Já
tivemos oportunidade de falar sobre substância, Deus e suas consequências nesse
espaço. A filosofia, enquanto atividade do pensamento que investiga
criticamente o mundo, jamais se afasta dos conceitos, como o de substância, que
foi criado pelo Filósofo[2].
Mas, abandonemos nesse momento o que foi dito, para abordamos a caracterização
de Espinosa e sua visão revolucionária. Se já expusemos o assunto de maneira
rápida[3],
Chaui lança luz ao tema em seu: Política
em Espinosa. Ao tratar da política, há um breve e claro ensejo pela Ética,
mas fortemente atrelado à demolição do imaginário teológico (essa marcação serve para salientar que aqui a investigação de Deus é feita com consequências políticas - há essa reverberação de fundo). Chaui mostra os
conceitos que embasam a teoria de Espinosa: o de causa de si, que afirma que essência é existência e o de substância, como o que existe em si e
por si[4]. A
substância, ao causar-se a si mesma, causa a existência e a essência[5] de
todos os seres do universo: é o absoluto. Então, só há uma substância e não há
substâncias criadas e nem finitas. Essa substância é Deus: único, eterno e
ausente de tempo, porque ser, existir e agir é o mesmo.
A
substância é livre, não pela sua escolha voluntária, mas por agir sem
constrangimento algum. Causando a si mesma é causa eficiente imanente e todas
as outras coisas são seus efeitos imanentes, nos quais ela se exprime. As
coisas são modos da substância e são
e existem necessariamente como consequência da natureza absolutamente infinita
de Deus. A substância infinita e seus atributos, enquanto atividade eficiente
imanente que produz o real, é chamada de Natureza
Naturante. A totalidade dos modos ou efeitos é a Natureza Naturada, modificações infinitas dos atributos
substanciais, donde: “Deus, ou seja, a Natureza”. Sendo efeito imanente da
substância e seus atributos, as essências e existências das coisas finitas
singulares são determinadas e não se determinam por si mesmas e a ordem necessária da Natureza é o nexo
infinito de causas, conforme Espinosa: “Na Natureza nada há de contingente;
antes, tudo é determinado pela
necessidade da natureza divina a existir e a operar de maneira certa.” [6].
Afastando-se
de Leibniz[7] deriva
que o mundo não é criado ex nihilo. Não
há teologia da Criação (marcação da filosofia contra essa teologia), não há um Deus dotado de intelecto e vontade e criador
de um mundo contingente por sua ação voluntária, não há escolha de mundo
possível. Espinosa desantropomorfisa e despersonaliza Deus, conforme mostra
Chaui, em dois passos: 1) intelecto e vontade não são atributos da substância e
2) não há separação entre poder e potência de Deus. De 1) temos que, diferentemente
da tradição teológica que opunha natureza (para toda causa há necessariamente
um efeito) e vontade (o que causa contingente e livremente), Espinosa afirma
que a essência e a existência das coisas seguem da livre necessidade da potência de Deus. Deus age [como sua
causalidade eficiente] e da natureza de Deus seguem-se as coisas [como relação
lógica entre princípio e consequência]. De 2) temos que, diferentemente da tradição
teológica que distinguia potência (força da essência[8]) e
poder (faculdade de usar ou não a potência), Espinosa afirma que a potência e o
poder de Deus são o mesmo: não há espaço para ação contingente, há ordens e
conexões causais necessárias.
Chaui
classifica esse movimento de Espinosa de “ontologia do necessário”: como causa
necessária, Deus age segundo a perfeição
de sua natureza; como causa livre, Deus age segundo a necessidade de sua natureza. Se atribuía-se a Deus a onipotência de
agir inteligentemente ou voluntariamente, para Espinosa trata-se de mostrar
“que o intelecto e a vontade não pertencem à natureza de Deus”[9],
acusando a teologia (!!) de aproximar tais faculdades humanas com as divinas.
Negando a tradição teológico-metafísica da oposição “por necessidade/por
liberdade” ou “por natureza/por vontade”, da imagem da liberdade como escolha
voluntária, a liberdade para Espinosa é o que segue espontânea e
necessariamente da natureza de um ser e explica-se apenas por ela, não ficando
à mercê da autoridade ou fatalidade advinda da liberdade submetida à vontade e
garantido que nada há de contingente na Natureza e tudo é necessariamente
determinado pela essência/potência de Deus. Uma vez retirados do caminho o intelecto e a vontade, a identidade da essência com a potência faz do ser
absoluto um puro agir, salientando também a identidade da potência com o poder
de Deus e afastando a hipótese de que há um poder de Deus aquém de sua potência[10].
Encaminhando-se
para o fim da análise do De Deo,
Chaui nos mostra que, ao despersonalizar Deus, pode-se concluir que Deus não é
uma pessoa transcendente, juiz e legislador do universo. Tal construção advinha
do imaginário finalista que desconhece a causalidade eficiente, então se
baseando nos desejos e apetites como fins externos e projetando-os à Natureza[11]. Mais
do que isso, dada a complexidade orgânica do ser humano, ele então seria o
grande fim buscado por Deus, que então é referido como o Artifex Magnus. Viria a reboque
a ilusão do mundo criado por Deus e da criação dos homens para honra e glória
do senhor. Então, de artesão, criador do mundo, viria a imagem de governante do
mundo, tacitamente usada pelos teólogos (!!) para se valerem de um poder que viria
da Pessoa Transcendente. A desconstrução de Espinosa da personalidade divina
desarticula a ação baseada na vontade e a fins exteriores, fazendo com que o
campo do político também se liberte da imagem dos governantes com poderes
divinos, tão bem expressa pelo jesuíta Mariana: “O príncipe está colocado no
cume das sociedades para que apareça como uma espécie de deidade, como herói baixado
do céu, superior à natureza dos demais mortais”.[12]
[1] Chaui, Marilena. Política em Espinosa. Ed. Cia. das
Letras, São Paulo, 2003. A ontologia do
necessário, p. 95 e ss.
* adendo em 09/04 apontando o caráter não só ontológico como político do texto.
* adendo em 09/04 apontando o caráter não só ontológico como político do texto.
[2] Conforme Mansion, em: http://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2016/03/a-primeira-doutrina-da-substancia.html.
[3] Em: Da
noção de utilidade humana.
[4] De acordo com Chaui, na tradição,
a substância era tratada como o sujeito de inerência de predicados, assunto
também abordado por Mansion na nota n. 2.
[5] A essência, conforme Espinosa,
que é composta pelos infinitos atributos infinitos em seu gênero.
[6] Ética, parte I, proposição 29.
[7] Chaui vai mais longe remetendo a
Duns Scotus o que nosso conhecimento só permitiu imputar a Leibniz.
[8] Força da sua natureza de
produzir.
[9] Ética, parte I, proposição 17.
[10] Em outras palavras, salienta Chaui, como se o conjunto do possível fosse maior que o conjunto do necessário,
ou seja, pelo seu poder Deus escolheria algo que está em sua potência para passar
à existência, ideia própria de Leibniz, trabalhada em: http://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2014/05/mundos-possiveis.html.
[11] Distinção entre causa eficiente
e causa final que precisamos elaborar referindo às quatro causas aristotélicas:
final, formal, material e eficiente.
[12] Citação de Chaui de um texto apesentado
em concurso de livre-docência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário