terça-feira, 26 de setembro de 2023

Filosofia da linguagem tripartite

A abordagem da filosofia da linguagem tripartite é aquela tradicionalíssima, conforme esquema a seguir. Há uma comunicação entre falantes e ouvintes e, em grande parte dos casos, eles se compreendem. Ora, obviamente, isso não significa que concordam entre si. Além disso, até que ponto eles se compreendem é coisa duvidosa: eles podem compreender frases, mas não se compreenderem de um ponto de vista subjetivo.

Esse esquema de compreensão se basearia ou pelo significado ou pela referência ou por ambos. Isso tudo é coisa que estamos investigando, mas em linhas gerais teríamos um mundo referido e significados por aí.

Esquema triparte da filosofia da linguagem

sábado, 23 de setembro de 2023

Gavagai

Observações iniciais informais sobre a indeterminação da tradução e congêneres[i]

O experimento da indeterminação da tradução da Quine é muito importante porque já quebra barreiras dogmáticas de abordagens nascituras da Filosofia da Linguagem, especialmente visões oriundas do Círculo de Viena. Imaginemos um linguista que vai a campo criar um manual de tradução da linguagem usada por uma tribo indígena isolada e ele faz uma primeira observação de um falante que aponta para um coelho e diz para seu acompanhante: “Gavagai!”. O linguista anota essa cena e se pergunta, sobre gavagai: “Seria o coelho ou uma parte do coelho? Seria comida, almoço? Seria animal?”.

Esse breve excerto serve para mostrar que o trabalho de rotulagem das coisas pela linguagem depende do contexto e é arbitrário, ou seja, ele é relativo ao que ocorre. Assim, o manual criado pelo linguista deverá ser construído mediante as observações empíricas e serve como uma forma de refutar possíveis enunciados puramente analíticos, isto é, que são verdadeiros em si, independentemente da experiência. Na realidade, talvez se criem enunciados analíticos, mas eles poderiam ser formados por abstração e a posteriori.

Então, o experimento condiciona a linguagem ao contexto de uso referido, mas ele também mostra que, se um outro linguista que se aventurasse nessa mesma tarefa de confecção do manual, criaria um manual diferente do anterior, em virtude daquelas perguntas iniciais que seriam respondidas de inúmeras formas por inúmeros linguistas. Nesse sentido, a tradução se indetermina pelas inúmeras abordagens que podem a ser construídas pelas diferentes observações empíricas de uso e revela, também, a inescrutabilidade[ii] da referência, já que gavagai poderia ser o coelho ou a perna do coelho. 

Teremos que fazer o escrutínio desse didático livro de Conserva por meio de fichamentos, mas de antemão teremos material para aprofundar em sua denúncia dos dois dogmas do empirismo[iii] e de sua proposta por uma epistemologia que recusa um fundacionalismo e normativismo por meio do behaviorismo e empirismo[iv]. Um ponto interessante é que vai desmistificar o significado como uma entidade abstrata, vai mostrar a não alcançabilidade da referência e recusar a primazia verificacionista de enunciados verdadeiros por meio de uma teoria holística. Ou seja, é demolidor.



[i] Estamos na primeira leitura diagonal de Quine: Linguagem e Epistemologia naturalizada. CONSERVA, José Nilton. Curitiba: Appris, 2019.

[ii] Do que é impossível de ser escrutado, investigado, compreendido; impenetrável, incompreensível, insondável (Oxford Languages and Google).

[iv] Preliminares: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2022/04/a-nossa-teoria-sobre-como-o-mundo-e.html. 

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Por este meio

Uma primeira passagem pela teoria dos atos de fala e familiarização com o vocabulário [i]

A despeito das frases declarativas, pelas quais afirmamos ou desejamos algo, Austin nos chama a atenção para a elocução performativa, que nos permite executar um ato social. São os atos de fala, como “Desculpe” ou “Dobro”, que seguem regras constitutivas, que devem ser obedecidas e regras regulativas, que se não cumpridas levam a um ato infeliz.

Na verdade, para Austin, toda elocução tem um aspecto performativo (força ilocutória) e um conteúdo descritivo ou proposicional. Originalmente, em 1961, ele considerou que frases performativas não descrevem algo ou especificam um fato, ao contrário das frases descritivas, verdadeiras ou falsas.

Ele inaugura a teoria dos atos de fala que são atos sociais como, por exemplo, 1.) “Prometo pagar-lhe as fraldas” e 2.) “Peço desculpas”. Aos proferi-los, estamos executando um ato, como efetivamente prometendo algo ou simplesmente nos desculpando. Mas, 1.) é declarativa, embora não descreva nada, não descreve alguém prometendo, já que simplesmente prometemos. E não é passível de uma condição de verificação pois a elocução não parece ser verdadeira nem falsa. Ela é uma frase declarativa que é factualmente defeituosa, mas que se entrega a outra finalidade.

Para testar a performatividade, Austin criou o chamado critério “por este meio”, isto é, inserir a expressão “por este meio” depois do verbo principal para sublinhar o ato em questão como, exemplificando, em 1.) “Prometo por este meio pagar-te”, ato que se constitui pela própria elocução do orador. No caso das constativas[ii], o ato de dizer não se insere na frase como em 3.) “O gato está por este meio no tapete”.

Se, em geral, o critério permite distinguir entre performativas e constativas, há frases que parecem ser ambas, como 4.) “Declaro que nunca visitei um país comunista”. Aqui, o critério para tê-la como performativa pode ser inserido pois tem-se um ato de fala declarativo. Por outro lado, é descritiva pois declara um ato que pode ser verdadeiro ou falso. Até mesmo a frase 1.) parece ser constativa pois assere que lhe pagarei. Ora, conforme mostra Lycan, isso fez com que Austin percebesse que quase toda elocução tem tanto o aspecto performativo quanto o constativo, qual seja, uma asserção sempre é feita por um ato assertivo com força assertiva.

Há forças ilocutórias que podem ser um juízo, um conselho ou um aviso. Por exemplo, 5.) “Seria muito estúpido comprar mais ações nas Lojas Americanas” encobre o “O meu conselho é que seria muito estúpido...”. Inclusive, uma mesma declarativa pode ter forças ilocutórias distintas como pode ser visto no diálogo 6.) “Se não te despachas com isso, vou-me embora” poderia ter a resposta 7.) “Isso é uma ameaça ou uma promessa?”.

Mesmo as não declarativas, como os modos interrogativo e imperativo, trazem variações de força ilocutória, como: 8.) “Vai no Calixto e pega uma Colorado”, que poderia ser uma diretiva, ordem ou sugestão, variando com as intenções que se queiram ou com relações de poder. Por aí, a distinção entre elocuções performativas e constativas passam a ser entre força ilocutória e conteúdo locutório ou proposição em uma mesma elocução. Os atos ilocutórios podem variar: autorizar, censurar, negar, inquirir, insistir, perdoar, repreender, agradecer, etc.

Ocorre que, além da força ilocutória e do conteúdo locutório, Austin introduz uma terceira característica das elocuções: os atos perlocutórios. Eles são aqueles que, performativos, não passam no critério “por este meio” porque dependem mais do efeito no ouvinte do que da intenção do falante. Alguns deles são: espantar, enganar, distrair e irritar.

Lycan considera que o verificacionismo e a teoria da verdade deixam de fora a força ilocutória por considerar somente o conteúdo proposicional como significado, mas ele considera que a força é, sim, um tipo de significado ilocutório indispensável para a linguagem.

Se os atos de fala são convencionais e suas regras são costumeiramente implícitas no comportamento social normativo, Searle as divide em constitutivas e regulativas. Regras regulativas regulam comportamentos preexistentes como 9.) “Não mastigue com a boca aberta” e sua violação não é tão grave, o resultado é que executa um ato infeliz, conforme a terminologia de Austin. Ou proferir uma promessa sem a intenção de cumpri-la. Por outro lado, as constitutivas definem novas formas de comportamento, como em um jogo de xadrez 10.) “Os bispos só andam na diagonal” – o jogo não existiria sem ela. Elas podem ser fortemente constitutivas se a sua inobservância impede o ato de fala pretendido, como um clérigo que realiza o casamento de noivos que não tem idade legal para casarem-se.

Embora possa haver casos de fronteira nas regras propostas por Searle, Lycan argumenta que Austin se preocupou também em mostrar casos infelizes de elocuções como quando ela é insincera, dita com a voz muito baixa, sem tato, mal-educada ou prolixa. Lycan ressalta que a falsidade é uma infelicidade que permeia os atos de fala de afirmação, asserção e semelhantes, já que uma regra regulativa é que o que se diz é verdadeiro. Entretanto, dirá Austin, não são falsas, mas infelizes, superando a postura verificacionista.

Isso posto, Lycan traz o problema de Cohen, autor que argumenta ser tentador considerar que o significado (ou condição de verdade) seria dado somente pela frase declarativa, enquanto a parte performativa pudesse ser descartada. Porém, argumenta Cohen, o conteúdo performativo também tem seus sentidos e referentes e não é meramente uma etiqueta – eles têm significado locutório.

Extrapolando, Lycan traz exemplos nos quais os prefácios performativos tem advérbios e são longos, como 11.) “Admito sem coação que tive várias conversas em privado com o acusado”, 12.) “Admito com relutância que tive várias conversas em privado com o acusado” – aqui "com relutância" modifica “Admito”, a frase performativa. Poderíamos também ter 13.) “Como creio em Deus, admito que tive várias conversas em privado com o acusado” – nesses casos há muita coisa sendo afirmada ou há fatos que poderiam estar na frase performativa trazendo conteúdos locutórios. Esses exemplos mostram que essa perspectiva tentadora deve ser superada por uma libertadora.

Ora, sob esse ponto de vista, os atos de fala passam também a poder serem verdadeiros ou falsos e uma asserção como 14.) “Parece-me que já encomendamos demasiadas peles de foca” teria dois conteúdos locutórios e dois valores de verdade, sendo que o valor de verdade performativo seria auto descritivo e quase sempre verdadeiro. Pois bem, no exemplo, “Admito sem coação ...”, se tomarmos a perspectiva liberal, a admissão seria uma asserção, retirando sua força ilocutória de jogar parte do significado, o conteúdo locutório, para a declaração. Tomada como liberal, o “Admito sem coação...” poderia ser falsa e a segunda frase “mantive conversas...” verdadeira.

Por fim, Lycan ressalta que uma teoria dos atos de fala completa deveria lidar com esses fatos. Segundo ele, Alston e Baker tentaram transformar a proposta de Austin em uma teoria do próprio significado locutório, quase como uma teoria do uso, mas sem aprofundamento.



[i] Fichamento de Filosofia da linguagem: uma introdução contemporânea. LYCAN, William. Tradução Desiderio Murcho. Portugal: Edições 70, 2022. Capítulo 12: atos de fala e força ilocutória. 

[ii] Constativo: que apenas descreve um acontecimento, não implicando o cumprimento simultâneo, pelo locutor, da ação descrita nesse enunciado. Conforme infopédia.