sábado, 31 de dezembro de 2016

Feliz 2017*

É uma linha muito tênue a que separa o estar no mundo ou não. Tal como nos é possível conhecer, esse nosso corpo é finito e, com ele, nossa vida. Só há mundo para uma consciência, portanto, só podemos ter certeza que só há mundo para o homem. O mundo, tal como o conhecemos, só existe para nós, humanos. Seja como uma palavra, seja como um conceito abstrato, de qualquer forma, há uma formulação humana que nos afasta do “mundo da vida” concreto, real, de fato. Essa mesma consciência que não conhece o mundo real cria para si um mundo imaginário, mas também se estabelece na intersubjetividade: ela é a nossa marca. Então, o mundo é diverso para cada um, mas é o mesmo para uma consciência.
Se já lá como for, a consciência constitui o mundo e dá um significado a ele. Mais do que isso, a consciência se aplica um projeto porque ela é reflexiva. Percebendo-se, a consciência realiza o presente a partir de uma fresta do passado e se lança no futuro. Esse movimento faz dela e, consequentemente, do corpo, de nós, um projeto e se nos impõe uma finalidade artificial. A consciência que não conhece o mundo real se move por finalidades artificiais: isso somos. Enquanto consciência desperta, agimos e interagimos. Enquanto consciência desperta e reflexiva nos lançamos no nosso mundo que tem como pano de fundo o “mundo da vida”, inacessível, mas ao qual pertencemos.
Do mesmo modo, só há tempo para uma consciência e ela, temporalizando-se e refletindo, estabelece pequenas finalidades artificiais face há uma finalidade maior que é base para todas elas: o estar-vivendo. Jamais poderemos negar o estar vivendo porque, negando-o, não estaremos vivendo e não haverá consciência e nem corpo, mundo e tempo. Estar-vivendo como finalidade maior permite a intersubjetividade, o projeto e as pequenas finalidades do dia a dia. O tempo que a consciência cria mede-se em ciclos e um está por terminar: o ano de 2016 d.C., conforme a contagem adotada por aqui no Brasil. Para o “mundo da vida”, concreto e real, isso não faz a menor diferença, mas para o nosso mundo novas finalidades advêm: feliz 2017!



* De uma perspectiva fenomenológico-existencialista. 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Movimento filosófico

A questão do movimento ou da mudança é um problema antigo que preocupa a filosofia desde os pré-socráticos. Heráclito acreditava que a natureza era mudança: do quente ao frio, do duro ao mole, etc. No mesmo rio banhamos e não banhamos... É ou não é o mesmo rio? Não é a mesma água ou será que a água do rio um dia volta a passar nele novamente? A passos largos nos movemos na história da filosofia e o Filósofo postulou uma ciência da mudança (a física), mas, se mesmo a sua ontologia abrangia os seres móveis, tudo era "atraído" pelo primeiro motor, imóvel!!
De fato, a modernidade se fechou no cogito e na racionalidade pela linha de Kant e mesmo os empiristas ingleses se apoiaram em ideias que não pareciam tão susceptíveis ao movimento... Mas é Husserl que correlaciona a alteridade da experiência com a subjetividade. Visando ir além do mundo como um dado objetivo explorado nas suas dimensões espaço temporais pela matemática, o visar é o mundo da vida como polo inesgotável da experiência. Mas não é essa a tarefa do fenomenólogo, mas a de, pela epoché, tomar esse mundo pré-dado como mero fenômeno, nos seus modos de doação para uma consciência subjetiva.
A subjetividade se move na percepção do mundo, constituindo-o. Se o ego é um agora da percepção, esse agora abrange um passado como a intencionalidade daquele momento e um futuro que se abre para a vivência que acompanha o fenômeno. Cada vivência subjetiva delimita o objeto e o mundo e o ego passa e fica, como o outro polo. Esse encontro da subjetividade com o mundo fenomenológico é um aprofundamento para além das formas da sensibilidade, mas é contrário à psicologia. A fenomenologia é a descrição de tais modos de doação e tentaremos verificar como se pode assumir tal tarefa.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

O existencialismo é um humanismo*

Sartre, vida e obra. Jean Paul Sartre nasceu em 1905, na França, e cedo perdeu pai e mãe, o que o faria um homem totalmente livre e defensor do existencialismo: não existe uma natureza humana predeterminada, é a escolha de cada um que determina a sua existência. Tinha uma imaginação criativa e aos 10 anos torna-se escritor, para ser um dos maiores do século XX. Na faculdade conhece Simone de Beauvoir com quem permanece por toda a vida. Foi um homem engajado: prisioneiro de guerra, escapou e participou da resistência, fundou revista e participou do partido comunista. Sua principal obra filosófica é “O ser e o nada” que se vale dos conceitos de ser-em-si (fenômeno) e ser-para-si (consciência) explorando o drama da liberdade do homem que prescinde de valores e constrói sua vida com base em suas ações e assim dá sentido a ela. Em seus livros de literatura explorou suas teses filosóficas e os conflitos e situações limites enfrentadas por cada um de nós.
Texto base. O existencialismo é um humanismo: trata da ética existencialista. Busca se defender de ataques que a corrente vinha sofrendo na França, já que era vista como um modismo. Criticavam o existencialismo porque ele tornaria a ação humana impossível e levaria a um conformismo e à solidão. 
Existencialismo: existência precede essência: não há uma natureza humana, ela é construída conforme nossas ações. Cada um constrói a sua essência por seus atos, o homem se faz. Exemplo do cortador de papel: o cortador de papel é feito a partir do conceito que está na cabeça do artífice, ele já tem uma utilidade definida, então sua essência, suas características, sua função, precedem sua existência, o momento de sua criação. Na modernidade clássica, os filósofos tinham a concepção de um Deus criador, que possuía o conceito de homem em sua inteligência, ou seja, a sua essência e o homem realizava esse conceito. Com o passar do tempo, no século XVIII, foi suprimida essa noção de um Deus criador, mas manteve-se a fórmula que a essência precede a existência mesmo retirado o conceito de Deus, ou seja, há uma natureza humana e cada homem é um exemplo particular de um conceito universal, de uma definição preconcebida – não é o caso . Então, se a existência precede a essência, o homem não está definido, ele surge do nada e se faz pela sua subjetividade. O homem se lança para um futuro aberto, ele se projeta. 
Valores: Não há valores a priori pelos quais devemos nos orientar, valores dados. Partimos de nenhum valor e atribuímos valor ao que fazemos conforme nossos atos. O valor vale depois da ação, não antes. E se a gente escolheu determinada coisa é porque consideramos aquilo bom (na maioria das vezes...). 
Liberdade e responsabilidade: Temos total liberdade na ação, fazemos nossas escolhas livremente e o que fazemos afeta os outros e por isso temos que ter responsabilidade pelas atitudes que tomamos. Então criamos uma imagem nossa que é vista pelos outros na sociedade e os influencia. Por exemplo, podemos querer participar do grêmio da escola ou preferir uma postura mais retraída e introvertida. Cada ação nossa molda uma imagem que é vista por todos e afeta a todos. 
Angústia: a angústia provém dessa falta de valor, de algo para nos agarrar, ficamos angustiados, mas temos que agir de alguma forma, temos um compromisso com a escolha. “Mas, terei eu o direito de agir desse jeito?”. Além disso, a partir dessa escolha assumimos um compromisso com a humanidade inteira. Aqui, rebatendo as críticas, Sartre coloca que essa angústia não bloqueia a nossa ação, mas ela é condição da ação, porque garante que há uma escolha livre baseada no valor que atribuímos naquele momento. 
Má-fé: não assumir que temos essa liberdade é disfarçar a angústia e agir de má-fé, com base em uma determinação e fatores externos. Abraçando a má-fé e não vivendo de modo existencialista estamos propagando a mentira - universal. 
Desamparo: não temos justificativa externa para nossas ações, estamos abandonados à nossa liberdade. Não há moral que indica a fazer uma coisa ou outra. Não há uma tábua de valores predeterminados como: não matar, não bater na mulher, não mentir. Se não há valores, há somente homens e tudo estaria permitido. Sartre vai dizer que podemos fazer escolhas com base em opções particulares ou na coletividade e, se vamos procurar um conselheiro, de antemão já sabemos qual a tendência do conselho que vamos receber, ou seja, ainda é nossa responsabilidade. Então o homem está condenado a ser livre. Para Sartre, um covarde não nasce covarde, mas se faz covarde, ele é culpado por ser covarde. 
Condição universal: se por um lado não há uma natureza humana, uma essência, para todo homem há um projeto, a todo tempo estamos tentando manter esse projeto e lutando contra os limites, esse projeto é comum a todos e condição universal do homem. 
Escolha: retomando o ponto que tudo é permitido, na verdade não há uma escolha gratuita porque cada um faz a sua moral na ação assumindo um compromisso. As situações variam sempre, mas o homem tem sempre que escolher e escolhendo age de boa fé. 
Julgamento: Não se pode julgar o outro por princípios ou valores abstratos, mas somente por agir em liberdade. Dentro de uma situação pode haver duas morais completamente distintas, o que conta é escolher pela liberdade. 
Humanismo: Sartre conclui dizendo que o existencialismo é humanismo porque é o homem que age livremente e que ele não está fechado em si porque pertence a esse universo humano legislador.
Trecho. “De fato, não há um único de nossos atos que, criando o homem que queremos ser, não esteja criando, simultaneamente, uma imagem do homem tal como julgamos que ele deva ser. Escolher ser isto ou aquilo é afirmar, concomitantemente, o valor do que estamos escolhendo, pois não podemos nunca escolher o mal; o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos. Se, por outro lado, a existência precede a essência, e se nós queremos existir ao mesmo tempo em que moldamos nossa imagem, essa imagem é válida para todos e para toda a nossa época. Portanto, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, pois ela engaja a humanidade inteira. Se eu sou um operário e se escolho aderir a um sindicato cristão em vez de ser comunista, e se, por essa adesão, quero significar que a resignação é, no fundo, a solução mais adequada ao homem, que o reino do homem não é sobre a terra, não estou apenas engajando a mim mesmo: quero resignar-me por todos e, portanto, a minha decisão engaja toda a humanidade.”

* SARTRE, J. O existencialismo é um humanismo. Em: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Lar, doce lar

Não se trata de buscar a origem da propriedade privada na história ou dos motivos que levaram à sua constituição. O que se pretende é constatar o lar como lugar estruturante da sociedade. Não se vive sem um lar e, quando dele nos afastamos, logo queremos voltar. Mas o que esse lar significa? Obviamente, o abrigo das intempéries naturais é uma necessidade instintiva, porém o lar é o lugar da perpetuação do humano. Uma vez o lar criado [pelo homem] e habitado, nada que o homem não queira nele entra, permanece ou sai. 
Como dissemos, não há nada de natural no lar, mas, mais do que isso, o lar é tipicamente artificial, construído e constituído. Ali, o básico do humano acontece: a alimentação, o descanso, o lazer e, hoje em dia, até mesmo o trabalho. E ali as relações humanas se dão. O lar é produzido pelo homem e é onde o homem se reproduz enquanto ser individual e enquanto espécie.
Há vários lares e o que eles têm em comum é o humano, essa marca não se apaga. Eu olho pela janela do meu apartamento e vejo muitos apartamentos. Eu olho e me questiono: "o que se passa nesses apartamentos?". Não penso muito para concluir que somente se passa a reprodução do humano. E ela se dá de várias formas: o humano reproduz o bom e o ruim do humano.
Mas não pretendemos julgar o homem e sua odisseia terrestre. Queremos constatar que, dentro do lar, o homem se afirma quando, por exemplo, vai ao banheiro e se limpa, seja defecando ou tomando banho. Não importa para onde nossas impurezas vão porque isso está sob o controle do homem. Em nosso lar a água chega, a luz chega e a internet também. Isso basta para nos colocar em uma condição humana de total sujeição ao que está estabelecido.
Se aqui não se trata de buscar a origem da propriedade privada na história, não se pode seguir sem salientarmos que o homem é histórico. Ele é histórico porque foi constituído o atual homo sapiens por um processo evolutivo biológico e, desde então, se constitui tentando evoluir humanamente ou humanisticamente seja lá como for. De fato, o peso da história nos empurrou para dentro do lar e lá(r) estamos.
No lar estamos livres das adversidades, da sociedade demandante e do mundo lá fora, no lar estamos livres do vizinho chato. Mas no lar estamos presos. Presos em nossa condição humana. Espacialmente o lar é muito pequeno para nosso organismo físico, mas não precisamos mais caçar, pescar, sobreviver. Sobrevivemos miseravelmente dentro do lar, entre paredes, majoritariamente. Somos capazes de permanecer em um 3 x 3 metros capturando o mundo pelas janelas criadas da televisão, do computador e do nosso aparelho telefônico, hoje multifuncional. Provavelmente, um ET recém-chegado na terra se espantaria ao observar como podemos permanecer no lar, sentados, deitados ou em pé, por tanto tempo. Um ET não entenderia o que é um aparelho de TV que emite ondas sonoras e luminosas que tanto nos encantam (ou não), que tanto nos motivam (ou não) e que tanto nos prende. Se estamos presos no lar, também poderíamos estar presos na rua porque a prisão à qual nos referimos é simbólica. Tudo para nós é simbólico porque somos homens e chegamos até aqui sendo "aquele que vive no lar". Mudaremos isso?

sábado, 22 de outubro de 2016

Escola é melhor do que lidar com merda*

Mannoni parte das análises psicanalíticas onde se valoriza muito o ponto de vista do pai ou do médico fazendo do discurso do paciente um mito morto. Ela toma dois exemplos, o de Schreber (caso emblemático de Freud) e Lettre au père (a carta ao pai) de Kafka, como casos em que havia tamanha autoridade do pai que o discurso do filho foi negado, extinguindo seu desejo ou fazendo com que o seu desejo se filiasse ao desejo do pai. A educação ideal de Schreber pai visava um adestramento moral e domínio corporal da criança que era má de nascença e que resultou em perversão da demanda de amor e na eclosão do delírio do filho[1]. A autoridade paterna baseada na violência levou o filho Kafka à perda da fala, o pai educador punia e submetia o filho, imobilizando-o. E é aí que a educação deve verificar o exemplo de não se basear em uma chamada “missão civilizadora” que se vale da autoridade do professor ou na hipótese de que o aluno nada sabe ao passo que o professor sabe tudo porque aí, de novo, elimina-se o desejo[2].
A autoridade do pai ganha força na transição da família medieval para a moderna que se constitui como núcleo conjugal burguês. Essa família, já marcada pela linguagem e por um demanda reprimida vinda dos progenitores, somente conserva o que está estabelecido, conservando as instituições. Nessa sociedade moderna, quem não se adapta ou se adequa é considerado doente. Mas, de fato, tal doença expõe apenas uma doença da própria sociedade. Mannoni, então, coloca que esses “delinquentes”, neuróticos, entre outros, de fato são os saudáveis da sociedade, porque a questionam e questionam as instituições estabelecidas. Eles não devem ser tratados como doentes, mas devem ser acolhidos em locais que façam valer a sua existência e seus desejos. Diferente da família nuclear, há uma contrapartida de movimentos libertários do início do século XX que pregavam que os jovens se adequassem sozinhos rompendo com a sociedade e autoridade dos adultos. Ela também cita o caso chinês que deveria ser mais estudado, onde a coletividade permite uma permutação das crianças pelas famílias e por onde a educação se dá partindo de uma não relação incestuosa entre pai e filho.
Mas, a busca de uma ciência da educação vem desde Platão e, na modernidade, Rousseau busca apagar o papel do educador em prol de uma educação que se guie pelo desenvolvimento da criança de acordo com a sua natureza, visando mais o caráter que o saber e estimulando o desejo de aprender. Tirando-se o foco de uma educação ideal, há um ideal de educação baseado na carência e no impossível – abre-se espaço para o desejo. Quando se parte de um ideal estabelecido de entrada cria-se uma verdade imaginária que não é a do desejo. Nessa polarização entre sociedade e natureza, a psicanálise instaura a linguagem e ressalta que há um Outro que marca a relação do sujeito com o significante. Platão representa um ideal de estado-nação elitista, escolha ideológica diferente da de Rousseau que vê a criança capaz de se inserir na cadeia significante pela linguagem e numa dialética mestre-aluno.
Quando a escola reproduz a sociedade, ela recalca o desejo do aluno de aprender e expulsa dela os casos sintomáticos. Mas é questionando as instituições que Mannoni relata exemplos de resistência e casos pedagógicos que se colocam a margem das instituições valorizando mais uma educação política formativa em detrimento de um método pedagógico ou técnica[3]. Desmistificando a função docente e indo a um sentido de uma educação comunitária e de contestação, as crianças não só são ensinadas como ensinam. Nessa posição, uma criança camponesa pode dizer: “A escola será sempre melhor que lidar com merda”. Muito mais do que o êxito que tais experiências vieram a apresentar, o que transparece é uma sociedade que estimula e fomenta um fracasso escolar para que possa manter a elite que se apossa de serventes usados como mão-de-obra e que garantem o seu poder de dominação. O papel da psicanálise, nesse caso, é o de questionar a ordem vigente, mas o da pedagogia é de revolucioná-la.



* Resenha de MANNONI, M. Uma educação pervertida. Em: Educação Impossível. Livraria Francisco Alves Editora SA.
[1] Schreber filho encontrou reproduzida na clínica a mesma posição autoritária do pai e o não reconhecimento simbólico da transferência o levou a uma construção imaginária.
[2] Na colisão do desejo do saber do aluno com o do mestre, o primeiro é negado.
[3] O pedagogo Freinet, a posição do educador Deligny, o caso Neill e a experiência da scuola di Barbiana

sábado, 15 de outubro de 2016

O homem e a rua e a rua e o homem

O homem se desloca pelas ruas, esse é seu território.
O homem abre clareiras, não vive da natureza.
A natureza é quase seu oposto.
E pelas ruas o homem é senhor de si.
Ele sabe por onde anda, mede os obstáculos e desliza solto.
Não é preciso muita atenção porque o cálculo todo já foi feito desde criança.
A incursão no mundo é essa experiência acumulativa.
Andando pelas ruas o homem sabe que a rua é dele e foi feita para ele.
As ruas são planejadas para o homem se deslocar, ele agradece e nelas se desloca.
Ele fecha esse círculo porque acredita que se basta, porque acredita que está satisfeito.
A esquina é logo ali, eu sei quem eu sou e sei para onde vou.
Nada me impede nessa rua, eu chegarei aonde quero e talvez nem precise estar tão concentrado assim.
Mas é assim e não poderia ser diferente: o homem só é homem por causa da rua e a rua só é rua por causa do homem.
A rua leva algo a algum lugar: o homem.
O homem vai a algum lugar, busca algo pela rua.
O homem não é pássaro e nem peixe e a rua não é ar, nem rio e nem mar.
O homem não é gado e nem leão e a rua não é pasto e nem selva.
O homem é da rua e a rua é do homem.
Mas se o homem deseja a rua e a rua deseja o homem, a rua não é o homem e o homem não é rua.
Sem homem não há rua e sem rua não há homem, mas homem não é rua e rua não é homem.
A rua movimenta o homem e o homem movimenta a rua, mas o homem se movimenta e a rua não se movimenta.
A rua está parada e o homem não pára.
A rua vê o homem e o homem vê a rua, mas a rua fica e o homem passa.
A rua é sempre rua, não foi e não será, não é diferente de rua.
O homem foi à rua, passou pela rua, arruinou a rua.
Se a rua rui é por causa do homem se o homem rui é por causa da rua, mas o homem não é a rua e a rua não é o homem.
Embora a rua seja a quilo que o homem quer o homem não é bem aquilo o que a rua quer, mas o que a rua quis.
Uma vez rua, nada mais.
Uma vez homem, sempre mais.

domingo, 2 de outubro de 2016

Uma nova imagem

Não é que o real não existe, mas ele não existe para nós porque nós somos seres de linguagem. Pensar o real como existente é pensar em algo que é pura aparência. É estar acometido por uma consciência irrefletida. Pensar o real como existente é o primeiro passo para aceitar uma normalidade e uma situação de controle humano e integração total com o mundo. Mas não é isso que ocorre. Nunca tocamos o real e nunca tocaremos, há uma intermediação. E não conseguimos tocar o real mesmo ele estando lá, dado, embora não o vejamos. Está além de qualquer capacidade humana tocar ou sentir o real. E assim, distantes, optamos por uma ilusão ou por um conformismo. Iludir é viver dentro de regras sistêmicas, é luta também poque tudo se faz por luta, mas poderíamos ir além. Conformar é entender nossa constituição e recalcar. Não há real para nós e isso é apenas um lembrete de que devemos nos situar e optar viver pelo simbólico e não pelo real. A ilusão de viver pelo real é a negação de qualquer possibilidade de ir além. A conformação de viver pelo simbólico é o primeiro passo para a ação. É só de posse desse entendimento que sabemos como a luta deve ser travada: é uma luta pela palavra.

Mas é tão difícil falar! Porque aceitamos o real e achamos que dominamos a situação quando não o tocamos. Se há alguma chance de mudança ela passa exclusivamente pela palavra como instrumento de guerra. Não podemos nos calar. Precisamos do discurso e devemos usá-lo a serviço da educação.  A mudança deve começar o mais cedo possível. Precisamos ser capazes de entender que o real não existe e que jamais será alcançado. De posse disso nos conscientizamos de nossa situação humana e podemos comprovar o que somos e como fomos gerados. Não fomos gerados no real, mas no seio do humano e humano seremos, por enquanto. Humanizados, então, poderemos ressignificar a nossa relação com o outro e com uma imagem preconcebida. Desfazer essa imagem, torcer essa imagem, recriá-la plasticamente é tarefa nossa. A imagem significa muito, ela tem um peso tão grande que deve ser reelaborada para que possamos nos aceitar como seres de linguagem, apenas isso.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Desenvolvimento ou constituição do sujeito (do desejo)*

Sujeito como objeto. Para Freud-Lacan[1] não há um desenvolvimento do sujeito, mas ele se constitui por operações como o estádio do espelho e o complexo de Édipo. O sujeito é objeto do discurso dos pais antes mesmo de nascer da união que se dá entre o homem e a mulher regulada pela proibição do incesto. Ou seja, frente à indiferenciação natural há a lei cultural que tem por pressuposto a estrutura da linguagem, lei que se dá na ordem do discurso. Desde a vida uterina a mãe já está habitada pela lei e pelo desejo e a criança, antes de nascer, é objeto do outro. A satisfação das necessidades da criança, que não são naturais porque marcadas pela linguagem, implica o auxílio da mãe e por aí se dá o processo de constituição da subjetividade. O sujeito sustenta-se na vida pelo outro e no ordenamento simbólico dos desejos.
Desejo como faltaO grito do recém-nascido desamparado se faz demanda e passa-se de um estado de inanição à satisfação (diferença nada-tudo) que se constitui como um traço mnêmico que funda o aparelho psíquico. Quando a necessidade reaparece acontece um novo grito pela demanda (quer repetição), mas o que se oferece, difere: há uma falta (diferença) e o desejo se constitui como “estar em falta”. Essa experiência de satisfação é mítica porque o que se oferece é um objeto feito de cultura e o adulto não pode responder à altura dA Necessidade. A criança já nasce no quadro desiderativo do adulto em posição de objeto e o seu desejo não é natural: o desejo deseja o desejo do outro enquanto ser desejante. Desejamos ser desejados pelo outro como fomos na experiência mítica, portanto a subjetividade não se desenvolve como um germe no organismo. Se a subjetividade está no desejo do outro ela só precisa de um organismo para se encarnar e onde ocorre a luta entre desejos contraditórios e a luta entre o desejo e a biologia. A experiência originária de satisfação completa que não ocorreu torna-se modelo inalcançável de cumprimento do desejo que visa a repetição dessa satisfação incondicional.
Sujeito impulsionado pelo OutroSe o desejo é o sujeito em falta, há um impulso que o impele para frente associado à pulsão, cuja fonte é a zona erógena, o objeto é contingente e o fim é a satisfação. O desejo se realiza, mas não se satisfaz, pede qualquer demanda, volta a pedir o que foi tirado e, não satisfeito, reabre a pulsão. A pulsão [inconsciente] habita o “Id” (isso) mas não é interior, é o outro que pulsiona o sujeito a seguir avançando norteado pelo traço mnemônico. Os desejos são movidos por significantes e as coisas só estimulam enquanto significantes dos desejos dos outros. O sujeito é lançado no mundo buscando na realidade humanizada pelo discurso. Seu agir é de natureza discursiva capturada pelos significantes e ele cria mercadorias por intermédio da estrutura da linguagem.
Sujeito assujeitadoSe o desejo é condição, ele também é efeito do discurso, mas recalcado antes da aparição da linguagem como função. Assim, o sujeito é sujeitado ao discurso do Outro antes de ser seu autor como mostra o estádio do espelho: faz um no seio do outro.



* Alguns aspectos de "Desenvolvimento ou constituição do sujeito (do desejo)". Em LAJONQUIÈRE, R. De Piaget a Freud: para repensar as aprendizagens. Vozes, Petrópolis, 1993. FEUSP-EDF0294/201602 - prof. Douglas Emiliano Batista.
[1] conforme nota de aula de 26/09 o estádio do espelho é um conceito lacaniano.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Filosofia no Brasil: presa no passado e na primazia do ser que engessa a ação*

Para Janine, haveria um privilégio da leitura estruturada para estudar a história da filosofia já desde os anos 60 que, segundo Porchat, teria travado o debate filosófico. Haveria uma renúncia à filosofia, por um lado instrumental, buscando a interpretação rigorosa e segura do texto e por outro com relação ao conteúdo, tratando a filosofia como patrimônio inspirador que não muda o mundo. Para Janine, a filosofia deveria se refazer a partir de um choque com o virtual e a globalização, temas atuais. Ao invés da leitura estrutural dos escritos de Hobbes do século XVII, deveriam ser abordados os problemas políticos de hoje, como fazem os alemães que discutem a União Europeia. Segundo Janine, no Brasil a ágora seria infecunda já que as ideias novas apareceriam apenas nas teses acadêmicas. Então, pesquisar no Brasil se resume a uma leitura dos clássicos. Se os filósofos europeus debatem suas questões políticas, os filósofos latinos não debatem o Mercosul, não se debate o espaço público em termos filosóficos.
Janine acrescenta que a comunidade filosófica dialoga muito pouco: busca-se a interpretação do pensador sem mediação, ignorando-se o que foi escrito sobre ele. A tradição é vista sob um aspecto negativo (erros) e não positivo (acertos) buscando-se demonstrar a coerência interna do texto sem discutir os parti pris do método estrutural e sem explicar o contraditório da obra[1]. No que tange à filosofia política, procura-se lê-la pela chave da ontologia ou teoria do conhecimento. A filosofia da ação (seja ética enquanto dever ser ou política enquanto pode ser) fica subordinada ao ser. A história valoriza o conhecimento e o ser em detrimento da política[2].
Não discutimos nossa filosofia: se a Europa enuncia o universal, o Brasil fica restrito ao particular e, dado o desafio, ficamos no conforto do ser e na passividade da ação. Porém, hoje o ser está envolvido na ação e temas como o estudo do genoma abrem as possibilidades de escolha ou a informática que vai da res ao virtus trazendo novas formas de decisão e capacidades de ação.
Janine então aponta e comenta três pontos falhos do que é feito em filosofia aqui no Brasil: a subordinação da ação ao ser, a pressuposição de coerência no conflito da obra e a desconsideração da prioridade do autor em relação a sua obra. Ao substituir o conflito pela coerência, há um apagamento das diferenças e, ao se presar a leitura estrutural e lenta desqualifica-se uma leitura apressada que poderia ser vista como uma vertente de guerrilha[3]. A filosofia acadêmica desqualifica o adversário como defendendo o senso comum e, na lentidão da leitura, perde o pé da ação e pela linguagem compensa-se o fracasso do real. De fato, esconde-se aí a dificuldade do brasileiro de tratar do conflito escondendo-se em uma aparente harmonia. Recorrendo-se à história, evita-se o debate.
Também não se segue a opção do autor ou suas prioridades, elas são desqualificadas[4]. Porque preferimos “engessar a ação e dar primazia ao ser”, mantendo a nossa zona de conforto acomodada na história. Janine conclui apontando que todas essas questões estariam nos mostrando que estamos distantes da filosofia e essa falta de familiaridade nos impede de discutir nossos grandes temas da atualidade e criar o novo.


* Principais aspectos de Pode o Brasil renunciar a Filosofar?, Renato Janine em "A Filosofia entre nós". Indicação de FEUSP-EDM0424/201602 (prof. Paulo Henrique Fernandes Silveira).
[1] Embora possa haver uma aparente contradição entre textos de Rousseau, é possível procurar uma gestalt que de conta das bifurcações de seu pensamento.
[2] A frente falará Janine de Locke que não é estudado por sua política que funda as bases do liberalismo, muito mais pelo empirismo.
[3] Janine cita os aforismos de Nietzsche como trecho breve de uma guerrilha do conceito.
[4] Vide Hobbes que preferia a física à política.

domingo, 18 de setembro de 2016

Muitos domingos

Hoje é domingo e foram necessários muitos domingos para que existisse um Domingos, Montagner. Porém, Santos dos Anjos foi forjado de segunda a sábado, em nossos corpos e almas. A televisão nos apresentou um Domingos que não é o Domingos real, mas um Domingos que imaginamos, um Domingos palhaço, alegre, um Domingos querido. Mas há um Domingos estigmatizado e realizado em Santo dos Anjos, que conhecemos. E Santo dos Anjos é o homem simples, homem da terra que vive seus conflitos e procura justiça.
Santo dos Anjos é de Grotas e quase morreu após um atentado, mas o místico Velho Chico, os encantados e Terê o salvaram. Terê sofreu muito, lutou e os encantados a socorreram porque socorreram Santo. Camila sofreu muito, lutou, mas os encantados quiseram Domingos. E Camila, que conhece Domingos, agora vive uma realidade em que só pode atingir a imagem de Domingos, Domingos encantado.
Porque Camila e Domingos celebraram com o São Francisco uma passagem única: a passagem de Domingos. Essa passagem não é triste, é a passagem que a nós todos espera. Os encantados do nosso mundo, que é uma imagem do real, desta feita, quiseram Domingos como protetor do São Francisco e ele para lá foi, aceitando o desafio. Mas os encantados do mundo real imagético nos deixaram Santo, que ama o Velho Chico, ama Terê e a vida. O Gaiola Encantada passou e não carregou Santo, mas carregou Domingos, que lá está, feliz. Santo dos Anjos, é forte e guerreiro e sua luta não se acaba, ele estará para sempre conosco. E Domingos é Santo, dos Anjos.

sábado, 17 de setembro de 2016

Discurso laureado

[Na festa de fim de ano da empresa, após receber o prêmio no palco, com o microfone na mão e perante os colegas]
"Eu gostaria de agradecer à empresa pelo reconhecimento do meu trabalho, do nosso trabalho. Vocês sabem, nós somos fornecedores e o cliente espera muito de nós, o cliente espera tudo de nós. E nós temos os nossos fornecedores também, e cobramos muito deles. Vocês sabem o quanto os pressionamos, mas isso faz parte do jogo. O nosso trabalho, que serve ao mercado, demanda muita concentração e pouco riso, demanda um sacrifício diário em prol da empresa e, mais ainda, do cliente.
E nos esforçamos, colegas. Quantas reuniões, quantas decisões, quanta responsabilidade. Quantos dias trabalhando até mais tarde, quantas noites preocupados afugentando o sono, quantos compromissos e viagens desmarcados ou bruscamente interrompidos. Quantas vezes o telefone toca nos alertando que temos um dever a ser cumprido e que descansaremos depois, se possível. O cliente sabe, colegas, que resolveremos o problema. O cliente é o paciente febril e nós somos o médico confortador.
Mas, antes de sermos profissionais, antes de sermos colegas, somos homens. E o ser humano erra. Primeiramente, porque não é Deus e, segundamente, quando tenta ser Deus. Nós erramos e aprendemos com erros, somos seres falíveis. E, se somos homens fora da empresa, somos empregados dentro dela, ainda que homens, muito embora não vistos como tal. Dada a pressão e o nosso comprometimento para suportá-la, acredito, colegas, que se um empregado da empresa erra, ele NUNCA erra sozinho, só se premeditada e intencionalmente. Caso contrário, ele erra porque o vizinho de mesa o deixou errar. Ele erra porque o time o deixou errar, o gerente, o diretor e o presidente. Enfim, ele erra porque a empresa o deixou errar, porque há, sim, um inconsciente produtivo a serviço da empresa e que se serve de suas malezas. Então, colegas, por mais que a empresa nos sustente financeiramente, seu maior dever conosco é nos proteger das intempéries e arroubos do cliente e das reviravoltas do mercado. O local de trabalho é nosso segundo lar e a empresa é nossa mãe e nosso pai, é nossa segunda família.
É por isso, caros colegas, que me sinto honrado pelo prêmio recebido, mas não pelo seu valor, mas pela sua garantia. Premiado, obviamente firmo um compromisso com a empresa, mas ela firma comigo. Porque a empresa é, ao mesmo tempo, um ente abstrato, mas é todos nós, somos todos nós. E, se porventura algum dia esse vínculo se quebrar por alguma artimanha autoritária e desleal desse ente, saibam, colegas, tal ente, o abstrato, não existirá mais. Se a empresa é o corpo de funcionários e cada funcionário é um órgão da empresa, ela jamais poderá cortar um órgão seu inadvertidamente, porque o sangue que vier a escorrer deixará uma sequela irremediável para ambos e para o terceiro: o cliente que nos faz."

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

O que é estrutural

Dizer que algo é estrutural (veja aqui conceituação do racismo estrutural) é dizer que faz parte do humano e constitui o sujeito (e isso não é marxista e tampouco de esquerda, embora pudéssemos pensar em uma análise estruturalista do materialismo histórico). O sujeito está sempre inserido em relações dadas de antemão por estruturas (o movimento estruturalista pode ser explorado aqui).
Mas não é isso que queremos abordar. Gostaríamos de retomar do início e verificar o estrutural pela chave psicanalítica freud-lacaniana[1] de maneira embrionária ainda (não trataremos do desejo). O campo do humano é o campo do simbólico, da linguagem. Porém, ao nascermos e enquanto bebês, não nos desenvolvemos em um percurso evolutivo biológico, mas nos constituímos a partir do discurso dos outros: da mãe, do pai, etc. Já há um discurso estabelecido em um campo simbólico historicamente constituído e é ele que nos constitui e por ele que adquirimos novos conhecimentos que nada mais são do que rearranjos dos conhecimentos já estabelecidos e encarnados nos outros.
A psicanálise lacaniana divide a psique no simbólico, imaginário, e real. O simbólico como estamos destacando é o campo que recorta o real e que permite sua significação pelo discurso e também a intersubjetividade. Esse é o campo humano que é caracterizado como o Outro. O real não é acessível, o real é o resto, a sobra do discurso. Isso porque não há uma natureza humana; ela foi perdida na constituição do sujeito pelo discurso que cindiu a possibilidade do encontro com objetos puros, físicos. A partir do discurso então construímos objetos imaginários, formamos uma imagem do real que não é o real.
Mas o simbólico é estrutural porque ele provém do inconsciente. Freud cindiu a psique no consciente e no inconsciente (algumas lições podem ser consultadas aqui). Porém, o consciente é sobre determinado pelo inconsciente. O consciente forja um EU que não passa de uma ilusão que tenta agregar nossas representações. O inconsciente é o lugar dos desejos reprimidos, lugar de convivência entre o contraditório que foi recalcado pelo sujeito consciente. Daí que as nossas ações, nosso discurso, os sonhos são pautados pela imprevisibilidade da estrutura inconsciente que está por detrás não somente do conhecimento público compartilhado, mas também da própria constituição do sujeito que não é um organismo vivo, mas um corpo objetivado pelo simbólico.
Portanto, dizer que algo é estrutural é dizer que esse algo é o que nos constitui e está constituído no Outro. O estrutural é a linguagem que nos torna humanos. O estrutural é o inconsciente que pauta o consciente. O sujeito se assujeita no discurso do outro e assim é constituído. Diante disso[2], podemos concluir que estamos de posse de um quadro estrutural dado, abrangente, aculturado e que vitimiza quem chega. Mas também significa que temos que nos apropriar desse discurso para formamos um discurso nosso que vai constituir os outros, recíproca e inversamente. Significa que a luta se dá pela linguagem, no campo do humano e que só poderemos superar o estrutural partindo de um esforço muito grande de readequação dos significantes que circulam nas cadeias discursivas mais conservadoras.




[1] Baseado em FEUSP-EDF0294/201602 (prof. Douglas Emiliano Batista) e Lajonquière (de Piaget a Freud).
[2] Aqui já é nossa argumentação.

domingo, 4 de setembro de 2016

Qual a classe morfológica da filosofia? Verbo ou substantivo?*


Bolzani argumenta que o emprego do termo filosofia se dá de diversas formas e muitas vezes pensa-se uma coisa quando de fato é outra. Distinguem-se, então, filosofia como algo que suscita equívocos e "filosofar" como a autêntica expressão necessária para a filosofia. Para ele, a filosofia é tratada, atualmente pelo senso comum, como algo que versa sobre quase tudo, mas não serve para nada. Isso porque se revela um sentido distorcido quando é vista como entidade: a Filosofia. A filosofia não é algo pronto para uso e que vai trazer respostas para os nossos problemas atendendo ao ideal de consumo imediato que hoje vigora. Isso posto, qual o significado autêntico da filosofia? Para Bolzani, seria o de filosofar como atitude (o verbo) em oposição ao sentido passivo de filosofia (o substantivo).
Bolzani nos propõe que a filosofia pode ser uma forma de vida, assim como fez Sócrates, que morreu pela sua filosofia e fundou a racionalidade ocidental unindo teoria e prática. Ele instaura o conflito entre o livre pensar e o poder instituído e, em nome da sua verdade e respeitando as leis, manteve-se convicto e não aceitou a fuga e nem a redução de sua pena capital. Diante disso, percebemos que a atitude socrática era a atividade de interrogação, porque Sócrates sabia que nada sabia. Se o filósofo pregou a vida frugal do corpo para fortalecer a alma, na morte manteve o questionamento de não saber o que se sucederia dali para frente. Bolzani afirma que, desde então, ele é o paradigma, modelo de filósofo.
A primeira atitude do filosofar socrático é a aporia, a dúvida (espanto de admiração ou perturbação) que se segue pela investigação, o exame, o desconfiar de verdades estabelecidas, mas que, a partir de razões, pode fundamentar um caminho que seja universal e valha para todos. A pergunta “O que é?” pretende verificar se a resposta atende a todos os casos possíveis, se pode ser generalizada e proporcionar um saber totalizante e que traga o bem e a felicidade. E o filósofo não quer somente descobrir a verdade para si, mas para os outros. Então, o filosofar é uma abertura para a investigação de assuntos que sobre eles nada sabemos e que coloca em choque nosso conhecimento com um novo. Seguindo essa prescrição, séculos depois, Descartes estabelece como método suspender todos os conhecimentos adquiridos e colocá-los em dúvida para verificar o que deles podemos conhecer. E a dúvida se torna o meio de filosofar: devemos verificar as opiniões dos outros e as nossas para saber se são verdades ou meros preconceitos, exercendo o filosofar com paciência e nem sempre procedendo para frente, senão que recuando e repensando a direção a seguir. Bolzani ressalta que o filosofar é atividade com dupla exigência: solitária para consigo, mas solidária para com os outros, na vida pública, o que leva à cidadania. O ensino de filosofia não deve ser conjunto de conteúdos prontos, mas atitude investigante e reflexão crítica. Segundo ele: “Não se trata, portanto, de culto à filosofia: bem ao contrário, trata-se de cultivo do filosofar”. Filosofar é um trabalho do pensamento incessante e que não se deve basear na nossa interioridade e verdades, mas que deve trazer consigo a incerteza que a dúvida impõe.
Outro aspecto fundamental do filosofar que Bolzani nos indica é o olhar para a história e seus 25 séculos de filosofia para pensar como as inquietações são tratadas em cada tempo e para se confirmar que não começamos os questionamentos agora, pois já há um caminho iniciado. Isso porque, tal como “parece” ocorrer na ciência, não há um processo acumulativo na filosofia e a última seria a mais atualizada e aceita sem contestação. Para Bolzani, seria possível defender uma “tese” do progresso em filosofia e enumerar “descobertas” dos filósofos anteriores, mas sempre há retomadas de conceitos e interpretações apropriadas em outras filosofias. Nesse sentido, não haveria um filosofar livre, autônomo e original que se desse ex abrupta, geração espontânea sem se considerar as bases fundadas pelas filosofias anteriores e com elas dialogar. Porque, conforme bem coloca Bolzani, liberdade não é transgredir o que está estabelecido, mas agir sabendo por que fazemos determinadas coisas através de razões bem avaliadas. Ele prossegue acrescentando que a criação de conceitos pelo filósofo só se dá a partir das propostas conceituais da tradição, compreendo filosofias e diferentes maneiras de se operar com a linguagem e com o mundo. Somente “ruminando” os textos filosóficos e nos permitindo experienciá-los como verdadeiros conseguriemos procurar novas formulações e respostas. Ainda, o filosofar também não é a escolha de uma filosofia para defendê-la, mas a avaliação de diferentes filosofias que proporcionem um processo formador.
Bolzani conclui enfatizando que fez o elogio do filosofar (e não da Filosofia) como procedimento difícil e longo, que se preocupa com a utilização das palavras e seu uso justo e ético em benefício dos homens, referindo-se aqui a Paul Ricoeur. É pelo filosofar que contrastamos o imediatismo da tecnologia e velocidade da informação de nosso tempo com aquele espanto de admiração e perturbação que só a dúvida filosófica nos proporciona.



* Sobre filosofia e filosofar. Roberto Bolzani Filho. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/62569.

sábado, 3 de setembro de 2016

Cinco lições de psicanálise*

Primeira Lição (estudos sobre a histeria): Parece um quadro grave fatal, mas é histeria, desde os gregos. E, na época de Freud, o médico não sabe como tratar e despreza o histérico. Há o uso da hipnose para reproduzir estados de ausência. A paciente de Breuer tinha sede e não bebia água e ele descobriu que os sintomas se originavam de experiências emocionais, traumas psíquicos a partir de um tratamento reconstituindo cenas[1]. Os histéricos sofrem de reminiscências. São símbolos traumáticos, como os símbolos de uma cidade, que fazem com que neuróticos e histéricos se prendam ao passado não vivenciando o presente e a realidade[2]. Há então que se considerar o elemento de subjugar fortes emoções que são descarregadas na cura (tem que ser assim). Conversão histérica é a inibição somática como sintoma físico do caso. Expressão das emoções é a parte da excitação psíquica que vai para inervação somática. Além disso, o doente tem vários estados mentais que podem ser agrupados e separados ou trazidos pela hipnose (ex. normal, confusão, alteração de caráter), agrupamentos independentes, e a consciência oscila entre consciente e inconsciente. Inconsciente (da hipnose) pode influenciar no consciente... A teoria dos estados hipnoides de Breuer onde aparecem sintomas histéricos já é uma teoria abandonada em 1909.
Segunda lição (psicanálise): Se, por um lado, a primeira doente de Breuer foi curada pelo tratamento catártico a partir dos mecanismos psíquicos dos fenômenos histéricos, na França concebia-se que a dissociação psíquica era resultado da incapacidade de síntese mental do doente. Freud via de outra forma a dissociação histérica[3] e, a despeito da hipnose que ele passa a considerar processo enfadonho e difícil de ser obtido, senão mítico, busca o procedimento catártico independente dela, com o doente em estado normal. Freud incitava o doente a revelar a cena patogênica originária que estaria relacionada ao sintoma, colocando a mão na fronte dele. Se a lembrança não havia se perdido, havia uma força que a mantinha no estado inconsciente. O processo de repressão se baseia em forças de resistência que agem tanto para expulsar da consciência o acidente patogênico como para não permitir que ele volte à consciência. O que causava essa repressão era o surgimento de um desejo violento incompatível com a ética do sujeito e, do conflito entre ego e ideia, essa era expulsa da consciência por essas forças repressoras que evitavam o desprazer de tal desejo. O desejo reprimido no inconsciente procura um substituto, ou sintoma, que tenta voltar à consciência e é protegido pelo ego para evitar o desprazer, causando grande sofrimento. Reprime-se o desejo e colocam-se resistências para que o incômodo não se repita, ou seja, a psique joga para o inconsciente o problema, ocorrendo a divisão psíquica com a consciência e o conflito dessas forças mentais contrárias. O eu se esforça para se defender de recordações penosas[4]. Caberia ao médico, na terapia psicanalítica da neurose, acomodar aquele desejo no quadro consciente do paciente restituindo o que fora reprimido pela quebra das resistências, resolvendo-se o conflito psíquico que era protegido pela repressão. No final das contas, ou se aceita o desejo ou o controla.
Terceira Lição (recursos técnicos): Nem sempre é certo que o primeiro pensamento traz a inadvertida lembrança, apareciam pensamentos inexatos e lamento do abandono do hipnotismo. Pelo conflito do doente em trazer o esquecido e a resistência, a ideia trazida por ele era um sintoma, substituição da ideia procurada e poderia seguir-se por ela. Situação análoga é o chiste, a pilhéria. Ela também é uma alusão, substituto do que está no íntimo, algo o impede de dizer francamente. Produz uma ideia de substituição distorcida. Escola de Zurique, Bleuler, Jung, conceito de complexo: elementos ideacionais interdependentes, associações livres por onde se pode buscar o complexo reprimido. Processo fastidioso de descobrir o elemento reprimido. Esperar ideias livres aparecerem. Pedir ao paciente para expor tudo. O doente rejeita o material como insignificante por causa da resistência, experiência da associação usada por Jung. Além da divagação, há dois outros recursos técnicos para sondar o inconsciente: a interpretação dos sonhos e o estudo dos atos e lapsos causais. A interpretação dos sonhos é a estrada real para o conhecimento do inconsciente, base da psicanálise. Parece alienação, mas é compatível com a mais perfeita saúde. Psiquiatras contra o método. Desprezamos os sonhos como o doente despreza as ideias soltas despertas pelo psicanalista. Nas criancinhas e nos adultos os sonhos visam realizar os desejos não satisfeitos no dia do sonho. Embora os sonhos pareçam ininteligíveis pelas forças de resistência de defesa do ego, há neles um conteúdo latente existente no inconsciente. Não reconhecemos o sentido dos sonhos como o histérico não reconhece a correlação dos seus sintomas. A investigação busca o nexo entre o conteúdo latente e o manifesto, que visa à realização dos desejos não satisfeitos. A elaboração onírica é o processo que permite estudar os dois processos psíquicos que se passam no sonho, consciente e inconsciente, divisão semelhante à deformação que transforma em sintomas os complexos cuja repressão fracassou. No sonho do adulto também se esconde a criança, trazendo suas diferentes disposições. Pela análise dos sonhos também se descobre a representação de complexos sexuais pelo inconsciente por trás de nossos mitos e lendas. Mesmo os pesadelos podem ser explicados como uma reação do ego contra desejos reprimidos violentamente, a ansiedade. O terceiro recurso técnico é a interpretação de atos falhos, lapsos e atrapalhações corriqueiras que exprimem impulsos e intenções que deveriam ficar ocultos à consciência e testemunham a existência da repressão e da substituição dos desejos inconscientes. Por meio dessas técnicas, então, é possível fazer com que a consciência chegue ao material psíquico patogênico que causa os padecimentos da produção de sintomas de substituição.
Quarta Lição (sexualidade infantil): a psicanálise revela uma estreita associação entre os sintomas mórbidos e a vida erótica do doente que influencia nos fenômenos de repressão e formação de substitutivos ressaltando a importância da etiologia sexual no tratamento. Se há dificuldades para manifestação da intimidade sexual, o paciente deve estar a vontade para formar juízo do problema. O exame psicanalítico mostra que é preciso retroceder até a infância para trazer de volta a consciência os desejos reprimidos que expliquem os traumatismos atuais, como no caso dos sonhos, revelando que há, sim, instintos e atividade sexual infantil. Não é na adolescência, as crianças já sentem emoções intensas e se enamoram na tenra idade dos três anos, instintos complexos desmembrados em componentes de origem diversa. A criança se vale de um autoerotismo e busca sensações agradáveis em partes do corpo excitáveis, as zonas erógenas, se utiliza da masturbação que pode carregar pela vida e não associa o sexo à procriação, como os adultos.  Revela-se na criança, também, componentes da libido que pressupõe objeto ou pessoa estranha e podem ser instintos ativos (será a sede de saber) e passivos (será arte e teatro) como os relacionados ao sofrimento: o sadismo e o masoquismo. Mas, se na criança a conquista do gozo se dá de maneira desordenada por impulsos independentes, ela vai se condensar na zona genital como preparação para o ato sexual de propagação da espécie e repelindo o autoerotismo pela satisfação na pessoa amada, formando o caráter sexual definitivo ao final da puberdade. Porém, nesse processo, instintos são reprimidos na vida sexual pela educação ou a moral, como os prazeres coprófilos[5]. E o desenvolvimento da função sexual pode apresentar incidentes e gerar distúrbios: impulsos parciais que não se submetem à soberania da zona genital são transformados em perversão que substitui a vida sexual normal; o autoerotismo pode não ser superado; pode conservar-se a equivalência primitiva dos sexos levando à homossexualidade. Como as perversões mantêm os complexos e formam os sintomas, as neuroses, por outro lado, firmam-se no inconsciente apesar da repressão.  Então, a perversão se liga à neurose e a vida sexual somática da criança, mas também psíquica. A primitiva escolha da criança pelo objeto de desejos eróticos dirige-se primeiramente aos genitores que, nesse sentido, estimulam as crianças: se a mãe tem preferência pelo filho e o pai pela filha, aquele reage desejando o lugar do pai, assim como a menina, gerando sentimentos de hostilidade que serão reprimidos, mas continuarão a agir no inconsciente como complexo nuclear de cada neurose[6]. Antes do complexo ser reprimido a criança ainda formula diversas teorias sexuais infantis que não se acabam por falta de conhecimento e podem interferir na formação do caráter da criança e na neurose. O modelo usado na primeira escolha amorosa se referindo aos pais será usado para pessoas estranhas na escolha definitiva por isso a criança deve se desprender dos pais e cumprir sua função social. Livre da repressão que seleciona os impulsos parciais da vida sexual e da repressão dos pais, deve-se priorizar o trabalho educativo que pode ser realizado pelo tratamento psicanalítico para vencer os resíduos infantis.
Quinta Lição (a cura): Sendo os componentes eróticos instintivos os sintomas das neuroses, nota-se que os indivíduos se refugiam na moléstia pela falta de satisfação sexual na realidade, buscando satisfação substitutiva. A cura passa por retirar do ego do doente a repressão e verificar se a realidade oferece satisfação melhor que o estado patológico que traz o prazer imediato que remonta a satisfação causada na infância, seja temporalmente a libido retornando ao passado e formalmente usando os meios psíquicos de outrora. Se a vida pressiona e reprime e a realidade é insatisfatória, busca-se a fantasia para realização dos desejos e obtenção do gozo. A neurose passa por essa regressão à vida infantil para reavivar os desejos, embora pessoas com dotes artísticos transformem sintomas em criações artísticas que podem reatar a ligação com a realidade. Os mesmos conteúdos psíquicos dos neuróticos encontram-se nos sãos, porém em quantidade ou proporção diferentes. Mas é no processo de transferência, que o paciente estabelece com o médico e que provém das fantasias tornadas inconscientes, que o doente se dá conta dos sentimentos sexuais que aí se elevam e se transformam em outros produtos psíquicos. Opondo-se a psicanálise, teme-se que os instintos sexuais reprimidos ao serem trazidos à consciência possam entrar em conflito com a moral do sujeito e causar mais sofrimentos, porém a destruição do caráter civilizado pelos impulsos liberados da repressão é impossível, já que era inconscientemente que eles se manifestavam com mais força. Tais desejos se tornam inofensivos à vida do indivíduo seja pela ação mental de sentimentos contrários dominando o que lhe é hostil; seja fazendo utilização conveniente dos impulsos inconscientes no processo de sublimação, permutando os fins sexuais por outros de maior valor social; seja satisfazendo parte dos desejos libidinais reprimidos já que a civilização não pode negar a felicidade individual e nem nos fazer desviar o instinto sexual de sua finalidade própria.


Pronunciadas por Ocasião das Comemorações do Vigésimo Aniversário da Fundação da CLARK UNIVERSITY, WORCESTER, MASSACHUSETTS. Freud, Setembro de 1909. Tradução do professor Professor Durval Marcondes. Em: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, volume XI.
[1] Método semiótico e terapêutico de Breuer.
[2] Fixação anormal ao passado.
[3] Divisão da consciência.
[4] Então, a hipnose utilizada por Breuer permitiria superar a resistência e ter acesso a esse setor psíquico.
[5] Prazeres que se relacionam com excrementos.
[6] Referências ao mito do rei Édipo e Hamlet.

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

História e educação para surdos: oralismo, comunicação total e bilinguismo*

Quer se desenvolver as capacidades dos surdos, mas há dificuldades e limitações**.
Até Aristóteles considerava que só se podia aprender pelo discurso. Na antiguidade, os surdos não tinham direitos legais e, mais tarde, sua alma não era considerada imortal pela igreja. Santo Agostinho diria que a falta de ouvido impede a entrada da fé. Tratados de imbecis na idade média, a partir do século XVI tenta-se ensinar a fala para a garantia de direitos (porém restrito a preceptores contratados por famílias abastadas) e se ganha força a ideia de que o surdo pode ser capaz de tomar suas próprias decisões. 
Mas, é no século XVIII que a comunicação dos surdos se divide entre oralista e gestualista. Na França, De L'Epée valoriza a gestualidade e cria uma escola para ensino do método visual que possibilitaria ao surdo obter conhecimento, ler e escrever, permitindo o crescimento dos surdos nas esferas sociais, defendendo a comunicação entre eles e possibilitando o conhecimento da cultura. Já o método alemão fundado por Heinicke se baseava na oralidade pretendendo que os surdos agissem como pessoas normais e falassem, assegurando que só a oralidade propiciava o pensamento. O oralismo termina por se espalhar pela Europa e no Congresso de Milão, em 1880, ele triunfa como caminho para socialização dos surdos e o método visual é praticamente banido. 
A polaridade do método chega aos EUA com Clerc, defensor da língua de sinais, que via a surdez como "diferença" tratada pelo modelo social com cultura de aceitação (modelo bilíngue) e Graham Bell, defensor do oralismo, que via a surdez como "desvio" tratado pelo modelo médico num quadro de incapacidade física (modelo monolíngue). Mas, o oralismo vigora sem muitos avanços e com muitas dificuldades na educação dos surdos até a década de 1950 quando surgem as próteses que acenavam com a possibilidade de permitir que os surdos ouvissem e falassem. 
A língua de sinais ganha força a partir dos anos 60 nos EUA como língua natural capaz de permitir a comunicação total, o desenvolvimento social e o acesso das pessoas surdas. Mas, com o avanço tecnológico, volta-se a defender o oralismo e instrumentos que permitam a comunicação. Entretanto, críticas vêm dos EUA mostrando que o ensino oral é descontextualizado de situações naturais de comunicação e que a leitura labial é impossível para crianças pequenas. O método gestual se mantém a margem até ressurgir nos EUA, na década de 70, assemelhando a comunicação visual com a falada, a partir do estudo da Língua de Sinais Americana: fonemas produzem palavras e queremas produzem sinais. 
A proposta de comunicação total que aparece nos anos 60 visa usar todos os mecanismos de comunicação, deixando a opção livre para os surdos. Porém, ao não privilegiar os sinais, eles não são vistos como linguagem, mas apenas um acessório, embora permitindo o acesso aos sinais pelos surdos. Paralelamente, ganha força a educação bilíngue que considera a linguagem de sinais oficial e natural dos surdos e a linguagem oral em segundo plano***. Ela permite o desenvolvimento da criança pela linguagem de sinais e futura comunicação com os ouvintes. Porém, mesmo nos EUA que possuem a língua de sinais mais avançada e estudada, ainda prevalece o modelo de comunicação total. No Brasil e demais países, as experiências com educação bilíngue são restritas, aqui tendendo a diminuir o oralismo e crescer a comunicação total que permitiu a entrada dos sinais em sala de aula. Do que se conclui que o bilinguismo, o oralismo e a comunicação total ainda coexistem em diversos países. No Brasil, embora a primeira escola de surdos-mudos tenha sido fundada em 1850, a comunicação entre surdos pela linguagem dos sinais só se torna lei depois dos anos 2000 e, então, passa a ser ensinada a Libras que pode propiciar a difusão da importância dos estudos surdos e de Libras. 
Libras: língua natural utilizada nos centros urbanos e reconhecida por lei.
______
Do texto: “Um pouco da história das diferentes abordagens na educação dos Surdos”. Cristina B.F. de Lacerda.  Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-32621998000300007
(+) Primeira aula de Libras EAD, Prof. Responsável: Felipe Venâncio Barbosa.
** Se os surdos sempre existiram e até pouco tempo eram considerados surdos-mudos por incapacidade de falar, na verdade podem falar se submetidos a técnicas.
*** A língua do grupo ouvinte majoritário.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

É preciso fazer algo pelo mundo?

Nossa questão aqui é: basta viver ou é preciso fazer algo pelo mundo? Mais precisamente: é preciso dar alguma contribuição política para algum tipo de formação educacional ou de consciência? Nesse mundo “aparecemos” meio sem saber como e nem porque, vamos vivendo como podemos, crescemos e quando nos damos conta há uma vida em andamento: toda uma série de relacionamentos sociais, família, esporte, trabalho, lazer, emoções, desejos, o peso psíquico e a condição física. Tudo isso nos impõe compromissos e é a soma de todos esses fatores que concorrem para nosso movimento e ação. Diz-se, então, que o ser humano é um ser gregário e o pode ser na alegria e na tristeza, compartilhando sentimentos e sofrimentos, mas abrindo a possibilidade de atuação política que pode se confundir com necessidade.
Estamos amarrados no viver: com a sociedade, mas sozinhos. Somos influenciados de diversas formas e precisamos dar respostas o tempo todo. Com o mundo cada vez mais interconectado e avançado tecnologicamente, a partir da quantidade de informações e estímulos que recebemos, somos levados a responder de uma forma ou de outra, mas quase sempre seguindo tendências e nos adequando ao padrão vigente e muitas vezes nos calando. O tomo lá da cá, a roda da vida nos move e nas situações em que somos colocados tentamos sair do outro lado da forma que der e evitando o desgaste. É suficiente? Há mais a ser feito?
Fazer algo pelo mundo, politicamente, procurar uma formação para si e para os outros é acreditar que algo muda em nós e nos outros. É preciso acreditar que cada um não é uma célula individual e fechada, uma mônada, mas que há abertura para mudança, que a estrutura racional, psíquica e emocional individual sofre alteração e se transforma. É preciso acreditar que cada um pode ser impactado e que sua intencionalidade pode ser afetada em busca de novos motivos e ideal. É preciso acreditar que a comunicação entre nós viabiliza essa mudança e que os ruídos externos e que a capa protetora psicofísica não é suficiente o bastante para impedir esse acesso.
Mas, mais do que isso, é preciso colocar à disposição um arsenal ideológico que proponha um algo melhor, em algum sentido. E que mais do que manter é melhor crescer e que a mudança é benéfica. Sem nos valermos do conflito de ideias, sem partir para uma verdadeira batalha de argumentos, não poderemos transformar algo e nem sermos transformados. Sair da banalidade e do senso comum é tarefa árdua. A busca pela educação, pela nossa formação deve ser constante e superar enxurrada de aparências e descrenças. 

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Liberdade Política

Existe uma liberdade política e uma liberdade da vontade[1]. A última é aquela baseada na racionalidade (ou falta dela) e é teórica, enquanto parte de uma possibilidade do conhecimento e da ação e mesmo da rastreabilidade ou prioridade de nossas faculdades sensíveis ou cerebrais/mentais. Por isso, ela requer uma teoria científica (ou filosófica) desde que bem embasada. A teoria kantiana da razão teórica pura permitiu tal liberdade, mas que virou lei para a prática. Um crítico kantiano, Schopenhauer, rebateu argumentando que essa lei carece de fundamento e o que nos move são leis motivacionais. Testes laboratoriais recentes mostraram que a nossa ação pode ser fruto de uma vontade inconsciente, que apareceria depois do fato, como resultado. De todo modo, há ainda um campo amplo favorável à autonomia. Tudo isso é muito positivo e promete resultado, porém gostaríamos de tratar da liberdade política, aquela dos efeitos e da práxis. 
Essa liberdade concreta, determinada por forças concorrentes aparentes, reais, inconscientes ou ocultas, é mola mestra no dia a dia e é ela que permite a convivência humana e o desenvolvimento de uma sociedade mais justa. Ou seja, há fatores interferindo na nossa ação e cada ação nossa interfere nas dos demais. Diante disso, o pilar dessa responsabilidade é o respeito para com o outro para que ele possa realizar livre de coação. A brincadeira característica da conduta cultural brasileira, o sorriso e a piada, resumindo: a zoeira tem limite difícil de ser calculado. O homem camaleão de si e do outro age buscando um fim; age por um comportamento arraigado para a ação ou paralisia, mas a última não podemos tolerar.
Vis a vis, unanimemente o mundo é capitalista e por trás do sorriso e do aperto de mão há uma luta pela sobrevivência, pela preservação e pelo conforto. A estrutura capitalista tão presente e invisível nos oprime (ação que não vemos) e nos sacia (efeito do consumo e do poder aquisitivo). Então, o ser humano, mambembe, se equilibra entre um bate e assopra e procura, ao recostar a cabeça no travesseiro, ter a consciência limpa. Ele pode ter, mas sempre haverá uma pedra no sapato: o mundo obviamente injusto que não lutamos para mudar e que nos esforçamos por manter. 



[1] Conforme bem destacou o professor Osvaldo Pessoa em sua aula pública no CAF.