Mostra que não há lugar para ideias abstratas no discurso mental[i]
Filosofia corpuscular.
Como idealista[ii],
Berkeley acreditava que tudo o que existe é mental e se opunha à “filosofia
corpuscular” oficializada por Locke, na época, e oriunda de Boyle, para quem o
mundo é feito de átomos e moléculas. Para essa filosofia, a matéria
é feita de corpúsculos muito pequenos e os corpos possuem qualidade primárias,
mas não as qualidades secundárias que são produzidas em nós pelas sensações.
O mote de Berkeley contra o ateísmo.
Diante desse cenário, Berkeley procurou negar essa distinção e, por consequência,
negar que haja matéria inerte, sem cor e sem alma. Negando a matéria, negava a
substância e suas teorias e negava a teoria realista da percepção de Locke, ou
seja, o ateísmo que seria combatido por seu idealismo.
O conceito de ideia.
Berkeley estava atento aos avanços dos conhecimentos científicos vistos por ele
de maneira perversa, mas Hacking irá se ater à relação de sua filosofia
idealista com a linguagem, especificamente como a mente pode conceber ideias
abstratas. Berkeley aceitava o conceito de ideia que Hacking expõe assim[iii]: 1.) são as ideias que
medeiam entre o ego e o mundo; 2.) elas são “vistas” pela percepção interna; 3.)
as palavras significam ideias por meio de uma relação causal.
Alguma ideia.
Isso posto, Hacking toma como exemplo a palavra chuva. Ela pode ser usada para expressarmos
vários tipos de chuva, que podem ser diferentes em vários lugares e isso não
significa que se trate de uma e mesma ideia de chuva. Hacking enfatiza que, pela
teoria da correspondência, deveria haver várias ideias de chuva que correspondem
as que caem. Ele comenta que, para Hobbes, são ideias diferentes, mas ideias de
chuva, embora não a ideia universal de chuva e sim alguma ideia de
chuva.
A ideia abstrata dos geômetras.
A isso Hacking contrapõe o descrever ao raciocinar. Ao descrevermos o mundo, não tratamos de termos universais mas, ao raciocinar, por exemplo, sobre triângulos, raciocinamos não sobre alguma ideia de triângulo, mas sobre o que é universal neles[iv]. Como não dá para examinar
cada triângulo individual, raciocinamos sobre o que é comum a eles e esse algo
é o objeto de nosso escrutínio mental. Empiricamente há várias elocuções de
chuva, mas a priori necessita-se de algo comum; uma ideia abstrata de triângulo
usada pelos geômetras; aqueles que acreditam em um ego com ideias precisam de uma
ideia para olhar e raciocinar sobre triângulos.
A ideia abstrata na teoria das ideias.
Ora, se as palavras significam ideias, a palavra triângulo significa a ideia
abstrata “triângulo” e o mesmo para chuva e, bingo! Platão! (O idealista
original). Eis o problema: pela doutrina das ideias do século XVII: 1.) ideias
medeiam, 2.) ideias são percebidas, 3.) palavras significam ideias. Até aqui
tudo certo para Berkeley. Mas o geômetra acrescenta 4.) existem ideias
abstratas que são objetos de “visão mental”. Berkeley não só não concorda com
4.) como condena.
Problema dos universais.
A questão, explica Hacking, passa pelo “problema dos universais”, nesse caso,
como é possível que um termo geral tenha significado. Pode ser da abstração,
mas Wittgenstein tratou como semelhanças de família, i.e., agrupamento de
propriedades semelhantes. Decorre que a doutrina das ideias do século XVII não
implica nada sobre o significado dos termos gerais, o ponto fulcral é “a teoria
da prova geométrica como uma visão mental que requer um objeto” (p. 45). Mas,
para isso, Berkeley argumenta que não é necessária uma ideia abstrata para
raciocinar, já que podemos usar uma ideia particular na demonstração – inclusive
isso teria sido utilizado na lógica simbólica posteriormente, segundo Hacking,
uma dedução mental.
Rejeição da ideia abstrata.
Entretanto, continua ele, apesar de Berkeley desprezar as ideias abstratas ele
não argumenta claramente que elas não existam já que cada um poderia, por inspeção
direta, constatar tal ausência. A questão não é que não podemos formar imagens
de ideias abstratas, o ponto é que uma faculdade como a visão não tem ideias
abstratas por objeto e nem precisamos delas na demonstração geométrica.
Discurso público sedutor.
E Berkeley segue a máxima cartesiana de escrutinar somente suas próprias ideias
– ali não poderia se enganar pensando ter uma ideia que não tem. Se podemos
falar sobre o que é comum aos triângulos, isso não passa de palavras sedutoras
que não correspondem a nada que pudéssemos ver por introspecção. Conforme Hacking:
“O discurso público pode encadear essas sílabas, mas no discurso mental, livre
de palavras, não há nada correspondendo” (p. 47)
A primazia do discurso mental.
Aí o discurso público é vazio, mas o que existe deve ser objeto do pensamento
pois ser é ser percebido. E Berkeley, assim, pode considerar o discurso
da filosofia corpuscular pura perversão de linguagem. Com seu argumento,
Berkeley consegue mostrar principalmente que somos enganados pela linguagem,
mas não se trata somente de uma medida profilática da linguística para com a
filosofia. Hacking enfatiza que há um discurso mental encadeado de ideias
internas, destituído de palavras e que é logicamente anterior ao discurso
público que pode nos desorientar.
[i] Fichamento do quarto capítulo de Por
que a linguagem interessa à filosofia? São Paulo: Editora Unesp, 1999. Ian
Hacking.
[ii] Segundo Hacking, ideia-lista. Ele
via uma lista de ideias?
[iii] Mais detalhes em: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2024/01/as-ideias-de-port-royal.html.
[iv] Para Descartes fixamos essa ideia com um firme olhar mental.