sábado, 24 de fevereiro de 2018

A deliberação humana*

Se a consciência é juiz incompetente em matéria de vontade, também a percepção exterior o é, pois se volta para fora. Então, não é de nossa vontade que se trata, mas da dos outros seres que se apresentam a nós. A energia cognitiva deve se concentrar no exame desse objeto exterior através da lei da causalidade, que nos é conhecida a priori, e versa sobre fenômenos que aparecem a partir de causas e efeitos com regressão infinita (efeito<=causa<=efeito<=causa... não se descobre o ponto inicial!). Para Schopenhauer, a forma geral de nossa inteligência é dada pelo princípio de causalidade kantiano, por ele recuperado como princípio de razão suficiente, e significa que, dada uma causa, há produção do efeito, necessariamente. Assim, todos os seres da experiência que nos são dados como objetos reais, divididos em inorgânicos, vegetais e animais, estão submetidos a esse princípio, nas seguintes formas motoras: 1) Causalidade, 2) Excitação e 3) Motivação.
A causalidade é caracterizada pelas segunda e terceira lei de Newton (identidade de ação e reação e intensidade do efeito proporcional à intensidade da causa) e governa as mutações mecânicas, físicas e químicas distintivas dos corpos inorgânicos.  A excitação governa o desenvolvimento da vida vegetal e não segue as leis de Newton. Por isso, há um grau de excitação que ultrapassado produz resultado inverso. Por exemplo, a água faz a planta crescer, mas, em excesso, a faz morrer. Já a motivação é distintiva dos seres animais e supera as excitações, dado que as suas necessidades são mais complexas e seus movimentos dependem da escolha de diversos motivos. Essa é a vontade, representação da inteligência guiada por um objeto exterior. Ao passo que a excitação se dá pelo contato imediato da causa excitadora (luz, por exemplo) com o efeito no objeto por intermédio da atmosfera, o intermediário da motivação é a inteligência e, independentemente de que distância um objeto esteja do sujeito, não se poderá prever a influência que será exercida sobre ele. Há a atividade de uma “força vital” nos vegetais, aparente, e a atividade de uma força natural nos animais, que se esconde no interior de cada consciência. Essa mola propulsora é caracterizada por Schopenhauer como a vontade, que conduz o nosso movimento e é comparada à coisa em si de Kant.
Como os animais não passam da representação sensível, eles agem influenciados pelos objetos que lhe são acessíveis em determinado momento. Esse é o instinto animal, guiado sempre por um motivo mais forte que determina sua vontade. Já a inteligência humana é muito superior à de outros animais, pois, pelo poder de abstração da razão, combina palavras em conceitos universais pela faculdade do pensamento e forma representações não sensíveis através das quais pensa e reflete e agrega, para sua escolha, objetos ausentes além dos objetos exteriores que a influenciam. Na maioria das vezes, são esses pensamentos que orientam a ação e não o que se apresenta externamente naquele momento. Tal existência interior revela a intencionalidade da ação humana, desconhecida dos animais. Mas a diferença não passa disso: o pensamento do homem se torna um novo motivo que pode, por força do intelecto, ser revisitado quando a vontade se encontra sob a causalidade oriunda da percepção exterior. Essa operação é a deliberação.


(*) Schopenhauer, Arthur. O Livre Arbítrio - Col. Saraiva de Bolso. Considerações iniciais do capítulo terceiro (p. 51-63).

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Corpos dóceis e rentáveis*

Seguindo o modelo emprestado da Genealogia da Moral, de Nietzsche[2], Foucault afirma que em toda sociedade há práticas e, ao se perguntar sobre o surgimento da prisão, nesse seminário e no próximo, analisará a prática de castigar. Já Nietzsche, lá, afirmava que bem e mal são valores transcendentes, são criações humanas que se estabelecem perante relações de poder. Essas relações de poder, para Foucault, estão associadas a um saber: há produções de verdade em cenários de conflito e as práticas de castigo produzem verdade. Nesse estudo sobre as instituições penais, Foucault verificará que práticas jurídicas (saberes) produzem castigos (verdades). Relações de poder produzem saberes que retroalimentam o mesmo poder [dominante, estabelecido].
Aqui, Gustavo faz uma digressão, a saber, compara a equação de poder de Foucault com a teoria marxista. Em Marx, há um vínculo entre poder e saber, a conhecida ideologia. Porém, a ideologia, enquanto conjunto de falsas representações do mundo porque se orientando pelos interesses de quem manda, está associada aos donos dos meios de produção. Ou seja, o poder é “um algo” que deve ser tomado[3]. Mesmo Althusser, mestre de Foucault, referia o poder aos donos da produção. Já em Foucault, o poder não é só criação dos poderosos, mas depende dos dominados. O poder não está somente de um lado, mas em uma relação de forças e é nesse cenário de conflito que surge um saber. Essas relações de forças não são fixas, estáveis, senão que há um movimento, tensão constante e um novo saber modifica a relação de poder. Vejamos um exemplo prático das estratégias de poder. No início do capitalismo industrial, os donos dos meios de produção criaram uma “caixinha” financeira que serviria de provento para os momentos de crise e que pudesse manter os empregados vinculados ao patrão, enquanto a situação não melhorasse. Porém, como a crise não veio, os empregados passam a pedir demissão de seu emprego atual em busca de novas posições, já que conseguiam se sustentar por algum tempo com a renda proveniente dessa caixinha. Ou seja, uma ideia para dominar promove uma possibilidade de ascensão e a prática se expande. Por fim, esse novo saber gera uma retaliação do poder: fica proibido o resgate dessa caixinha em casos de demissão.
No caso do nascimento da prisão, Foucault se pergunta quais eram as forças em luta para criar o conceito de uma sociedade disciplinária, que teria surgido no século XIX, a partir dos saberes emergentes das ciências humanas: psicologia, sociologia, etc. Ao fazer a genealogia das formas jurídicas para a resolução de conflitos, Foucault identifica a medida, o inquérito e o exame. A forma da medida é a da resolução de conflitos no mundo grego, onde ou se jura pelos deuses ou se enfrenta o oponente a partir de um desafio, em busca da verdade no litígio. A segunda forma, da investigação, é uma técnica que, apesar de oriunda da tragédia de Édipo Rei[4], toma lugar no início da renascença, a partir dos saberes empíricos empregados pelas ciências da natureza. É o método da observação e descrição de Bacon, Newton, usado na prática jurídica para colher o depoimento das testemunhas do litígio, quem viu o ocorrido, como pode ser provado, etc. A terceira forma jurídica de descobrir a verdade é o exame, que é característico da sociedade disciplinária, panóptica. Ela se orienta por uma norma, determinada regra de conduta que deve ser seguida.
Definamos Disciplina: conjunto de técnicas e procedimentos para produzir corpos economicamente rentáveis e politicamente dóceis. A Disciplina é usada por Foucault para mostrar como se controla a população de maneira individual (microfísica) ao passo que depois será usado o termo Biopolítica para tratar do controle geral. Na Disciplina, o poder invade o mais íntimo do ser e chega ao mais corporal possível. Novamente relacionando com o marxismo, verifica-se que a doutrina foca no aparato de estado e não vê ao nível de corpos. A sociedade disciplinária surge para fazer os corpos cumprirem sua função de produzir e tem por objetivo a normalização dos corpos. Nesse contexto do século XIX, anormal é aquele corpo que não é economicamente produtivo ou aquele corpo que não é politicamente dócil[5]. A sociedade disciplinária precisava dos conhecimentos humanos para normalizar, mas, ao fazê-lo, produz o anormal.
O conhecimento humano, a sociologia, cria um saber para dominar. Durkheim estuda o suicídio: por que tantos? Corpos não se adaptam, é preciso enquadrá-los, restabelecer o equilíbrio. Mas se as ciências humanas são saberes da sociedade disciplinária, ainda assim há uma filosofia social como a de Marx, que reage a essa sociedade. E a saída pode ser a revolução...


(*) Conforme informações fornecidas pelo Prof. Dr. Gustavo Adolfo Romero, em: “81565 - Michel Foucault, filósofo de la verdad. Un estudio de sus cursos en el Collège de France”.  1º Summer School da FFLCH: Janeiro/2018.
[2] Segundo informação fornecida pelo prof. Gustavo, Nietzsche tinha teses brilhantes, porém lhe faltavam fontes históricas. Isso porque, como se sabe, a doença de Nietzsche fazia com que ele se deslocasse constantemente e tivesse pouco acesso aos livros. Apesar da Genealogia da Moral ser um tratado sistemático, segundo Gustavo, Foucault, frequentador da Biblioteca Nacional da França, pode realizar seus estudos de maneira muito mais embasada.
[3] Vemos essa mesma concepção de poder em Espinosa, o poder como uma força com  propriedade ontológica.
[4] Édipo busca com tanto empenho a verdade que não a suporta.
[5] O Anormal: o hermafrodita, os siameses são problemas para a ordem judicial e trazem questões legais. Quem decide a sexualidade dx hermafrodita? Um siamês que matou alguém, como prendê-lo sozinho, sem o outro?