quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Pós[-meta]

Acreditamos que tem que haver sempre uma meta, algo a ser cumprido. Uma vez estabelecida, as ações para que ela se efetive são organizadas e inicia-se o processo. Com o processo em curso, as coisas tendem a se adaptar: há arranhões aqui e acolá e muito do previsto não é feito 100% como se queria ou deveria, porém evolui-se. Há metas curtas, mas há metas longas, que levam anos. Há metas mais planejadas e metas que vão acontecendo por acaso. É verdade que uma meta pode interferir em outra, na maioria das vezes positivamente. Também é verdade que as metas nos fazem mudar de comportamento, quase sempre para melhor (ou não, pode ser mera ilusão).
O fato de haver metas a serem cumpridas não significa que não se possa viver de outro jeito, apenas indica que elas forçosamente nos levam a sair da zona de conforto. E elas não precisam ser muito concretas, pode haver metas de uma vida inteira como, por exemplo, viver ousadamente, viver precavidamente, etc. Entretanto, ações são sempre necessárias para manter a chama acesa. Enquanto a meta não se completa a luz amarela de alarme está sempre piscando para lembrarmos que sim, ela está lá, muito embora uma meta possa ser alterada em curso ou mesmo cancelada, terminada por falta de recursos porque sua função foi desacreditada ou porque novas metas se sobrepuseram a ela.
Posto isso, fica a pergunta: o que fazer quando uma meta é atingida e acaba satisfatoriamente? Seguindo nossa linha de raciocínio, não se pode negar que uma nova meta precisa ser estabelecida. É sabido que existem metas que já vêm com a nova estabelecida, o que pode levar a se pensar em um falso problema de que a meta só estaria concluída se o seu futuro complemento fosse concluído. É aqui que a palavrinha mágica “pós” ganha destaque com o que podemos classificar de dupla acepção: por um lado, positivamente, significando acréscimo ou melhora e por outro, negativamente, como sendo algo que se arrasta para além do que se previa. Veja-se o caso de pós-graduação como sendo algo que se soma à graduação e pós-modernismo, na estética, trazendo a discussão se a contemporaneidade é um mero apêndice do modernismo, esse sim, determinante.
De qualquer forma, há sempre o fim de uma meta e uma nova a ser deflagrada – uma pós-meta, que pode ser continuidade ou recomeço. Eleger a forma que isso se dá é nossa responsabilidade perante o que foi construído com a meta anterior e de que maneira influenciará nossa vida atualmente. Artimanhas podem ser providenciais, como trabalhar com pequenas metas ou se dar ao luxo de um ano sabático, mas elas hão de nos confrontar em algum momento. Recorrer ao que já deu certo pode ajudar, porém nada impede que um caminho totalmente novo possa ser escolhido. A ressalva que fica é não se deixar levar pelo momento, pela falta de meta, pelo anti entusiasmo. Objetivos cumpridos nos pertencem mas são carta fora do baralho no momento da pós meta e ela não pode ser um vazio porque o vazio é lugar onde as mais imprevisíveis situações podem tomar o nosso lugar de decisão.

domingo, 5 de novembro de 2017

Nada mudou*

O sangue bravamente derramado muitas vezes não é honrado. A revolução dos bichos[1] é a estória de uma revolução para pior. Se, no início, homens e bichos se diferenciavam pela natureza - e aí talvez fizesse sentido os animais serem espoliados, quando os bichos tomam o poder dos homens e se instaura uma possibilidade clara de socialização, nesse momento floresce nova tirania e mais avassaladora. A revolução dos bichos é uma estória que mostra como o poder estabelecido se desenvolve de forma a instituir leis injustas, conceder privilégios para a casta dominante, ceifar direitos e transformar verdades através da manipulação e intimidação, deteriorando as condições de vida.
O sonho da revolução promete liberdade e igualdade e a luta por ela vale a vida. Os porcos, líderes intelectuais que a semeiam e conduzem, rechaçam os vícios e pregam uma vida frugal, são os porcos que no poder veneram o luxo e cedem ao conforto herdado dos humanos. Porcos corrompidos pelo progresso que superam os humanos: a fazenda governada pelos bichos explora mais os bichos e produz mais. Seria o fruto da experiência de ser bicho e saber como domesticar e admoestar os semelhantes? Mais do que isso, é ainda o sabor da experiência humana: os porcos passam a andar em duas pernas e mudam o lema da revolução que era “quatro pernas bom, duas pernas ruim” para o lema do governo “quatro pernas bom, duas pernas melhor” repetido pelos bichos desconfiadamente não acreditando que esse era o lema anterior. Trabalho e vida frugal, não para os porcos.
A revolução dos bichos mostra as armadilhas que o discurso político pode trazer. A revolução dos bichos não é uma ode contra a revolução, ao contrário, é uma ode contra o poder estabelecido que de um jeito ou de outro se perpetua no novo. Esse lugar marcado do poder deve ser combatido e exterminado, se a revolução quiser ser gloriosa. De outra forma, nada mudará.




(*) Da série Revisando as notas das aulas da escola – voltamos ao 2º Semestre de 2015 e uma proposta muita interessante de análise filosófica de textos literários na disciplina de Introdução aos Estudos da Educação: Enfoque Filosófico.
[1] ORWELL, G. A revolução dos bichos. Tradução de Heitor Aquino Ferreira. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003.

sábado, 30 de setembro de 2017

A corrupção do homem*


Em tempos de progresso tecnológico e predomínio do mundo virtual, recorrer a Rousseau pode “iluminar” algumas questões. Evitando o anacronismo, consideremos a análise que Rousseau faz dos costumes em seu Discurso sobre as ciências e as artes, no ano de 1749 e que, já na época, foi objeto de muitas críticas. Para ele, a ciência e as artes estariam relacionadas à decadência moral dos homens já que os artistas viveriam “à custa” dos que trabalham e o progresso científico os levariam ao luxo, ócio e vaidades. Isso em pleno iluminismo!! Ele considerou suas próprias peças e poesias um erro de juventude e abandonou as roupas da época em uma verdadeira reforma pessoal. Controverso, mas saibamos entender sua tese paradoxal: o progresso das ciências e das artes levaria à degeneração dos costumes e traria um suposto conforto maculado.
A cultura, que é criticada no primeiro discurso, será colocada a parte no segundo, o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, quando Rousseau sai à busca da condição natural do homem. Será necessário abandonar os livros que falam do homem civilizado [não natural] para encontrar a essência da natureza humana e o ponto aonde a desigualdade foi introduzida. Nesse suposto estado natural haveria dois princípios inatos e independentes da razão humana: o amor de si, através do qual o homem se interessa pela sua própria conservação já que quer viver, e a piedade natural, que é o sentimento de repugnância ao sofrimento de outro ser vivo. A cultura traria o enfraquecimento da piedade natural e transformaria o amor de si em amor próprio.
Se há uma desigualdade natural, por exemplo, de idade entre a criança e o velho, entre homens altos e baixos ou lentos e rápidos, há uma desigualdade moral ou política de riqueza, poder e privilégios. Mas qual a sua origem? Em que momento ela foi introduzida se opondo à natureza? No estado natural todos são robustos e buscam alimento respeitando a desigualdade natural. Já a desigualdade civil agrava a desigualdade natural. Essa história hipotética do homem se vale seja do afastamento dos livros científicos seja dos fatos. Os discursos mostram que o progresso não melhorou os homens moralmente e não os tornou felizes. Se cada passo do progresso traz o conforto como avanço, também traz o enfraquecimento das habilidades naturais como perda e o aumento da desigualdade.
A teoria do estado natural é inerente à época fazendo parte dela Hobbes, Locke e Pufendorf, entre outros, mas, para Rousseau o estado de natureza humana não aponta para a criação de um estado civil que deveria evitar o aniquilamento da espécie pela lei, já que para ele o estado natural é um estado feliz. Nele, os homens vivem dispersos e isolados, o homem é independente e autossuficiente e sua destinação é permanecer na vida e na natureza[1]. No campo moral, dado que os homens não tem relação entre si, não há deveres comuns e, por conseguinte, não há vícios e virtudes. O homem natural não é bom nem mau e não se pode falar em caráter ou moral.
Porém, gradativamente, o homem vai alterando suas condições materiais e sai de sua vida nômade para uma vida familiar e, com o progresso, surgem as diferenças entre eles. Das diferenças vêm as comparações e a dar-se preferência a esse ou aquele. Antes se escolhiam “coisas”, agora se escolhem pessoas e valores [criados]. O homem civilizado traz consigo as paixões e, na tentativa de agradar aos outros, surgem as aparências e já não é possível saber o que é verdadeiro ou falso, o que é realidade ou aparência.
Dá-se início o processo de degeneração: na dependência de uns em relação aos outros em virtude das divisões de trabalho aparece o conflito de direitos que, associado às já conhecidas desigualdades naturais levam o homem a um estado de guerra. A vaidade faz com que homem queira consideração e prestígio, ele quer agora levar vantagens, aumentar seus bens. Vê-se a transformação do amor de si em amor próprio e, como nessa situação ninguém tem segurança, o homem decide pelo pacto de construir leis comuns que deveriam ser obedecidas. Mas é aqui que se atinge o ápice do declínio: os mesmos vícios que fazem os homens inventarem a lei são os que os fazem burlar a lei. O ponto nevrálgico da corrupção humana é a transgressão às leis [2].
Nota-se em Rousseau um pessimismo histórico e uma crítica de sua modernidade e das leis ineficientes e que, por um contrato não representativo, não são guiadas pelo interesse comum. Do balanço do homem natural com o homem civilizado observa-se o surgimento das paixões e inclinações, do trabalho, do ser e parecer. Da pergunta se a origem da desigualdade está fundada na lei natural obtém-se a resposta de que não: ela está fundada na propriedade legitimada nas leis, no desenvolvimento do espírito humano e na desigualdade moral contrária ao direito natural. O modelo de felicidade de Rousseau é o homem natural e isso pode ser muito instrutivo nos nossos dias.


* Da série Revisando as notas das aulas da escola – voltamos ao 1º Semestre de 2012 que discutiu o tema da servidão voluntária de La Boetie e o modelo de Rousseau referente ao progresso e à política, na disciplina de Introdução à Filosofia.
[1] As teorias do estado de natureza são amplas e requerem análise aprofundada. As concepções de estado de natureza guiam a teoria política, nesse momento. Aparte ainda há discussões de comparação entre os homens e os animais ou mesmo especulação sobre o surgimento da linguagem.
[2] Há maiores implicações nesse estágio como a perda da liberdade ao abrir-se mão do estado de natureza; há a primazia dos ricos sobre os pobres nessa instauração; há a culpa do que primeiro cercou a terra e dela se apropriou; há o surgimento da tirania; há a hereditariedade ilegítima; enfim, há um aprofundamento que se fará necessário analisar, mas que já deverá acontecer em termos de política e do Contrato Social.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Colação de grau

As palavras têm seu significado. Colar é grudar, juntar de modo que não desgrude, senão a cola não é boa. Grau é uma graduação, um nível: primeiro grau, segundo grau e por aí vai. Porém,  algumas combinações de palavras poucos entendem. O que é colar um grau? Onde um grau será grudado? Em nosso país, quantos saberiam o que é colar grau?
Palavras vazias, ação vazia. Colar grau não serve para nada. Compromisso forjado. O grau depende do seu grau. Você é o termômetro. Um dia alguém inventou uma burocracia chamada "colar grau" que visava chancelar algo, uma etapa. É uma combinação abstrata, mas um fato que nos persegue. É aí que claramente as palavras ganham força e colar grau se torna ou se supõe uma responsabilidade. "Colar grau" significa: não se esqueça do que fez!!! É um lembrete ou uma recordação? Se colar grau não significasse nada não haveria essas palavras. Não há honra sem mérito e não há palavra sem significado.
Muitas vezes a força das palavras serve para separar. Quanto mais se sabe mais se pode. A cada grau uma nova ordem de palavras. Afinal, para que serve o grau? Livremo-nos das palavras, livremo-nos das burocracias!!! Rumo à economia de palavras, rumo ao pensar, sentir, dormir. Aparemos as arestas burocráticas, evitemos o mérito. Eles, para quê? Mundo civilizado hipócrita que impõe obstáculos a serem superados para nos redimir. Mas,  + hipócrita é um discurso fantasioso como esse, pois tem como mote a palavra e que só se cria pela palavra. E viva a colação de grau. Viva tudo isso.

sábado, 17 de junho de 2017

Nas masmorras do poder

Cada pessoa é um polo organizador e detentor de poder e lança seus poderosos tentáculos sobre os que estão dentro de seu raio de atuação e movimento. Não há ser que pensa que não detenha poder. Poder, se não é vida, é sobrevida, em último caso. Claramente há aqueles que podem ou não fazer uso do poder ou renunciar ao seu poder, mas ainda o fazem dentro de sua vigência de poder. E, obviamente, há aqueles que tiveram seu poder usurpado por poderosos mais fortes.
Mas, não nos interessa tratar aqui de legitimidade, mas de metafísica ou quase antropologia, hermeneuticamente falando. Nesse sentido, uma consciência tem poder. E, não importam quais meios ela utilizará para que ele se efetive, para o poder o fim é a meta. Um poder sempre quer ser mais e sempre quer mais. Ele quer ser em si muito mais intenso pois essa é sua dinâmica. Ele quer ser nos outros muito mais, aumentar a sua área de influência e dominação.
Ipsi litteris, um poder não é igual a um domínio, mas sempre a ele almeja. O domínio é um poder realizado, em plena atividade. O domínio é um poder descansado, acabado, formalmente falando. E o poder usa de um domínio para aumentar seu poder e criar novos domínios.
Isso posto, constatamos que nos fazemos nas catacumbas do poder e a ele não podemos recusar. É preciso entender como os poderosos nos dominam, se nosso poder está em risco e como e onde utilizá-lo, da melhor forma. Para o poder, a melhor forma é mais. Por isso, não nos contentemos com menos.

terça-feira, 9 de maio de 2017

Dialética sobredeterminada*

Trata-se de mostrar pontos da dialética marxista a partir da contribuição de Althusser, conceituação que diverge da interpretação do marxismo vulgar.
O marxismo vulgar aplica a dialética hegeliana ao materialismo dialético, porém inversamente. Em linhas gerais, a dialética hegeliana é o desenvolvimento histórico do espírito absoluto que se manifesta no real através dos fenômenos materiais. O espírito absoluto é a essência que produz efeitos no mundo real tal qual nós o conhecemos: mundo aparente. O material é um efeito do espírito que é a essência. O desenvolvimento do espírito absoluto tem uma finalidade racional e, na sua teleologia, não se dispersa, não há momentos de indeterminação. Conforme Homero bem lembra, Fukuyama já tratara do fim da história, com Hegel o fim racional teria sido dado com a revolução francesa e sua concepção de Estado criado por uma astúcia da razão.
Para o marxismo vulgar, o desenvolvimento dialético se dá essencialmente pela economia. Aparentemente somos racionais, porém a essência é o economicismo. A finalidade do materialismo histórico dialético seria mostrada pela contradição geral que se dá entre capital e trabalho, ou seja, burguesia e proletariado. Tudo convergiria para essa contradição que levaria ao fim do capitalismo. Porém, o exemplo de revolução oriunda da cartilha marxista, a revolução russa, não foi capaz de abalar todas as estruturas e, mesmo que tenha havido uma transição para a economia socialista, as demais estruturas não se transformaram. A contradição geral é uma possibilidade que requer condições objetivas para se realizar.
A partir da revolução russa, Althusser constata que a dialética pregada na cartilha marxista versa sobre a contradição hegeliana simples, quando na verdade a dialética marxista é sobre determinada. Tal concepção é oriunda do conceito psicanalítico do sonho onde há diversas sobre determinações sobre um efeito que se dá de maneira diversa[1]. O mesmo, então, se passa com as contradições do capital: não haveria uma contradição geral (econômica: capital-trabalho) que reduziria as demais contradições (cultural, religiosa, educacional, etc.)[2].Há sempre uma determinação dominante em última instância, que, no capital, é a econômica, mas que se relaciona com as demais instâncias e não as reduz. Sabemos da influência estruturalista sobre Althusser: não devemos buscar essa última instância econômica em sua origem, mas como ela se apresenta em um determinado tempo, por exemplo, na sociedade russa da revolução[3].
De posse disso, Althusser pode redefinir uma nova ciência da história que não é a ciência da historia do marxismo vulgar que se funda unicamente na contradição geral, mas uma ciência da história que se aplica a distintos modelos de sociedade, tomando a sua última instância de determinação em cada momento. Essa nova ciência da história seria, então, a base para uma nova filosofia marxista (apesar de críticas que possam haver a essa navalha da ciência).



* Anotações de aula de Moderna IV, professor Homero Santiago, tomadas em 04 de maio de 2017.
[1] Uma palinha do inconsciente sobre determinado pode ser encontrada aqui: http://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2016/09/cinco-licoes-de-psicanalise.html

domingo, 7 de maio de 2017

A lei sobre o furto de madeira e o direito dos pobres*

Bensaïd discute a evolução do direito e da propriedade privada na modernidade e de como o primeiro legitima a segunda. Porém, antes da instituição da propriedade privada, houve uma “propriedade de natureza” que foi por ela tomada e há um direito de existência relegado.
O problema, que ocorre na Alemanha de Marx (1842), refere-se a um direito consuetudinário dos pobres sob a coleta de madeira e que, então, passa a ser considerado crime por uma lei florestal. Marx questiona a deliberação principalmente a partir de dois pontos: que se a árvore faz parte da propriedade privada, os galhos verdes fazem parte da árvore e da propriedade privada, porém os galhos secos caídos não fazem mais parte da árvore e, portanto, também não fazem mais parte da propriedade privada e poderiam ser coletados sem dolo porque “juntar madeira seca do chão e roubar madeira são coisas essencialmente diferentes”[1].
Mais que isso, o segundo ponto levantado por Marx é que o que pune, o guarda florestal está a mando do proprietário florestal, o que causa uma confusão do público com o privado e “o direito torna-se um instrumento privilegiado para impor novas definições de propriedade em benefício dos proprietários”[2].
Há, além do direito consuetudinário, um direito natural que a natureza oferece às classes sem propriedade e que elas dele se utilizam para sobreviver. O ponto que a lei coloca é entre o direito dos possuídos e o direito de propriedade, já que os pobres passam a vender essa madeira, seja confeccionando objetos ou na forma natural. Haveria o direito de propriedade do possuidor sobre esse elemento natural? Parece falacioso, já que “o novo direito pretende abolir o direito imprescritível dos pobres ao bem comum oferecido pela natureza”[3]. Bensaïd lança mão de um conceito de propriedade híbrida ou incerta, usado por Marx, que se refere a um tipo de propriedade nem privada nem comum e que, do ponto de vista privado, haveria um direito dos possuídos, mas também dos não possuídos, ignorado pelo entendimento racional moderno. E um Estado que, devendo zelar pela racionalidade do direito coletivo, se perde na imposição do direito privado. Em um momento de transição e fortalecimento da propriedade privada, a lei é usada como instrumento de espoliação sobre os mais pobres ainda mais abandonados com a eliminação de instituições de auxílio.
Bensaïd, porém, argumenta que não é o direito consuetudinário que está na fundamentação de Marx, mas haveria um direito natural elementar. Sob a revolução francesa a Província do Reno tenta incutir o direito do homem sobre as tradições feudais, mas Berlim restabelece o direito prussiano colocando em dúvida a igualdade civil. Se a escola alemã de Hugo é contra o monopólio da produção estatal do direito, defende o direito consuetudinário histórico, porém o direito consuetudinário do privilégio e não o da parte desfavorecida. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, Marat já pregava um direito de existência: “Para conservar a vida, o homem tem o direito de atentar contra a propriedade, a liberdade e a vida de seus semelhantes”[4] e Robespierre a liberdade como direito elementar do homem. Sob tal influência, Marx vai argumentar no sentido de que, na correlação de forças do direito consuetudinário, é o direito da massa pobre que deve ser defendido e prevalecer, já que as legislações esclarecidas os atacam com parcialidade.


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* Em: Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Karl Marx e Daniel Bensaïd. São Paulo: Boitempo, 2017.
[1] P. 18.
[2] P. 20.
[3] P 21.
[4] P 26.

domingo, 16 de abril de 2017

Ontogênese e sobrevivência: um continuum*

Onto: ser, gênese: geração. Então: geração do ser e sobrevivência. Ou seja, o ser é gerado, de algum modo e em algum momento, vive e morre. Depois que morre, fica algo, algo sobrevive? Ordinariamente podemos admitir que nós nascemos quando ocorre a fecundação do óvulo de mamãe pelo espermatozoide de papai. E que morremos quando coração e cérebro param de funcionar. Mas, houve em algum momento a concorrência de uma decisão para o nosso nascimento? Foi mera casualidade ou haveria de ser dessa forma? Sendo mera casualidade fica realmente difícil propor qualquer teleologia. Ainda mais importante: somos algo de nossos pais e antepassados? Há algo deles que sobrevive em nós? Poderíamos efetuar a leitura de ontogênese e sobrevivência na chave de um continuum; há uma plasticidade nas passagens, não há beirada, não há ruptura. E também a nossa vivência seria uma composição contínua, de algum modo se unificando em nosso ser.
 A relativização de conceitos limita sua análise, mas facilita a compreensão. Uma coisa é analisar a sobrevivência por ela mesma, ou o que é a ontogênese. Estaríamos em um campo vasto de possibilidades e não teríamos algo em que nos apoiar. Porém, é muito mais fácil compreender a ontogênese em relação à sobrevivência e vice-versa. Pelo que nos é possível entender nesse momento, ontogênese e sobrevivência apontam para um continuum. Tomar o continuum como método de análise significa que não há uma ontogênese estrito senso porque sempre há uma sobrevivência. A história deixa de apresentar divisões para ser vista de maneira plástica: da idade média para o renascimento costumes se mantêm, não surge um novo homem. Mais do que isso, o homem renascido resgata o antigo e o funde no medieval, obviamente acrescentando algo. O continuum descarta o começo e marca a trajetória, o traçado. O continuum revela que não há fim e não importa a casualidade, mas a sobrevivência.



* A partir do mote de Maurício Ramos: http://filosofia.fflch.usp.br/files/graduacao/progs_pdf/2017-1/FLF0441_1_2017.pdf

quarta-feira, 12 de abril de 2017

A dinâmica de forças que se opõe à luta de todos contra todos*

A teoria da representação política de Hobbes surge para legitimar a submissão ao estado. Na transição do feudalismo para o modernismo, as cidades passam do campo de disputa entre senhores para se unificarem em torno de um poder único. É o surgimento da soberania[1] capaz de unir o diverso, sejam territórios difusos, sejam poderes concorrentes (escolas, famílias, exército). Soberania que agrega o empírico e é o fundamento da república. O poder soberano instituído descola o poder do ocupante do poder, da pessoa física: se o corpo físico morre, o lugar é transmitido para um herdeiro ou eleito. Mas qual a legitimidade de tal poder?
O conceito de representação de Hobbes[2] vem do teatro para vigorar no sistema político até os nossos dias. No teatro, o ator representa uma peça escrita pelo autor. A pessoa do ator é um personagem (persona, per: através, sona: sons – o som passa através da máscara), já que as palavras não lhe pertencem, pois são produzidas pelo autor. Porém, se o autor é autoridade no que tange a suas palavras e ações, ele transfere seus direitos, seu mandato, para o ator que, então, o representa. Hobbes diferencia a pessoa em duas: pessoa natural é aquela que representa a si mesma; pessoal artificial representa outro. Mas, se a pessoa natural é uma, como pensar a unidade da pessoa artificial quando se trata de uma multidão?
Havendo uma multiplicidade de autoridades, elas só se unificam a partir do consentimento de cada uma; quando as diferenças são eliminadas surge a unidade do representante – o Leviatã. Porém, tal unificação depende da transferência da autoridade através do pacto ou contrato. Assim, o representado reconhece suas falas no representante, legitimando-o. A multidão se torna uma, se torna povo e é instituída como autora. Transferindo seu poder e autoridade para o representante, aparece o Leviatã que produz o povo, o representado. Diferentemente do teatro, onde o ator deve agir de acordo com o roteiro do autor, na criação do Leviatã, quando a multidão se transforma em povo, esse se vê ausente do palco da política. O Leviatã, deus mortal criado pelo homem, se separa do povo e, transcendente, se separa também do social. Porém, a caracterização política de Espinosa difere dessa. Vejamos.
* * * *
Ao ser questionado sobre a diferença de sua abordagem em relação à hobbesiana, Espinosa responde, na carta 50[3], que ele mantem o direito natural mostrando que, na transformação da multidão em povo, há algo que escapa. Para ele, há um instransferível e irrepresentado, um algo que passa do natural ao civil. O próprio Hobbes tocou nesse ponto ao colocar que há um dever de obediência, que o soberano pode prender, mas não pode pedir para não fugir, nem que o ferido use medicamento para se curar. Se, para Hobbes, esse poder de resistência foi tratado como um resquício, para Espinosa esse é um limite interno que torna impossível a multidão se transformar em povo. Há, para Hobbes, uma guerra de todos contra todos no estado de natureza mas, com a insurgência da pessoa artificial do Leviatã, aparece a possibilidade da paz, ou seja, o poder institui a paz. Se no estado de natureza cada um tem todo o direito do mundo, passando para o estado civil há a transferência de poderes para o governante. Entretanto, Espinosa argumenta que há um pouco do direito de natureza que permanece no estado civil, já que o homem não pode renunciar a ser humano. Esse direito natural teria sido relegado por Hobbes, operando na sua teoria política como um corte radical para o estado civil.
A oposição de Espinosa se dá a partir do argumento ontológico: “Reconhecer-me representado em outro é destruir-me”. Sabemos, pela Ética[4], que só há uma substância e somos seus modos finitos, assim como tudo o mais que se segue na natureza. Portanto, a potência real é a potência substancial expressa por cada modificação finita como potência finitizada. Possuímos um conatus[5]: o esforço de preservação do ser, resistência, ação; e o desejo de buscar o que nos é útil a cada momento, desejo como consciência desse conatus. Assim como a essência de Deus é a sua potência, a essência do homem é esse desejo, potência determinada da potência divina. Então, como poderia haver a transferência completa de cada um para o soberano? Seria a destruição do ser. Se a ontologia torna impossível, Espinosa argumenta que há transferência para construção de um poder comum, mas não completa.
O homem é guiado por esse desejo e há homens que lutam pela servidão assim como homens que lutam pela liberdade[6]. O desejo humano produz revolução e campo de concentração. Porém, essa dinâmica de forças colocada por Espinosa refuta o totalitarismo, já que não pode haver poder total, porque há algo que deve permanecer em cada um sem o qual esse um seria destruído. O representante tem que lutar por cada ato a todo instante, não há um contrato estabelecido. Se, para Hobbes, a política é estática, para Espinosa ela é dinâmica; se o tirano quer exorcizar o conflito, a leitura espinosana da política revela o conflito pelo poder e a vitalidade da vida social. O poder soberano não está dado, não é um lugar a ser ocupado, lugar descolado, poder transcendente. O poder de mando é visto por Espinosa como imperium[7] e pertencente à multidão. Para Hobbes, o imperium é o representante, para Espinosa o imperirum é o representado. Se há resistência do poder natural no civil, sua legitimidade se dá pela potência: se tenho força, tenho que peitar.




* Anotações de aula de Moderna IV, professor Homero Santiago, 23 de março de 2017.
[1] Conceito de soberania atribuído a Jean Bodin por Homero Santiago.
[2] Fica pendente um post sobre uma análise mais detalhada da representação contratualista de Hobbes.
[3] Célebre pela distinção traçada com Hobbes.
[4] Já tratada "en passant" nesse espaço: "Deus, ou seja, a Natureza".
[5] Conceito a ser mais desenvolvido.
[6] Precisamos entender melhor o que significa lutar pela servidão, mas pode ser que, perante tamanha ameaça ou violência, o desejo escolha a servidão. A elucidar.
[7] Conceito a ser mais desenvolvido.

sábado, 8 de abril de 2017

Incômodo*

O que te incomoda? O que me incomoda? É um problema pessoal, familiar, social? É físico? Ou metafísico? Há algo que te incomoda? Há algo que me incomoda. Precisamos de um problema, o grande problema. Há tantos problemas... Mas qual é “o” problema? Há algo mal resolvido, sempre. Não fazemos nada tão interessante, escutamos e vemos tantas coisas. Cremos nisso? No que cremos? Nosso problema é a crença? É a vida ou a morte? É Deus ou o Diabo? Se existe, ponhamos com maiúscula... Ou o incômodo é simplesmente e nada mais do que o trânsito ou nosso time de futebol que não ganha? A fofoca é um problema? Seria a miséria ou a má distribuição de renda que gera tanta desigualdade e violência? E aquelas festas familiares tediosas e com sorriso amarelo em todos os rostos? Haveria de ser as manifestações com todo mundo de amarelo? Ou de vermelho, sei lá.
O incômodo que buscamos (e só há vida se há incomodo, e só há vida se há incômodo que queremos superar) deveria ser aquele incômodo que “realmente” nos incomoda. Ou seja, um incômodo concreto. A nosso busca pelo incômodo, aqui, agora (nesse momento), visa o não incômodo, ou seja, a sua superação. Eleger o incômodo significa que, dentre tantos, buscamos algo extremamente importante e que deve ser resolvido. Haverá uma resposta para o incômodo e queremos achá-la. Portanto, a eleição do incômodo é o critério valioso. Não deve ser qualquer um, deve ser algo que nos marca e nos acompanha, lá, no subterrâneo. Algo latente, mas não manifesto, talvez mais imanente do que transcendente. O transcendente aceita muitas respostas e gera controvérsias, mas podemos concretizar o transcendente.
Pode ser que um dos maiores obstáculos na superação de um incômodo e, por isso, em sua eleição, seja nossa passividade. Todas as respostas já foram dadas. Basta procurar, não é preciso formular. Afinal, faz tempo que estamos aqui habitando esse planeta e não haveriam tantos problemas novos. E esse, definitivamente, é o ponto. Saber que há problemas, saber que há respostas e: saber que não é a nossa resposta!!! Aceitar as respostas, adaptar as respostas à nossa situação e mudarmos. Não o incômodo, mas a sua formulação. Mudamos a formulação do incômodo para achar uma resposta escondendo o verdadeiro incômodo e o colocando na vala de todos os incômodos indiscerníveis e seguir.
Estaríamos fadados a esse fim? Mudar a formulação dos nossos incômodos para que as respostas já dadas os resolvam? Parece que sim porque é assim que ocorre, é dessa maneira que sempre vimos as coisas. A ciência, entidade que comanda nosso progresso, a promessa, age assim: universaliza-se, acha-se uma lei, generaliza-se excluindo o particular. A lei da gravidade é a lei geral que vale para todos os corpos, até para os celestes!! Mas, além de tal utilidade e, claro, conforto, já que a lei da gravidade é um passo na longa escalada tecnológica que nos trouxe a esse grandioso tempo super-informatizado e digitalmente inteligente, essa fórmula responde ao meu incômodo ou será que eu que transmuto o meu incômodo aos incômodos dados e respondidos?
Está na hora de mudar o método. Partir do incômodo único e pessoal, singular. É o seu, o meu incômodo que precisa de resposta. É a sua, a minha investigação que vai proporcioná-la. Obviamente, interessa a resposta para incômodos similares e podemos usá-la, mas não como fórmulas prontas porque o incômodo é biográfico, está inscrito em nós. Está na hora de levantar da poltrona e ir para o palco. Mentes brilhantes deram respostas brilhantes e iluminaram a sociedade, mas quantas mentes brilhantes foram ofuscadas? Buscar o incômodo é a chave para buscar a resposta e sistematizar. Haja quantos sistemas houver, haja quantos incômodos forem necessários, todas as respostas devem ser publicadas e um dia podem ser lidas, pois estarão catalogadas na biblioteca de Babel.

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* Maurício Ramos e o método que busca o conceito genético. Formas em movimento: ontogênese e sobrevivência, 07 de abril de 2017.

domingo, 19 de março de 2017

Entre o discreto e o contínuo

Todos nós somos capazes de conceber uma reta como uma sequencia infinita de pontos. Isso porque a reta deve ter uma composição e, devido a sua infinidade, não conseguimos representa-la como uma coisa única. Já para um triângulo, basta destacarmos três pontos ligados por três retas finitas que terminam onde se cruzam, não importando a composição delas. Mas, a essência da reta é a sua fluidez ou a justaposição dos pontos que, de tão justapostos, se tornam infinitesimais a ponto de desaparecerem?
Pensando a reta como uma fluidez infinita abstrai-se de questões pontuais e chega-se a uma síntese, abrindo-se para outras questões que possam ser mais relevantes. Pensando-a como uma sequencia de pontos, teremos que entrar no mérito da representatividade do ponto, de quando um ponto termina e começa outro, se há algo entre um ponto e outro (já que são coisas diferentes) e assim por diante. Tal análise seria dispendiosa e, talvez, inconclusiva. Portanto, há uma reta composta de infinitos pontos e isso é suficiente para que ela seja uma reta e para que possamos representar parte dela no papel de acordo com nossa necessidade.
Agora, suponhamos que essa reta seja o tempo. Nós pensamos o tempo como uma síntese única, eterna e admitida ou como uma sequencia de momentos? O relógio marca uma sequencia de momentos, baseado em segundos, milissegundos, etc., só funciona assim: contando. Já a nossa imaginação é capaz de projetar o tempo para frente e para traz, como lhe aprouver, sem se preocupar com cada momento. Entretanto, parece que estamos sempre em um momento e não soltos no tempo: eu, aqui, agora; eu, aqui, agora. Somos três: eu (como pessoa, alma, consciência, carne, ossos, não importa...), aqui (nesse local, no espaço) e agora (nesse momento, no tempo). Ora, nessa sequencia linear eu mudo permanecendo e permaneço mudando. Permaneço, mudo, mudo, permaneço, permaneço, mudo, mudo, permaneço.
O tempo é essa reta que me mede e me faz historicamente e socialmente passado, presente e futuro. No tempo, eu sou uma síntese, embora não importe aqui como isso ocorre, como um eu-aqui-agora se ligue a outro eu-aqui-agora. Foca-se no contínuo em detrimento do discreto, admite-o sem uma investigação minuciosa. Essa limpeza de terreno é importante para uma maneira sob a qual queremos pensar, ela tem uma finalidade. Não importam os pontos e os intervalos, importa a reta. Não importam os momentos, como permaneço ou mudo, importa eu. A partir da reta admitida podem-se construir triângulos, quadrados e outras figuras geométricas que também vão sendo sustentáculos para novas composições complexas. A partir de um eu não inteligivelmente detalhado quanto a sua composição pode-se ir em direção a algo menos metafísico, a uma práxis. Pode-se chegar a um eu com um outro.
Mas essa é só uma maneira de pensar que pretendemos seguir para se atingir uma finalidade. Do mesmo modo, poderíamos retroceder para o caminho inverso. Sintetizando-se, as discussões se simplificam e aparece uma visão mais ampla. Isso não significa que cada eu-aqui-agora perdeu sua importância ou foi negligenciado, significa apenas que é uma maneira de pensar que tem uma finalidade e que, a partir dessa premissa, voluntariamente se esquiva da análise em prol de uma construção maior. Floresce, então, uma nova perspectiva, não relapsa, mas orientada. Estabelece-se de antemão, de onde se parte e vai se procurando aonde chegar a partir dessa nova orientação. Colhem-se os resultados analisando-os desse novo ponto de vista para se computar perdas e ganhos. Verifica-se se a continuidade fluida se desvencilha de solavancos discretos e se a essência se mantém, nessa nova perspectiva. Porque, por mais que haja uma nova finalidade é a essência que deve prevalecer.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Deus, ou seja, a Natureza[1]*

Já tivemos oportunidade de falar sobre substância, Deus e suas consequências nesse espaço. A filosofia, enquanto atividade do pensamento que investiga criticamente o mundo, jamais se afasta dos conceitos, como o de substância, que foi criado pelo Filósofo[2]. Mas, abandonemos nesse momento o que foi dito, para abordamos a caracterização de Espinosa e sua visão revolucionária. Se já expusemos o assunto de maneira rápida[3], Chaui lança luz ao tema em seu: Política em EspinosaAo tratar da política, há um breve e claro ensejo pela Ética, mas fortemente atrelado à demolição do imaginário teológico  (essa marcação serve para salientar que aqui a investigação de Deus é feita com consequências políticas - há essa reverberação de fundo)Chaui mostra os conceitos que embasam a teoria de Espinosa: o de causa de si, que afirma que essência é existência e o de substância, como o que existe em si e por si[4]. A substância, ao causar-se a si mesma, causa a existência e a essência[5] de todos os seres do universo: é o absoluto. Então, só há uma substância e não há substâncias criadas e nem finitas. Essa substância é Deus: único, eterno e ausente de tempo, porque ser, existir e agir é o mesmo.
A substância é livre, não pela sua escolha voluntária, mas por agir sem constrangimento algum. Causando a si mesma é causa eficiente imanente e todas as outras coisas são seus efeitos imanentes, nos quais ela se exprime. As coisas são modos da substância e são e existem necessariamente como consequência da natureza absolutamente infinita de Deus. A substância infinita e seus atributos, enquanto atividade eficiente imanente que produz o real, é chamada de Natureza Naturante. A totalidade dos modos ou efeitos é a Natureza Naturada, modificações infinitas dos atributos substanciais, donde: “Deus, ou seja, a Natureza”. Sendo efeito imanente da substância e seus atributos, as essências e existências das coisas finitas singulares são determinadas e não se determinam por si mesmas e a ordem necessária da Natureza é o nexo infinito de causas, conforme Espinosa: “Na Natureza nada há de contingente; antes, tudo é determinado pela necessidade da natureza divina a existir e a operar de maneira certa.” [6].
Afastando-se de Leibniz[7] deriva que o mundo não é criado ex nihilo. Não há teologia da Criação (marcação da filosofia contra essa teologia), não há um Deus dotado de intelecto e vontade e criador de um mundo contingente por sua ação voluntária, não há escolha de mundo possível. Espinosa desantropomorfisa e despersonaliza Deus, conforme mostra Chaui, em dois passos: 1) intelecto e vontade não são atributos da substância e 2) não há separação entre poder e potência de Deus. De 1) temos que, diferentemente da tradição teológica que opunha natureza (para toda causa há necessariamente um efeito) e vontade (o que causa contingente e livremente), Espinosa afirma que a essência e a existência das coisas seguem da livre necessidade da potência de Deus. Deus age [como sua causalidade eficiente] e da natureza de Deus seguem-se as coisas [como relação lógica entre princípio e consequência]. De 2) temos que, diferentemente da tradição teológica que distinguia potência (força da essência[8]) e poder (faculdade de usar ou não a potência), Espinosa afirma que a potência e o poder de Deus são o mesmo: não há espaço para ação contingente, há ordens e conexões causais necessárias.
Chaui classifica esse movimento de Espinosa de “ontologia do necessário”: como causa necessária, Deus age segundo a perfeição de sua natureza; como causa livre, Deus age segundo a necessidade de sua natureza. Se atribuía-se a Deus a onipotência de agir inteligentemente ou voluntariamente, para Espinosa trata-se de mostrar “que o intelecto e a vontade não pertencem à natureza de Deus”[9], acusando a teologia (!!) de aproximar tais faculdades humanas com as divinas. Negando a tradição teológico-metafísica da oposição “por necessidade/por liberdade” ou “por natureza/por vontade”, da imagem da liberdade como escolha voluntária, a liberdade para Espinosa é o que segue espontânea e necessariamente da natureza de um ser e explica-se apenas por ela, não ficando à mercê da autoridade ou fatalidade advinda da liberdade submetida à vontade e garantido que nada há de contingente na Natureza e tudo é necessariamente determinado pela essência/potência de Deus. Uma vez retirados do caminho o intelecto e a vontade, a identidade da essência com a potência faz do ser absoluto um puro agir, salientando também a identidade da potência com o poder de Deus e afastando a hipótese de que há um poder de Deus aquém de sua potência[10].
Encaminhando-se para o fim da análise do De Deo, Chaui nos mostra que, ao despersonalizar Deus, pode-se concluir que Deus não é uma pessoa transcendente, juiz e legislador do universo. Tal construção advinha do imaginário finalista que desconhece a causalidade eficiente, então se baseando nos desejos e apetites como fins externos e projetando-os à Natureza[11]. Mais do que isso, dada a complexidade orgânica do ser humano, ele então seria o grande fim buscado por Deus, que então é referido como o Artifex Magnus.  Viria a reboque a ilusão do mundo criado por Deus e da criação dos homens para honra e glória do senhor. Então, de artesão, criador do mundo, viria a imagem de governante do mundo, tacitamente usada pelos teólogos (!!) para se valerem de um poder que viria da Pessoa Transcendente. A desconstrução de Espinosa da personalidade divina desarticula a ação baseada na vontade e a fins exteriores, fazendo com que o campo do político também se liberte da imagem dos governantes com poderes divinos, tão bem expressa pelo jesuíta Mariana: “O príncipe está colocado no cume das sociedades para que apareça como uma espécie de deidade, como herói baixado do céu, superior à natureza dos demais mortais”.[12]



[1] Chaui, Marilena. Política em Espinosa. Ed. Cia. das Letras, São Paulo, 2003. A ontologia do necessário, p. 95 e ss. 
* adendo em 09/04 apontando o caráter não só ontológico como político do texto.
[4] De acordo com Chaui, na tradição, a substância era tratada como o sujeito de inerência de predicados, assunto também abordado por Mansion na nota n. 2.
[5] A essência, conforme Espinosa, que é composta pelos infinitos atributos infinitos em seu gênero.
[6] Ética, parte I, proposição 29.
[7] Chaui vai mais longe remetendo a Duns Scotus o que nosso conhecimento só permitiu imputar a Leibniz.
[8] Força da sua natureza de produzir.
[9] Ética, parte I, proposição 17.
[10] Em outras palavras, salienta Chaui, como se o conjunto do possível fosse maior que o conjunto do necessário, ou seja, pelo seu poder Deus escolheria algo que está em sua potência para passar à existência, ideia própria de Leibniz, trabalhada em: http://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2014/05/mundos-possiveis.html.
[11] Distinção entre causa eficiente e causa final que precisamos elaborar referindo às quatro causas aristotélicas: final, formal, material e eficiente.
[12] Citação de Chaui de um texto apesentado em concurso de livre-docência.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Convergência

Gostaria de modelar uma forma convergente que é capaz de unir o diverso fazendo com que cada parte apresente sinergia com a que lhe é subjacente. Essa convergência não é um simples quebra-cabeças onde precisamos procurar as peças certas, muito embora devamos encontrar um desenho ou um significado no final. A convergência propalada é um ajuntamento desajeitado, mas eficiente, de “proto objetos” com funções específicas e capazes de coexistir de modo que haja um ganho no todo, por mais que pequenas perdas no entorno. Quando dois “proto objetos” se encontram, eles tendem a manter as suas propriedades mais essenciais cedendo um pouco ou permitindo que se formem ranhuras que não passam de um ajuste natural. Isso porque um proto objeto por si só não subsiste.
Convergir é agregar de tal maneira que o resultado desestimule o caminho inverso, embora ele seja possível. Por isso a convergência deve selecionar os “proto objetos” mais adequados para determinado lugar. Sim, não podemos falar de uma convergência que não seja espacial e que busque na geometria uma das fórmulas de cálculo de sua composição, levando em conta disposições aproximadas, porque não há perfeição na convergência. Em nenhum momento deve ser buscada a convergência ideal, mas ela se faz por ajustes em cada proto objeto e nas suas relações. Também não é necessário que um proto objeto mantenha a sua posição inicial, se o que leva a uma reconfiguração for a possibilidade de se extrair mais daquele proto objeto em seu novo contexto e fazer com que ele potencialize a sua vizinhança.
Se a convergência é essa forma que buscamos, ela não passa de uma abstração e um discurso, porém, uma vez que ela se constitui, ela se transforma em um moto contínuo. De fato, a convergência recém-criada acaba por se fazer necessária e, não só não nos livramos dela, como a fomentamos. É nesse ponto que a convergência vale mais que seus “proto objetos” e ela passa a depender de cada um deles. O proto objeto se torna a chave do sucesso da convergência e, sendo unidade básica dela, não se vangloria por isso. Cada proto objeto sabe que sua função é convergir e a convergência sozinha é vazia. Nesse ponto, a convergência está pronta para ser colocada à prova e cada proto objeto fará o que for possível para mantê-la e se manter.


domingo, 29 de janeiro de 2017

Só uma resposta

Cotidianamente precisamos dar respostas, mas qual é a resposta certa? Não sabemos, mas temos que ter uma resposta. Se há pergunta, há resposta, deve haver. Há vários tipos de perguntas, algumas esperando uma resposta, algumas somente perguntando. Mas, se perguntar é válido, é válido responder? Se uma pergunta exige uma resposta, qual é o valor da resposta? A resposta é uma convicção ou somente uma resposta?
Uma convicção é uma verdade assumida e convencida ao passo que uma resposta é uma busca pela convicção. Se não for pelo diálogo, nunca haverá convicção e, portanto, a resposta é sempre uma construção. Não podemos nos iludir com respostas que parecem convicções. A verdade, em se tratando de uma formulação humana, é sempre relativa.
Parece haver uma ansiedade por respostas convincentes mas uma resposta convincente não estabelece uma verdade. Uma resposta convincente dura o tempo em que não se verifica outra resposta mais convincente, ao menos outra resposta. Transferir o peso da pergunta para a resposta é no mínimo antitético. Por que não respondes, cara pálida?
Atualmente rege a lei da resposta. Para uma pergunta deve haver uma resposta, convicta. Mentira!! Uma convicção se dissolve facilmente, uma resposta é uma procura que tenta se estabelecer. Somos curiosos e queremos garantias, mas não há temos. Não se pode condenar uma resposta, mas fazer com que ela se transforme em nova pergunta que, refletida, siga o caminho de uma convicção que é sempre provisória.

domingo, 22 de janeiro de 2017

Um sentimento

É tão difícil acreditar que somos corpos, mas o deslocamento livre e inconteste nos faz menos racionais e o ir e vir surpreende e desarma. Tudo está em perpétuo fluxo porque o nosso pouco tempo no mundo nos faz acreditar no infinito. Mas não é nesses termos que nos devemos medir; medimo-nos pelas aberturas que nos são impostas por nós mesmos. De repente, algo que estava aqui já não está e, se o visávamos, agora tal intencionalidade esvaiu-se e nada há de surpreendente, apenas nossa estrutura biofísica se afeta de maneira diversa. A nossa pele, que é muito sensória, e demais órgãos afetivos sobrepõem-se a uma consciência extravagante. Ela, sim, move-se sem se mover, mas movendo um corpo que se move passionalmente. Subjaz um estado de constante interferência que qualquer inferência, se estatisticamente acurada, não previne precauções.
Mas, qual a estranheza? Ninguém nos enganou e nada nos prometeram, simplesmente o vento soprou e espalhou o que estava assentado. O vento não é um, é múltiplo e dinâmico. Sentimos, em nossa disposição física, sensações térmicas distintas que paralelamente se repelem e se associam mais parecendo um emaranhado de possibilidades decompostas. Um dedo é muito mais do que um todo. Um dedo fala por si, toca por si, reverbera por si. Um corpo com muitos dedos que sentem é um corpo precário quando se pensa um corpo articulado. O que mais se articula é o pedaço mínimo que, isolado, irrompe em um efeito não linear. Tudo isso é muito específico e não científico para que as variáveis possam ser controladas.
Foi-se o momento em que o que tinha de ser seria, foi-se o momento em que sabíamos para onde iríamos. Não há escolha já que todas as moléculas tem um resto de autonomia. O microscópio não amplia porque tudo está lá, na mais perfeita desorganização, e cada combinação não passa de um mero acaso. Não importam grandes predições, embora sejam belas. Cada movimento deixa um resquício inominado de probabilidades que não se decantam e se transformam em algo que jamais ele poderia supor. Esse pedaço de verdade constitui a sua mais perfeita identidade que se subsumi ao que estaria posto de antemão e que se responsabilizaria pela guia da direção que não se estipula.
Há todo o sentido em cada lampejo da mais pura variação e, por isso, um corpo não se nega. Uma razão só é válida na medida em que se descarta a carne que sangra. É daí que brota a ansiedade que transforma até a besta em exímia enxadrista. Não se pode aceitar a menor alegação de que haveria de se supor mal traçados planos. Em nenhum momento falou-se qual era, em definitivo, o ponto que deveria ser valorizado no caso de serem expostas as incongruências que só fazem concluir que cada minúscula partícula é igual entre si e, por isso, concorrente na corrida que é vital para algum tipo de encadeamento. Só nos resta sentir.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Atitude filosófica*


A vida é uma ficção? A arte imita a vida ou a vida imita a arte? Trocando em miúdos, a vida é uma criação ou uma geração espontânea? Digo, se a vida não é uma ficção, a vida se dá ao acaso, meramente. Sendo a vida ficção, há um autor que pode ser você, eu ou Deus. Portanto, devemos ter muita atenção na interpretação das frases feitas e palavras de efeito. Em todos esses casos, se fomos inventados ou se somos resultado de uma linha evolutiva muito mal fadada, porque contra evolutiva, o fato é que criamos construindo e destruindo. A criação literária é um resultado que, como especifica Sartre no seu “O que é a literatura”, só se faz com outro. Por exemplo, eu aqui escrevendo este texto, se ninguém o lê, ele não se completa. Há um pacto aí. Podemos estender essa tese para a arte em geral e, podemos também, afirmar que por detrás de toda obra de arte há um recado, uma ideologia que “pagamos para ver”.
Por mais abstrata que possa parecer uma obra de arte, por mais incompreensível que um filme possa ser, há uma intenção, uma projeção. Algo se lança e alguém o agarra, ou ninguém. Na verdade, então, não se trata de saber se a vida imita a arte ou se a arte imita a vida, mas qual o significado dessa frase, dessa criação. Confundir vida e arte, muito mais do que talvez partir de uma ordem de precedência entre elas, visa estabelecer que: há vida, há arte e há imitação e que, portanto, nada é garantido. Então, tal frase com um fundo moral inicial se transforma em questão existencial: noves fora, criamos. [imitamos, vivemos...]
A atitude filosófica também nada garante, embora permita ir mais a fundo, seja moralmente ou epistemologicamente. Daí se extrai um “sentido de vida” que pode tanto encantar quanto desiludir. Uma breve incursão em tal atitude, que de tão breve não passa de excursão, mostra principalmente que há muito mais do que os nossos olhos podem ver, seja a arte mostrando que há muito mais vida do que a mera vida que temos, ou a vida mostrando que a arte é a nossa própria vida ilusória. De todo modo, uma vez rompendo a barreira senso comum-filosofia, fica difícil sobreviver em paz com nosso travesseiro.



* CHAUI, M. Iniciação à filosofia: ensino médio, volume único. 2. ed. São Paulo: Ática, 2013 – pg 17. Atividades: 1. Você assistiu ao primeiro filme da série Matrix? Se sim, responda: que paralelos podemos estabelecer entre a personagem Neo e o filósofo Sócrates? 2. Por que Sócrates é considerado o “patrono da filosofia”? 3. O que Platão quis representar no Mito da Caverna? Faça uma relação entre o mito e o filme Matrix. 4. Explique o que são as nossas crenças costumeiras. Dê outros exemplos de crenças que reproduzimos no cotidiano. 5. De acordo com o que foi estudado no capítulo, em que momento passamos da atitude costumeira à atitude filosófica?

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Empírico e Racional

Existem várias maneiras de “nos virarmos” na vida, mas o discurso moderno, que não é o contemporâneo, basicamente dividiu nossas possibilidades em empírica e racional, embora de certa forma elas muito se correlacionem. Vis-à-vis, ambas não apresentam garantia de sucesso e mais se adequam ao entendimento de mundo de cada um, porém há que se prestar atenção ao rumo que estamos seguindo para verificar se há correções de rota, já que tudo nos leva há uma práxis, enfim.
O empirismo nada mais é do que uma prática particular em que se leva em conta o acúmulo de experiências baseado, por um lado, em observações cotidianas, mesmo que sistematizadas como acontece na ciência e, por outro lado, na troca de experiências que se dão por um discurso casual. Se o ponto de partida é o particular, isso não impede que se chegue próximo de um consenso e mesmo que tal se universalize, atentando para que, aí, todos concluam o mesmo [ou tenham a mesma experiência].
O racionalismo se guia pelas regras formais e lógicas do entendimento e da razão, orientando-se, grosso modo, pela idealização matemática [ou filosófica] do mundo. Aqui se parte de definições, premissas, axiomas, preposições e, consequentemente, corolários, e se chega a uma via demonstrativa. Se fundada em princípios bem estabelecidos, a regra da razão não se contradiz e garante conhecimento certo e seguro. Como se admite ser a razão igual para todos, ela é o particular e o universal, ao mesmo tempo.
Então, nos guiamos: racional e/ou empiricamente. O empirismo depende de circunstâncias, mas a observação acurada e repetida e as variáveis condicionantes nos orienta na práxis. O racionalismo se aplica às circunstâncias, seja pela prova ou contraprova... Não é fácil "se virar" na vida e os recursos devem ser utilizados, sejam eles racionais ou empíricos. Há momentos em que o empírico vence, em outros o racional convence, mas aquele que vive e se insere na práxis contemporânea deveria se utilizar de ambos, e isso não é antiético.

sábado, 7 de janeiro de 2017

Entre o positivo e o negativo

O atual mundo conectado exige propaganda: não somente faça, mas fale que faz ou, quem sabe, só fale e não faça – às vezes cola. O fato é que se torna difícil ficar indiferente às mídias sociais. É preciso “se mostrar”, é preciso produzir e o ser humano é pura produção, sempre! Não poderia ser diferente porque há sangue correndo nas veias e impulsos elétricos nervosos em fluxo contínuo enquanto o corpo vive. Por mais que sejamos uma-pessoa-calada-e-sozinha-no-mundo somos um algo que reflete e que aparece para os outros, provocando reação, mesmo que indiferença[1]. Além disso, precisaríamos investigar o caso de termos conceituado tão fortemente a pura produção, qual a sua mais profunda finalidade?
O “se mostrar” nas redes sociais, sejam elas audiovisuais ou só visuais, textuais, pessoais ou profissionais, é um se mostrar que visa uma positividade. Ora, temos que servir para alguma coisa, certo? A positividade aclamada é a chave do sucesso, a garantia de que a via positiva certamente levará a um desenvolvimento. Ser positivo é ser ativo e somar. Ser positivo é continuar. Ser positivo é produzir. Há que se verificar aonde a positividade se expressa e abraçar-se a ela, para que ela nos conduza na sua rota inesgotável. A positividade gera positividade e somando-se as positividades entramos em um círculo virtuoso. Podemos e até devemos seguir, não há problemas, mas há outro lado: a negatividade.
O ser humano é pura carência e desconforto, mas tenta se enganar. Por mais metas que nos coloquemos sempre haverá dúvidas. A pura produção, se de per si varonil, tem a sua dialética, como, de mais a mais, tudo na natureza apresenta contrariedade. Há momentos de angústia e travamento, há inquietações, mas a positividade emerge das profundezas e nos levanta. Mas a positividade não ensina porque repete o que está por aí, não mostra a “outra face”. É nos tombos que nos machucamos e lambemos as nossas feridas. É nesse encontro com nós mesmos que nos humanizamos e nos sentimos seres psicossomáticos e quase uma-pessoa-calada-e-sozinha-no-mundo. Essa negatividade não é uma limitação ou um retrocesso, ela é a nossa marca. E, dialeticamente, dela surge outra positividade. Então, pergunto: pode “se mostrar” a negatividade? Podemos nos humanizar ou seremos o super-homem que não falha. Ah, como seria bom dizer para todo mundo: “cara, como é difícil encarar uma vida dedicada ao trabalho, que é prenhe e preenche, mas que nos domina e assola?”. Não nego o trabalho porque precisamos dos objetos que produzimos, embora seria bem interessante todo mundo andando nu por aí, mas, às vezes, desconfio da pura produção baseada na positividade.



[1] A indiferença é uma reação passiva externa, mas muito ativa internamente porque fica marcada na nossa reflexão.