Uma introdução aos termos indexicais[i]
Eu, aqui, agora, ele, ontem: termos
indexicais geralmente são termos singulares que nos ajudam a identificar particulares
e, assim, fazem com que a linguagem toque a realidade. Eles
possuem duas espécies de significado: por um lado há um significado linguístico
dado por sua função lexical (“eu” é um pronome pessoal, todos sabemos) e
por outro há o sentido, quando se fala do conteúdo semântico (eu quem,
cara pálida?).
Função Lexical.
É o sentido literal do termo e não varia com o contexto do proferimento,
que pode envolver o falante, um auditório, um objeto referido, um local e
tempo. O contexto do proferimento se divide no contexto de ocorrência (quando
sentenciado) e no contexto de avaliação, quando se dá o fato ou evento e se
pode determinar seu valor de verdade (“Amanhã vai chover” – dito hoje e
verificado amanhã).
Há regras das funções lexicais chamadas de
originárias (ou standard – conforme a classificação de Cláudio Costa) que são
genéticas, isto é, são regras que nos são apresentadas desde logo quando começamos
o processo de aprendizado da linguagem. E podemos investigar a semântica dos
termos indexicais por meio de como eles são usados em situações dialógicas na
linguagem natural. Costa propõe regras A:
A1.
Demonstrativo este: objeto próximo do falante apontado por um gesto de
ostensão.
A2. Demonstrativo aquele: objeto distante
do falante apontado por um gesto de ostensão.
A3. Pronome pessoal eu: quem profere.
“Aplicamos o pronome pessoal ‘eu’ para indicar quem o está proferindo no
momento em que o profere”.
A4. Pronome pessoal nós: falantes e
ouvintes.
A5. Pronomes pessoais tu, você, ela:
auditório.
A6. Advérbios aqui e agora: lugar,
momento de lugar.
A7. Advérbios de tempo hoje, ontem:
dia do proferimento, dia anterior. Etc.
Conteúdo semântico.
A função lexical standard é invariante e se aplica a contextos ilimitados, já
que “eu” sempre se refere a pessoa que o proferir no momento que profere[ii]. Entretanto ela é
insuficiente quando há significação, por exemplo, “Eu estou com dor de cabeça”
é um proferimento que pode ser verdadeiro ou falso quando dito por pessoas
diferentes. O conteúdo semântico se liga a uma situação real de fala e muda
conforme o objeto ou contexto de proferimento.
O proferimento “Eu estou aqui” permite a identificação
física, a pessoa em carne e osso que se auto refere, mas o “Eu estou aqui” pode
ter mais riqueza, uma intencionalidade que vai além da representação
espaciotemporal. O “Eu estou aqui”, ouvido por um doente que recebe a visita de
um ente querido, pode identificar elementos submersos na referência e que são
compartilhados entre falante e ouvinte e a história compartilhada por eles.
Sentido fregeano.
Não obstante o uso standard do “eu”, de autorreferência, já que poderiam haver
usos impessoais, Costa sublinha que há mais do que o conteúdo semântico ser o
próprio objeto “eu”, como sugerido pela teoria da referência direta - é preciso
dar um sentido a esse objeto. De acordo com Costa, é um erro pensar que o caráter
proposto por Kaplan ou o papel proposto por Perry, que seriam o sentido lexical,
pudessem se igualar ao sentido fregeano (Sinn), já que o sentido lexical
permanece o mesmo, sabendo que o Sinn é múltiplo, são os modos de apresentação da
referência (“pegue aquele comprimido” – o maior, “pegue aquele
comprimido” – o azul). Para os indexicais então, Costa sugere um retorno ao Sinn
para dar conta do conteúdo semântico, como o valor cognitivo de cada modo de apresentação
e não da própria referência e, aí, por uma regra de identificação semântica-cognitiva.
A pessoa do eu[iii].
Costa argumenta que, antes de abordarmos pronomes pessoais, precisamos entender
o que é uma pessoa qualquer e depois situá-la em um contexto, adicionar o sexo,
etc. Parte-se do eu associado a uma regra de identificação e depois se aplica
em um contexto espaciotemporal. O objeto real de referência do pronome pessoal “eu”
é uma certa pessoa composta de uma mente humana e um corpo biofísico conforme
proposto por Strawson. Mais do que o eu humiano, fluxo de sensações, trata-se
de um eu empírico, espaciotemporal e psicológico.
O “eu” é nossa auto imagem possui ideias,
memórias e convicções, constituição egóica psicológica acessível por partes,
mas transcendental se considerado no todo. Se não é uma totalidade já que não pode
ser observado e observador ao mesmo tempo, ele pode formar uma ideia de si
mesmo no decorrer do tempo. Citando Costa:
“Quando penso em
meu próprio eu, porém, é naquilo que sou e no que poderíamos chamar uma constituição
egóica subjetiva pertencente à minha pessoa e que sou capaz de experienciar diretamente
como um todo, mas do qual formo uma ideia com base em estados mentais que se
reiteram, que são mais ou menos interrelacionados, que por vezes vêm à mente e
aos quais posso me referir”. (COSTA, 2022, p. 32)
Como não temos acesso direto cognitivo, construímos
uma teoria indiretamente a partir do fluxo humiano, construção ideativa que
supomos corresponder ao real.
A instanciação da regra lexical.[iv] Costa ressalta que A3
corresponde a uma constituição egóica subjetiva, mas não pessoa particular e
encerra o significado linguístico da palavra “eu”. Já o conteúdo semântico é
dado por A3s, que é a instanciação de A3, assim enunciado:
“O pronome pessoal
‘eu’ tem a função de indicar uma pessoa formada pela constituição egóica X do
indivíduo físico-biológico Y que o está proferindo em um momento T em um lugar
L e em circunstâncias C de nosso mundo real, tal como ele é capaz de ser
pensado pelo falante e pelo auditório na interação comunicativa”.
Assim, preenchendo as variáveis temos a
pessoa particular, mas que não é a referência direta ao eu pessoal. Trata-se do
eu pensável, constituição espaciotemporalmente localizável conhecida por falante
e auditório, conteúdo semântico cognitivo pensado em A3s que espelha a referência
enquanto tal, eu empírico no contexto concreto.
Distinção tríade.
Se A3s é o ato de referência indexical, existe A3r que é da pessoa real
correspondente, quando as variáveis são preenchidas por elementos do mundo
objetivo; A3s: pensado, A3r: fato no mundo. Há aqui um representacionismo
defendido por Costa com base em evidências de Bold fMRI, pois é o conteúdo semântico
cognitivo que permite o compartilhamento dos “sense data”, já que se pode
comunicar sensação de fome não tem fome em si. A Distinção triádica fica assim:
SIGNIFICADO LEXICAL DO INDEXICAL
V
CONTEÚDO SEMÂNTICO COGNITIVO DO INDEXICAL
V
REFERÊNCIA DO INDEXICAL
A3s é a maneira fregeana, o modo de apresentação
do objeto (interno, por pensamentos) e A3r o objeto no mundo, sua constituição egóica.
Costa faz o mesmo procedimento com relação ao demonstrativo “este” (A1), tomando
por base a ontologia de tropos que não cabe retomar aqui.[v] De qualquer forma, entre a
função léxica de A1 e o mundo (A1r) há o conteúdo semântico cognitivo A1s do
objeto pensado que corresponde a A1r. Na verdade, há intermediários A1s que seriam
capazes de explicar imagens alucinadas que não teriam correspondentes no mundo.
Conforme Costa, “A satisfação de A1r
costuma conduzir causalmente à satisfação de A1s, que por sua vez nos permite a
cognição oferecer-nos um conteúdo cognitivo que é, no final das contas, o modo
como a referência nos é apresentada” (p. 38). Mantém-se o espelhamento dos fatos
empíricos (o sol nascer) em estados fenomenais (círculo luminoso no olho),
contudo baseado em critérios de realidade externa (CRE), que são: 1.) independência
da vontade, 2.) máxima intensidade sensorial, 3.) possível intersubjetividade,
4.) seguimento de leis naturais e 5.) adequações ao contexto esperado.
Investigação dos indexicais.
Concluiremos essa introdução apontando para o que se seguirá no capítulo 2.
Definiram-se tanto regras para A1s (semântico-cognitivas – tropos internos) quanto
para A1r (aplicação nas referências – tropos externos). O mesmo pode ser feito
de A1 a A7, embora a passagem à referência requeira CRE e consenso interpessoal.
Mas Costa investigará na continuidade as concepções sobre a natureza do
conteúdo semântico do indexical, tanto pela referência direta (miliana):
abordagem de Kaplan que iguala conteúdo e referência e cognitivista (neofregeana):
conteúdo é cognitivo, modo de apresentação fregeano (Michael Dummett, Tugendhat)
que aplica regra criterial identificadora do objeto particular. Notadamente,
são ideias passíveis de uma leitura ontológica em termos de tropos.
[i] Fichamento do capítulo 2.
Termos Indexicais. COSTA, C. Cognitivismo Semântico: Filosofia Da
Linguagem Sob Nova Chave. Curitiba: Editora Appris, 2022.
[ii] Referência.
[iii] Aqui Costa traz uma análise ontológica
e também evoca a metafísica descritiva de Strawson.
[iv] Uma vez mostrada a regra léxica e
definido o “eu”, já se pode instanciá-lo pela linguagem.
[v] Ontologia de tropos é proposta de
Donald Williams e permite localizar propriedades espaciotemporalmente,
superando as ideias platônicas. Então, temos propriedades-t mentais e físicas aliadas
à localização para podermos falar de A1 em termos mentais-representacionais, em
termos de A1s.