quarta-feira, 23 de novembro de 2016

O existencialismo é um humanismo*

Sartre, vida e obra. Jean Paul Sartre nasceu em 1905, na França, e cedo perdeu pai e mãe, o que o faria um homem totalmente livre e defensor do existencialismo: não existe uma natureza humana predeterminada, é a escolha de cada um que determina a sua existência. Tinha uma imaginação criativa e aos 10 anos torna-se escritor, para ser um dos maiores do século XX. Na faculdade conhece Simone de Beauvoir com quem permanece por toda a vida. Foi um homem engajado: prisioneiro de guerra, escapou e participou da resistência, fundou revista e participou do partido comunista. Sua principal obra filosófica é “O ser e o nada” que se vale dos conceitos de ser-em-si (fenômeno) e ser-para-si (consciência) explorando o drama da liberdade do homem que prescinde de valores e constrói sua vida com base em suas ações e assim dá sentido a ela. Em seus livros de literatura explorou suas teses filosóficas e os conflitos e situações limites enfrentadas por cada um de nós.
Texto base. O existencialismo é um humanismo: trata da ética existencialista. Busca se defender de ataques que a corrente vinha sofrendo na França, já que era vista como um modismo. Criticavam o existencialismo porque ele tornaria a ação humana impossível e levaria a um conformismo e à solidão. 
Existencialismo: existência precede essência: não há uma natureza humana, ela é construída conforme nossas ações. Cada um constrói a sua essência por seus atos, o homem se faz. Exemplo do cortador de papel: o cortador de papel é feito a partir do conceito que está na cabeça do artífice, ele já tem uma utilidade definida, então sua essência, suas características, sua função, precedem sua existência, o momento de sua criação. Na modernidade clássica, os filósofos tinham a concepção de um Deus criador, que possuía o conceito de homem em sua inteligência, ou seja, a sua essência e o homem realizava esse conceito. Com o passar do tempo, no século XVIII, foi suprimida essa noção de um Deus criador, mas manteve-se a fórmula que a essência precede a existência mesmo retirado o conceito de Deus, ou seja, há uma natureza humana e cada homem é um exemplo particular de um conceito universal, de uma definição preconcebida – não é o caso . Então, se a existência precede a essência, o homem não está definido, ele surge do nada e se faz pela sua subjetividade. O homem se lança para um futuro aberto, ele se projeta. 
Valores: Não há valores a priori pelos quais devemos nos orientar, valores dados. Partimos de nenhum valor e atribuímos valor ao que fazemos conforme nossos atos. O valor vale depois da ação, não antes. E se a gente escolheu determinada coisa é porque consideramos aquilo bom (na maioria das vezes...). 
Liberdade e responsabilidade: Temos total liberdade na ação, fazemos nossas escolhas livremente e o que fazemos afeta os outros e por isso temos que ter responsabilidade pelas atitudes que tomamos. Então criamos uma imagem nossa que é vista pelos outros na sociedade e os influencia. Por exemplo, podemos querer participar do grêmio da escola ou preferir uma postura mais retraída e introvertida. Cada ação nossa molda uma imagem que é vista por todos e afeta a todos. 
Angústia: a angústia provém dessa falta de valor, de algo para nos agarrar, ficamos angustiados, mas temos que agir de alguma forma, temos um compromisso com a escolha. “Mas, terei eu o direito de agir desse jeito?”. Além disso, a partir dessa escolha assumimos um compromisso com a humanidade inteira. Aqui, rebatendo as críticas, Sartre coloca que essa angústia não bloqueia a nossa ação, mas ela é condição da ação, porque garante que há uma escolha livre baseada no valor que atribuímos naquele momento. 
Má-fé: não assumir que temos essa liberdade é disfarçar a angústia e agir de má-fé, com base em uma determinação e fatores externos. Abraçando a má-fé e não vivendo de modo existencialista estamos propagando a mentira - universal. 
Desamparo: não temos justificativa externa para nossas ações, estamos abandonados à nossa liberdade. Não há moral que indica a fazer uma coisa ou outra. Não há uma tábua de valores predeterminados como: não matar, não bater na mulher, não mentir. Se não há valores, há somente homens e tudo estaria permitido. Sartre vai dizer que podemos fazer escolhas com base em opções particulares ou na coletividade e, se vamos procurar um conselheiro, de antemão já sabemos qual a tendência do conselho que vamos receber, ou seja, ainda é nossa responsabilidade. Então o homem está condenado a ser livre. Para Sartre, um covarde não nasce covarde, mas se faz covarde, ele é culpado por ser covarde. 
Condição universal: se por um lado não há uma natureza humana, uma essência, para todo homem há um projeto, a todo tempo estamos tentando manter esse projeto e lutando contra os limites, esse projeto é comum a todos e condição universal do homem. 
Escolha: retomando o ponto que tudo é permitido, na verdade não há uma escolha gratuita porque cada um faz a sua moral na ação assumindo um compromisso. As situações variam sempre, mas o homem tem sempre que escolher e escolhendo age de boa fé. 
Julgamento: Não se pode julgar o outro por princípios ou valores abstratos, mas somente por agir em liberdade. Dentro de uma situação pode haver duas morais completamente distintas, o que conta é escolher pela liberdade. 
Humanismo: Sartre conclui dizendo que o existencialismo é humanismo porque é o homem que age livremente e que ele não está fechado em si porque pertence a esse universo humano legislador.
Trecho. “De fato, não há um único de nossos atos que, criando o homem que queremos ser, não esteja criando, simultaneamente, uma imagem do homem tal como julgamos que ele deva ser. Escolher ser isto ou aquilo é afirmar, concomitantemente, o valor do que estamos escolhendo, pois não podemos nunca escolher o mal; o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos. Se, por outro lado, a existência precede a essência, e se nós queremos existir ao mesmo tempo em que moldamos nossa imagem, essa imagem é válida para todos e para toda a nossa época. Portanto, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, pois ela engaja a humanidade inteira. Se eu sou um operário e se escolho aderir a um sindicato cristão em vez de ser comunista, e se, por essa adesão, quero significar que a resignação é, no fundo, a solução mais adequada ao homem, que o reino do homem não é sobre a terra, não estou apenas engajando a mim mesmo: quero resignar-me por todos e, portanto, a minha decisão engaja toda a humanidade.”

* SARTRE, J. O existencialismo é um humanismo. Em: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Lar, doce lar

Não se trata de buscar a origem da propriedade privada na história ou dos motivos que levaram à sua constituição. O que se pretende é constatar o lar como lugar estruturante da sociedade. Não se vive sem um lar e, quando dele nos afastamos, logo queremos voltar. Mas o que esse lar significa? Obviamente, o abrigo das intempéries naturais é uma necessidade instintiva, porém o lar é o lugar da perpetuação do humano. Uma vez o lar criado [pelo homem] e habitado, nada que o homem não queira nele entra, permanece ou sai. 
Como dissemos, não há nada de natural no lar, mas, mais do que isso, o lar é tipicamente artificial, construído e constituído. Ali, o básico do humano acontece: a alimentação, o descanso, o lazer e, hoje em dia, até mesmo o trabalho. E ali as relações humanas se dão. O lar é produzido pelo homem e é onde o homem se reproduz enquanto ser individual e enquanto espécie.
Há vários lares e o que eles têm em comum é o humano, essa marca não se apaga. Eu olho pela janela do meu apartamento e vejo muitos apartamentos. Eu olho e me questiono: "o que se passa nesses apartamentos?". Não penso muito para concluir que somente se passa a reprodução do humano. E ela se dá de várias formas: o humano reproduz o bom e o ruim do humano.
Mas não pretendemos julgar o homem e sua odisseia terrestre. Queremos constatar que, dentro do lar, o homem se afirma quando, por exemplo, vai ao banheiro e se limpa, seja defecando ou tomando banho. Não importa para onde nossas impurezas vão porque isso está sob o controle do homem. Em nosso lar a água chega, a luz chega e a internet também. Isso basta para nos colocar em uma condição humana de total sujeição ao que está estabelecido.
Se aqui não se trata de buscar a origem da propriedade privada na história, não se pode seguir sem salientarmos que o homem é histórico. Ele é histórico porque foi constituído o atual homo sapiens por um processo evolutivo biológico e, desde então, se constitui tentando evoluir humanamente ou humanisticamente seja lá como for. De fato, o peso da história nos empurrou para dentro do lar e lá(r) estamos.
No lar estamos livres das adversidades, da sociedade demandante e do mundo lá fora, no lar estamos livres do vizinho chato. Mas no lar estamos presos. Presos em nossa condição humana. Espacialmente o lar é muito pequeno para nosso organismo físico, mas não precisamos mais caçar, pescar, sobreviver. Sobrevivemos miseravelmente dentro do lar, entre paredes, majoritariamente. Somos capazes de permanecer em um 3 x 3 metros capturando o mundo pelas janelas criadas da televisão, do computador e do nosso aparelho telefônico, hoje multifuncional. Provavelmente, um ET recém-chegado na terra se espantaria ao observar como podemos permanecer no lar, sentados, deitados ou em pé, por tanto tempo. Um ET não entenderia o que é um aparelho de TV que emite ondas sonoras e luminosas que tanto nos encantam (ou não), que tanto nos motivam (ou não) e que tanto nos prende. Se estamos presos no lar, também poderíamos estar presos na rua porque a prisão à qual nos referimos é simbólica. Tudo para nós é simbólico porque somos homens e chegamos até aqui sendo "aquele que vive no lar". Mudaremos isso?