the more probable it is (if no cases of failure of association are known) that A is always associated with B;
(b) Under the same circumstances, a sufficient number of cases of the association of A with B will make it nearly certain that A is always associated with B, and will make this general law approach certainty without limit.”
Essa probabilidade, conclui Russell, se assenta em um conjunto de dados verificados e novos dados não a invalidam, mas criam um novo quadro. Apesar disso, se o princípio da indução não é garantidor do futuro, ele é um grande aliado nas convicções diárias pois as leis gerais, a despeito das inúmeras evidências, por si só nada dizem sobre o futuro, se não se assentarem em tal princípio.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Acerca da dúvida

Imagem abrilsuperinteressante
A nossa existência é pautada por uma relação com o mundo e com as outras pessoas: não somos sozinhos e somos dependentes. Por "mundo" entende-se a natureza, os astros, os outros animais, enfim, o universo. Ou seja, coisas para as quais não temos uma relação de equivalência e simetria, diferentemente de nossa relação com as outras pessoas.
O peso da dúvida é a mola-mestra de nossa existência, seja na relação com o mundo ou com as outras pessoas. Por mais que interroguemos o outro, por mais elementos comportamentais e psicológicos que nos seja possível extrair de alguém, jamais saberemos ao certo se eles são verdadeiros, não por uma questão moral ou ética, mas pelo simples fato do conhecimento, do véu que encobre nossa visão e embaralha a interpretação do mundo. Diante disso, tal relação deve ser, senão relevada, minimizada. Sabendo disso, temos uma régua para nos medir e medir os outros e, a partir daí, viver.
Já a relação com o mundo começa quando começamos, quando nos deparamos com a vida e terminará quando menos se espera. Essa é a única relação certa enquanto vivemos ou enquanto haja mundo para vivermos. Entretanto, jamais conseguiremos entender ao certo porque estamos aqui, como viemos parar nessa capa humana e qual a força que nos move. Eis a dúvida.
Nesse oceano de ilusões e elucubrações, a ciência nos auxilia com o que é possível conhecer, de fato. Ela explica o fato. Conhecemos pela ciência algo que não conhecemos pelos nossos esquálidos sentidos individuais, mas que se desenvolvem pela exploração colaborativa de nossa espécie. A filosofia nos auxilia com possibilidades de conhecimento teóricas, nuances não disponíveis ao instrumental científico e que nos permite especular além do dado. Ela é, sem dúvida, um grande contingencial para interpelar a dúvida. Por fim, a religião nos permite superar qualquer abordagem especulativa e conceitual e subir ao transcendental, território de exploração ilimitada, de valores incomensuráveis aonde impera a superstição.
Temos armas para lutar contra a dúvida, sejam científicas, filosóficas ou religiosas. Elas podem ser escolhidas e combinadas a nosso bel prazer, a depender dos incômodos de cada tempo, das adversidades. Renegá-la, jamais. Naturalizá-la, tampouco. E nem mesmo derrotá-la, mas alimentá-la como fogo fátuo nessa efêmera, porém única e incansável existência.

sábado, 18 de maio de 2019

Ideias de Deus*

Idealismo e Teoria do Conhecimento. Russell relembra que idealismo significa que o que existe ou pode ser conhecido é de alguma forma mental, ressaltando que há vários tipos de idealismo. Segundo ele, embora o fato de imaginarmos que o mundo físico à nossa volta possa ser produto da mente ou deixe de existir quando fechamos os olhos, o idealismo não pode ser descartado como absurdo. Russell nos mostrou que o mundo físico, se existente independente de nós, deveria ser diferente dos dados-dos-sentidos, o que tornaria difícil a conceituação de sua natureza. Porém, mesmo que soe estranho como o idealismo caracteriza a apreensão da realidade, Russell afirma que o idealismo remete à teoria do conhecimento e às condições que temos para conhecer as coisas que nos cercam.
Conceito de Ideia. Já vimos, também, que Bishop Berkeley foi o primeiro a conceituar dados-dos-sentidos dependendo de nossa mente e com ampla aceitação na filosofia. Argumentando que só temos garantia do conhecimento de dados-dos-sentidos, para Berkeley tal conhecimento estaria em nossa mente (se não na minha, em outra, em alguma mente...) e só seria possível pela noção de ideia, que é exatamente o que é imediatamente conhecido por nós: uma cor que vemos é uma ideia, uma voz, etc. Ao exemplificar o que conhecemos de uma árvore, Berkeley afirma que é uma ideia dela em nossa mente, mas quando essa ideia se esvai, a árvore não existe mais? Jamais, ela existe porque é uma ideia de Deus e as ideias de Deus nunca cessam.[i] Então, tudo o que vemos, sentimos ou tocamos são ideias que só são porque são ideias de Deus e por isso todos nós compartilhamos de ideias semelhantes, pois são de Deus. Se Deus cessa, o mundo cessa[ii].
Falácias do Conceito de Ideia. Porém, explica Russell, se o conceito de ideia remete a algo em nossa mente, a ideia de uma árvore não significa que a árvore toda está em nossa mente, mas um pensamento dela. Se Berkeley, em oposição ao objeto físico, trata de dados-dos-sentidos como algo subjetivo e, por isso, mais dependendo de nós do que do objeto, isso não significa que tudo que é imediatamente conhecido está em nossa mente. O que importa a Russell não é a distinção entre dados-dos-sentidos e objetos físicos, mas a questão de saber se tudo que conhecemos é mental. Russell argumenta que uma coisa é a consciência de uma cor em nossa frente (o ato mental de apreensão que está em nossa mente) e outra é a própria cor percebida pelos dados-dos-sentidos. Russell aponta para uma confusão no conceito de ideia de Berkeley entre o ato de apreensão e a coisa apreendida[iii].
Outras falácias. Tal confusão entre ato e objeto permite a Russell caracterizar a mente como tendo a capacidade de apreensão de outros objetos que não ela e enfatizar que limitar o seu conhecimento a coisas que estão na mente, como faz Berkeley, equivale dizer que essas coisas não são mentais, invalidando seu conceito de ideia. Além disso, para Russell, há uma suposição de que o que existe deve ser conhecido por nós, nesse caso, a matéria seria uma mera quimera, pois só conheceríamos mentes e ideias mentais. E o que não tem importância para nós não seria real, porém, segundo ele, a matéria faz parte de um desejo de conhecimento que temos.
Teoria do Conhecimento de Russell. Russell se refere ao conhecimento de duas maneiras: 1.) oposto ao erro, conhecimento de algo que julgamos verdadeiro e 2.) conhecimento de coisas, um tipo de apreensão, por exemplo, conhecimento de dados dos sentidos. Russell então muda a suposição destacada acima a acusando de falsa: “We can never truly judge that something with which we are not acquainted exists.”[iv] Ele argumenta que se não pode ser conhecido (apreendido) como imperador da China, mesmo assim pode julgar verdadeiramente que ele existe. Ele finaliza dizendo que sim, o fato de estar familiarizado com algo indica o conhecimento desse algo mas não estar familiarizado com algo não significa que este algo não pode ser conhecido ou exista. Podemos julgar verdadeiro algo com que não estamos familiarizados, mas que podemos conhecer por descrição, assunto que será investigado no próximo capítulo.



* Bertrand Russell, Problems of Philosophy. IDEALISM. Acessado em 11/05/2019: http://www.ditext.com/russell/rus4.html.
[i] Conforme Russell: “Its being, he says, consists in being perceived: in the Latin of the schoolmen its 'esse' is 'percipi'.”. Ou seja, o ser da árvore é sempre um ser percebido [por uma mente].
[ii] Inclusive nós, acreditamos, pois nesse caso também somos ideias: de Deus, para os outros.
[iii] Ou: “Thus, by an unconscious equivocation, we arrive at the conclusion that whatever we can apprehend must be in our minds.”.
[iv] Usaremos acquainted como familiarizado e/ou apreendido indiscrinadamente.