sábado, 5 de agosto de 2023

Teorias semânticas do uso

Uma introdução ao significado como uso da linguagem mediante regras ou relações de inferência [i]

Dado que numa teoria proposicional do significado as frases são entidades abstratas e inertes, surgem teorias do uso do significado e, advogando a esse respeito Wittgenstein (o segundo), que aproximou frases de peças em um jogo e que são usadas em práticas sociais convencionais e regidas por regras. O significado, para uma teoria do uso, é o emprego correto de expressões. Por outro lado, Wilfrid Sellars aproxima o ato de inferir de uma expectativa social, se contrapondo ao fato de exprimir uma proposição. Não obstante, as teorias do uso enfrentam obstáculos, como é o caso de explicar como o uso da linguagem difere do jogo de xadrez, por exemplo, já que esse não gera significado, ou como uma frase significa que tal e tal.

Há conhecida anedota de que Russell examina as frases no quadro de negro como objetos em si, o que foi combatido por Wittgenstein e Austin que viam a linguagem como prática social. Contudo, se as proposições são abstrações do que é dito no mundo real, não se pode negar que há abstrações, por exemplo, quando abstraímos um som sonoro ou a própria gramaticalidade. Ainda haveria a perspectiva de Strawson de que proferir é produzir.

O uso num sentido aproximadamente wittgensteiniano

Do ponto de vista de Wittgenstein, é por algo familiar que entramos no misterioso mundo do significado. A apreensão do significado se dá pelo receptor e a compreensão pelo ensino e aprendizagem da linguagem no comportamento conversacional de fazer jogadas, como quando as crianças aprendem rapidamente o que fazer perante certos ruídos[ii]. Embora ele não negue que haja relações referenciais, para ele a atividade linguística se dá por meio de regras similares as de jogar jogos onde as expressões (olá, obrigado) são como as peças (cavalo, torre). Há diversos jogos de linguagem (encontrar alguém e saudar, linguagem entre marido e mulher ou a aritmética...) nos quais se utilizam dispositivos convencionais e papéis funcionais usados em determinadas ocasiões e contextos.

O jogo de linguagem é ilustrado pela famosa analogia da linguagem primitiva entre servente e pedreiro, onde o que conta é a função (fazer algo) e não a relação de referência. Mas essa ilustração traz a dificuldade com frases longas e complexas que necessitariam de um mecanismo adicional como a verificação, que foi proposta pelos positivistas lógicos. Outro ponto difícil para a abordagem de Wittgenstein é o da consequência lógica, algo que a teoria inferencial do significado de Sellars lidaria ao tomar o ato de inferir como ato social e regras de entrada e saída baseadas na prática social e não em verdades lógicas.

Objeções e algumas respostas

Isso posto, nota-se que, se a teoria do uso evita as principais objeções das teorias já vistas (referencial, ideacional e proposicional), além de ser naturalista por trazer o uso da língua no mundo real, obviamente também enfrenta objeções. Um primeiro ponto é o de explicar a diferença de significado de uma expressão na Terra ou na Terra Gêmea, com a resposta de que se tratam de jogos diferentes já que as regras são em função de coisas. Um segundo ponto é explicar a regra de uso para nomes, o que conduz ao descritivismo. Depois, trata-se de explicar como podemos compreender frases longas em uma primeira vez sem ter havido convenção anterior. E aqui recorre-se ao princípio de Frege de compreender novas frases composicionalmente pela combinação de palavras que vão além da norma.

Seguindo com as objeções, Lycan cita o caso de saber usar a expressão sem a compreender, qual seja, uso perfeito, mas significado nulo. A quinta objeção coloca que as atividades regidas por regras não têm o significado da linguagem, mas o que os distingue? Aqui Lycan faz uma discussão com o pano de fundo de que em um jogo as regras estão circunscritas a ele, mas na linguagem há regras mais “ricas” e que permitem a predicação. Por outro lado, se é demasiadamente desacreditada a regra do jogo (menos rica), seu convencionalismo se torna insuficiente de dar conta da linguagem que trataria de coisas do mundo[iii], o que levaria a abrir uma porta para o referencialismo.

Fechando as objeções, a última observa que jogos, apesar de significativos, não permitem asserções, diferentemente da linguagem, isto é, não se consegue “dizer que P”, os jogadores não dizem ou pedem que algo, coisa essencial da linguagem[iv].

Inferencialismo

Robert Brandom, comentador de Sellars, traz uma concepção de uso normativa que foge de algumas objeções das ideias originais de Wittgenstein e que releva o papel da referência. Para ele, de acordo com Lycan, há um compromisso associado com a elocução pública da frase, feita com base em razões, regras e um histórico dos acontecimentos.

Sobre a distinção entre os jogos e a linguagem, a proposta de Brandom mostra que as jogadas do xadrez, por exemplo, não são inferências, ao passo que as elocuções linguísticas, alicerçadas em uma razão probatória, são inferenciais.  Ele também pode escapar da terceira objeção ao admitir um tipo fraco de composicionalidade ao tratar de frases longas.

Por fim, por ser demais epistemológica ao usar noções como justificação, defesa, etc., tende-se a se aproximar a teoria inferencialista mais do verificacionismo do que de Wittgenstein, mas ainda nos restará analisar a teoria de Austin de ato ilocutório que se baseia na teoria do uso. 



[i] Fichamento de Filosofia da linguagem: uma introdução contemporânea. LYCAN, William. Tradução Desiderio Murcho. Portugal: Edições 70, 2022. Capítulo 6: Teorias do uso.

[ii] Notadamente chorar frente à dor.

[iii] Ou conforme citação a Friedrich Waismann, os genuínos jogos de linguagem estariam integrados na vida.

[iv] Função-que ainda carente de aprofundamento. 

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