sábado, 29 de agosto de 2015

Camadas de artificialidade

No começo era a terra, a água, o verde da natureza e os bichos. Depois veio o homem com seus instintos: comer, dormir, se reproduzir. Ele era o bom selvagem* e precisava sobreviver, mas tinha compaixão de si e do sofrimento alheio. Em algum momento o homem começou a se expressar individualmente e a comunicar-se [entre si], formou comunidades e se socializou. Acreditamos que por aí se mostra a primeira camada de artificialidade: a produção da linguagem e a criação de regras de convívio social. Tudo o que é produção humana é artificial, excetuando-se a procriação que é natural. O organismo humano é natural e ele estava bastante ligado à natureza, naquele tempo longínquo. Na natureza, os fenômenos e as interações entre os seres seguem sua lógica, na qual o homem se insere. Mas, quando ele se insere, ele muda a correlação de forças, porque produz coisas artificiais. O homem não soube (ou não quis) se manter na lei natural, ele criou a sua própria lei e submeteu a ela a própria natureza. Se a primeira camada de artificialidade era composta pela linguagem e valores éticos, a ela se sucederam outras: a vestimenta, a propriedade, a moeda de troca, os utensílios, as armas. De fato, nos parece que a primeira camada de artificialidade foi não material [ou virtual], oriunda de esforço mental e psicológico, e dela surgiram necessidades materiais: os objetos criados a partir de transformações naturais. A partir dessas duas camadas, de suas sobreposições, de seus relacionamentos e cruzamentos, advieram outras camadas artificiais materiais e virtuais, até chegarmos aos nossos dias.
Portanto, houve um processo histórico que irrompeu na atualidade e seguindo um determinado caminho, transpondo e criando camadas artificiais. Seria um trabalho importante identificar séries que trilharam determinadas camadas materiais e virtuais para poder identificar sua origem natural e qual o alvo artificial atingido. Contudo, o que a construção das camadas artificiais nos permite concluir é que elas são fator determinante em todos os nossos atos e relações. A tal ponto que fica realmente difícil poder estabelecer qualquer valor de verdade, de certo ou errado e de julgamento. A densidade de artificialidade polui nossos interesses e não temos nenhuma garantia de como ou porque defendê-los. Nossos interesses, se perdendo nas camadas de artificialidade, se alinham ou se chocam com os interesses dos outros e, sem o estabelecimento ou a publicação da cadeia perpassada em cada camada artificial, realmente não podemos chegar a nenhuma conclusão, não podemos defender nossos pontos de vista e nem lutar por eles.
Esse histórico artificial extrapolou na atualidade e caímos em um relativismo absoluto. Nenhum argumento que se dê muita acima de camadas de artificialidade pode ser factível ou provável. De qualquer forma, algumas esferas institucionais, sociais, etc., procuram se precaver. Isso pode ser verificado no caso das ciências que delimitam seu contexto e suas variáveis, mas querendo se fazer neutras pecam em uma petição de princípio: atestar neutralidade já não é ser neutro. Além do mais, as ciências acabam por se fechar em si mesmas e, por mais que procurem se aproximar de uma camada natural, primitiva e essencial, produzem resultados que ecoam em camadas de artificialidade desprovidas de critérios de escolha e seleção, ao Deus dará da poluição e confusão que elas causam.
Por tudo isso, as infinitas camadas de artificialidade combinadas, regadas aos mais diversos elementos materiais e virtuais nos devem fazer desconfiar de qualquer necessidade vital nossa. Individualmente, não temos critérios de garantia. Então, se isso vale para mim, vale para os outros e vale para toda e qualquer relação de transferência ou zona de diálogo entre eu e os outros. Do que podemos concluir que não devemos estar tão entrincheirados e que qualquer guerra não parece ter fundamento, se não forem retrocedidas a um algo natural ou se não forem elucidadas todas as camadas artificias materiais e virtuais por ela atravessadas e que forneçam subsídios para o ataque.
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* Aqui nos inspiramos na teoria naturalista de J.J. Rousseau.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Ceticismo alegre e modesto*

Sobre a obra de Hume importa ressaltar que começa com o Tratado da Natureza Humana, que não foi acolhida pelo público e faz com que o filósofo mude o estilo e parta para as investigações (acerca do entendimento humano e acerca dos princípios da moral), recolhendo fatos e usando o inquérito como principal recurso. A filosofia é um jogo que tem suas regras e onde é preciso inquirir; a filosofia é uma caçada. Remetendo à tradição britânica de Lorde Bacon e Sir Isaac Newton, a investigação aplica o método experimental da ciência para entender a natureza humana, entender o homem em suas ações e ser entendido por ele: "Sede filósofo, mas sede sempre homem".
Reforçando o conceito, para o empirista Hume, as ideias provêm das impressões, sendo as últimas mais vivas que as primeiras, mas as primeiras se estabelecendo a partir da reflexão, do pensar. Esse é o papel do pensamento: organizar ideias que são metódicas, estabelecer conexões a partir das regras de semelhança, contiguidade, causalidade, etc. Nesse processo, o espírito é guiado pela experiência, se não há experiência, ele vagueia. Por outro lado, pelo empirismo cético, a inferência de um efeito a partir de sua causa é feita pela imaginação, a razão nada pode demonstrar a esse respeito. Aqui se abre espaço para a ação: é ela que combate nossa ignorância, a partir do hábito passado posso acreditar no futuro. É a imaginação que domina a mente. A natureza humana se guia pela crença que nos permite assumir o que não existe como já existente, cremos em ideias quase tão vivas quanto às impressões. Às vezes, existe espaço para a ficção: algo ocorre diferente do previsto - nesse caso, só sabemos a posteriori. Portanto, é a crença que é o princípio diretor de nossas ações, ela toca o nosso espírito de tal forma que nos faz distinguir entre as ideias do julgamento das ficções da imaginação.
Hume atesta o poder da imaginação: somos irracionais, mas imaginativos. A imaginação é extremamente livre, se nos faz acreditar em quimeras, ela harmoniza o curso da natureza com a sucessão de nossas ideias. Somos guiados pela experiência usando a liberdade da imaginação para agir. Mas a liberdade é condicional porque se baseia na conjunção das causas e feitos, nossa moral vem com regras e apreciações a reboque. Na esfera moral nada podemos prescrever e não há orientação sobre o que fazer porque a causa da ação vem da experiência. Pelo método de Hume, é aí que devemos procurar a impressão que está por trás de uma aprovação ou desaprovação, através do inquérito sobre a origem de nossos sentimentos.
A moral de Hume combate o egoísmo e se volta para a ação, exaltando a simpatia entre os homens, mas sem dispensar o caráter de utilidade. Somos benévolos com os outros porque a nossa situação é precária, senão não precisaríamos ser. Da mesma forma que a justiça não é útil em uma sociedade com abundância. De qualquer forma, há um sentimento moral que nos empurra para a ação, seja para a benevolência ou para a justiça. E somos parciais, mas podemos aprender as vantagens de sermos justos. Isso não quer dizer que haja um cálculo frio, somos orientados na ação moral pela paixão - aquela impressão de segundo grau e reflexiva. Menos a razão fria que diferencia o verdadeiro do falso, mais a paixão que age e inventa; menos a indiferença irracional e mais o calor natural.
Por outro lado, as investigações, o inquérito, sempre deixam algo no ar. Há espaço para diálogo e aqui se insere o ceticismo temperado de Hume. A moral se orienta pelos mesmos princípios racionais, embora tire conclusões diferentes; não há uma filosofia doutrinária, mas uma filosofia modesta, de troca. É preciso, menos do que concluir, aprender a pensar. Hume não renuncia ao homem, mas domestica suas surpresas.
E, para lá das investigações, ainda permanecem as difíceis questões do tratado, como, por exemplo, a ideia de um eu, considerando que as nossas experiências se constituem a partir de um tecido de impressões particulares. Se a experiência só apresenta impressões sucessivas como podemos considerá-las unificadas pelo eu? O fluxo de causa e efeito da natureza é o mesmo fluxo de causa e efeito de nossas ideias... Deixemos essas pendências em aberto para exame posterior.

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* Resenha do capítulo sobre Hume no livro Gradus philosophicus: a construção da Filosofia ocidental, organizado por Laurent JAFFRO e Monique LABRUNE. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Mandarim, 1996.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Empirismo lógico*

Hume provoca uma guinada no empirismo: conceito histórico que limita o mundo das ideias ao que recebemos dos sentidos, todo o conhecimento se origina na experiência. Para Hume, as impressões que recebemos vêm dos sentidos e compõem nossas ideias, mas cada ideia é um termo separado, e cada ideia é ligada a outra por uma relação, ou seja, há ideias de termos e ideias de relações. Uma ideia não é atribuída à outra por um juízo, pelo verbo "é", mas elas são justapostas e ligadas pela conjunção "e"; é uma lógica das relações. Aqui já temos um esboço do empirismo lógico: recebemos impressões sensíveis e as ligamos logicamente.
A relação, então, é a passagem de uma ideia a outra e faz parte da natureza humana, como, por exemplo, os princípios de associação, causalidade, etc. Pelo princípio de causalidade de nossa natureza usamos locuções que não se dão na experiência, como: amanhã, sempre, necessariamente. O sol necessariamente nascerá amanhã? Não temos certeza porque isso não está dado na natureza agora, mas inferimos, cremos, daí as crenças que estão na base de nossos conhecimentos. As crenças se baseiam em casos semelhantes (todo dia o sol nasce...) que se fundem em nossa imaginação e formam nossos hábitos, mas no entendimento esses casos permanecem distintos e fundamentados na experiência. 
Portanto, as relações que estabelecemos vêm do entendimento e da imaginação. Mas podemos passar de uma ideia a outra ao acaso. Quando isso ocorre, a imaginação usa as regras do entendimento para produzir ficções, delírios, forjando princípios de natureza humana. A fantasia cria relações fictícias nos fazendo crer em loucuras e mesmo duplicando os casos reais por uma repetição verbal - e cremos no que falamos! Se o ceticismo vinha do erro dos sentidos, de sermos enganados pela impressão das coisas (lembremo-nos do exemplo de Descartes do tamanho do sol que nos aparece pela visão e é diferente do tamanho real), para Hume não há erro, não há crenças falsas, mas crenças ilegítimas. Pelas relações de causa e efeito fazemos cálculos de probabilidade, mas, às vezes, a ficção não pode ser corrigida e mesmo crenças ilegítimas vão fazendo parte de nossa natureza humana. Como acontece com as crenças ilegítimas no mundo, no eu e em Deus que formam a base de nossas crenças legítimas.
A investigação sobre o conhecimento começa e termina no ceticismo, mistura ficção e natureza humana. Mas a natureza humana não se guia somente pelos princípios de associação de onde decorrem as relações, mas de princípios de paixão de onde decorrem os pendores. Na base da associação: relações + pendores. Se os princípios da associação nos fazem ultrapassar o dado, no fundo das paixões não há egoísmo, mas parcialidade, nos apaixonamos pelos que estão próximos de nós. De forma diferente do contrato social que limita egoísmos, a proposta é superar a parcialidade, de um estado de limitações legais deveríamos criar artifícios, invenções institucionais para superar nossa parcialidade. Se Hume embricou o conhecimento entre ficção e natureza humana, agora a natureza humana deve ser inventiva para ultrapassar as parcialidades.
As paixões são a extensão artificial para superar a parcialidade humana, elas ressoam na imaginação fazendo ultrapassar os limites naturais. Os princípios de associação estão estabelecidos na imaginação como regras de cálculo, como objeto do conhecimento. As paixões, os sentimentos estéticos, morais, políticos se sobrepõem a esses objetos e formam as regras de gosto, do direito, etc. Na posse, o que vale é a relação que estabelecemos com o objeto, que seja suficiente para apresentar garantias: não basta lançar um dardo sobre a porta para garantir sua posse, é preciso tocá-la.
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*Resenha do texto: Iluminismo – Hume. De Deleuze, na coleção de História de Châtelet.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O princípio de nossas ações

Gostaríamos de entender se há um princípio básico norteando nossas ações e se ele poderia ser o mesmo para qualquer pessoa. Existem ações instintivas, fisiológicas, mas existem outras ações que se originam a partir de um valor, de uma reflexão intelectual, um cálculo. Também existe cálculo na ação instintiva, mas ele se situa na esfera da conservação de si, é um cálculo orientado para a necessidade de sobrevivência e esse valor parte de um princípio vital.
E qual seria o valor, qual seria o princípio considerando as ações que se seguem a partir de pensamentos? Por exemplo, o ato de ir trabalhar pode ser considerado um ato não instintivo. Quando acordo cedo e estou com sono, meu organismo tende a querer dormir, mas existe uma ação de levantar para ir trabalhar. Trabalho por que faço parte de uma sociedade que depende de várias funções, trabalho por que preciso ganhar dinheiro ou trabalho por que gosto? (Nos ocorre agora apenas esses três princípios para a "ação exemplo" trabalhar, mas podemos fazer outros exercícios, com outros princípios ou outras ações).
Considerando que trabalho porque faço parte de uma sociedade, trabalho para essa sociedade, mas também para que a sociedade trabalhe para mim. Nesse caso, existem várias funções e, quando possível, tentamos escolher qual função queremos realizar. Comparamos as funções utilizando vários critérios, mas escolhemos dentre as que cremos melhores para nós. Escolhendo a que consideramos a melhor, deixamos as que restam para os outros.
Considerando que trabalho porque preciso ganhar dinheiro, a resposta já está na pergunta: se preciso ganhar dinheiro me movo pela competição - quanto mais eu ganho, menos alguém ganha, não há fórmula diferente. Nessa abordagem somos forçados (por pura falta de opção), nos regulamos por uma lei da selva que me beneficie de alguma forma.
Se eu trabalho porque gosto é porque eu quero me sentir bem, independentemente do que se aplique aos outros. Eu posso gostar de trabalhar, embora todos queiram gostar de trabalhar, mas o que importa é que me seja de bom grado.
Qual valor tange os três princípios que orientam a ação de trabalhar? Obviamente, todas as ações são realizadas por um eu. Há sempre um eu como princípio de nossas ações, mas também há sempre um eu como fim, como objetivo. O eu é causa e consequência. E o valor: por trás de todas as nossas ações há um princípio básico de estudo das melhores opções para o eu, independente de consequências morais, políticas, sociais, etc., mesmo que dentro da lei. É somente esse princípio que rege as nossas ações, ele é o único valor, independente de qualquer aparência. Continuaremos com o tema...

sábado, 1 de agosto de 2015

Fala que eu te escuto

A voz como algo concreto não existe. Porque a voz preenche um espaço, porque ela nos aproxima das outras pessoas, porque ela nos toca, parece que ela existe. Mas não, a voz é uma designação, um símbolo que remete a um nada, remete a uma forma vazia. Pensemos na voz, o que é a voz? Alguém já viu uma voz por aí? A voz é um barulho como outro qualquer, mas tendemos a achar que a voz tem poder. Tudo não passa de mecânica, ondulatória, enfim. Há uma vibração que se desloca no ar, no tempo e no espaço, há um som acontecendo agora que me toca. A voz é uma codificação dos órgãos vocais - esses sim existentes, uma proliferação acústica no ar, uma decodificação dos órgãos auditivos, tudo isso junto e num intervalo de tempo quase instantâneo. Não há uma voz única e solta no ar. Não há um ser voz, há toda uma transferência de ondas que se deslocam em um meio.
Não há nenhuma garantia de comunicação limpa e ideal pela voz. Nas codificações e decodificações há uma presunção de transferência de conteúdos mentais, há uma semântica e uma sintática embutidas na mensagem que se desloca pelo meio de propagação. Há um discurso lógico intrínseco que se vale de uma regra estabelecida e que é admitido por todos. Mas há um sentido que se quer expressar que não é garantido. A interpretação é pessoal, independente de tudo o que há de objetivo e que garante a comunicação intersubjetiva. Mas o escutar e o consentir não significam em hipótese alguma um assentimento relativo ao sentido. Você fala, eu escuto e pareço concordar, mas não posso me comprometer com você. Não por uma questão ética, mas porque: 1.) como sua mensagem me toca e 2.) quais os efeitos intelectuais que ela me causa, ambos os eventos são secretos e somente meus porque competem à minha psique. Não há pacto de sangue que garanta isso. Não me venha cobrar depois por certo assentimento baseado nessa transmissão cheia de ruídos. Apenas um pode concordar com o que foi dito: o emissor. E mal ele, porque ele quer algo quando fala, mas ele quer algo naquele momento. Depois, em um segundo momento, ao defender o dito, o dito virou objeto, o que se defende agora é a supremacia, uma coerção, porque nunca pode haver um acordo. O interesse é sempre de quem propõe e baseado em inúmeras condições empíricas determinadas de cada momento.
Discutamos eu e você todo dia o mesmo assunto, alguma ideia em que discordamos. Certamente a cada dia a discussão será diferente porque a cada dia somos tocados por novas informações e influenciados por opiniões que nos afetam e sentimentos e pensamentos que criamos. Mais do que isto, a discussão de hoje tem por pressuposto a discussão de ontem, já está dentro de um plano de imanência e de diálogo estabelecido. Assim, é absolutamente certo que a fala é algo contingente e que seus desdobramentos podem ser imprevisíveis.
É desse contexto de imprevisibilidade que a autoridade se aproveita. A autoridade quer recuperar o dito e transformá-lo em verdade. A autoridade quer realizar o dito, mas ele já foi dito, agora ele não é mais nada. E, quando foi dito ele se valeu do desejo do emissor, lá ele queria e teve o assentimento pretendido e agora cobra, conforme já aventamos, não o dito, mas o assentido. Mas sabemos que a realização do dito, a fala em si mesma, não é nada de especial e separada, a fala é a conjunção dos seus órgãos orais, do meio e dos meus órgãos auditivos, além de infinitos outros ruídos de toda ordem. Uma simples resposta, um assentimento não é um consentimento. Se cobre pela sua pretensão de querer verborragicamente me submeter. Você talvez saiba o que pretendeu e o que queria. Parece-me muito mais que você quer sempre adesão e não comunicação.
Houve momentos em que a fala moveu multidões: Hitler moveu milhares para debaixo da terra ou os transformou em cinzas espalhadas pelo ar. E tantos outros exemplos... Nesses casos, a contingência virou necessidade, mas a necessidade não é da fala porque a fala é o meio, ela é instrumentalizada para mover. A necessidade vem de fora, há uma força externa operando. Aqui não há ruído na transmissão porque todos sabem o que querem escutar. Não culpemos Hitler e sua propaganda, não culpemos a mecânica do seu som. Havia uma causa muito maior em jogo e que já estava dada, aquilo foi necessário. Todos aqueles eventos encadeados só nos fizeram parecermos mais homens do que jamais teríamos sido outrora. Ali nossa humanidade aflorou, desabrochou regada por chuva ácida. Foi lá que as contingências se cruzaram e dali brotou a necessidade de provarmos que sim, podíamos fazer aquilo porque éramos imbatíveis. Mais do que nunca, ali a fala mostrou sua contingência, mais do que nunca a autoridade se aproveitou da fala concreta e, fingindo ser necessária, nos fez acreditar que não havia e não há acordo entre nós. Mas ali também nos provou que concordar com a fala autoritária não é consentir psiquicamente, mas covardemente delegar nossa própria responsabilidade.
Por isso, não me venha com sua fala mansa, com uma conversinha mole. Não queira me convencer para me vencer. A sua fala é a minha fala porque a sua voz só é algo porque estou aqui com meu corpo e meus órgãos. Não queira que eu concorde, fala que eu te escuto. Só isso.