quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Introdução ao processamento de linguagem natural

Trata-se do primeiro texto de uma série que visa desvelar, mais tecnicamente do que filosoficamente, o processamento de linguagem natural, mas não sem buscar por bases linguísticas e refletir sobre pontos críticos[i]

A despeito de um uso já bastante disseminado, como, por exemplo, os corretores ortográficos, tradutores automáticos, reconhecedores de fala, assistentes virtuais e sistemas de recomendação, o processamento de linguagem natural (PLN) também avança em tarefas menos cotidianas (ainda), entre elas decodificação de códigos secretos[ii], tradutores universais capazes de ouvir um idioma e fazer a conversão a outro simultaneamente[iii] e, por fim, o famoso projeto GPT[iv], da empresa OpenAI, que é capaz de escrever diversos tipos de gêneros textuais.

Se a maioria das aplicações acima estão em franca evolução, Pardo ressalta alguns desafios, a começar pela exigência científica de que as ferramentas não só sejam competentes, mas tenham que desempenhar[v]. Isso implica, por exemplo, que o PLN deve ter uma decodificação universal, mas que não podemos nos esquecer de reflexões sobre a própria linguagem, entre elas, sua contemporaneidade com a evolução do cérebro/mente[vi], mesmo suas implicações com consciência humana, ou o que nos diferenciaria dos animais[vii], a semântica da língua, contexto linguístico [cultural], estrutura sintática e morfológica, que ela é hierárquica e recursiva, etc. Tudo isso leva ao objetivo de construir a inteligência artificial [de máquina], referente ao processamento de linguagem natural, com sua dependência de técnicas e dados.[viii]

PLN é transdisciplinar[ix], pois envolve fundamentação linguística, representações linguístico-computacionais, estatística e métodos computacionais, que envolvem técnicas simbólicas, redes neurais, etc., além de representação do conhecimento, que veremos aqui em um texto a parte.

De acordo com Pardo, consta que 2001 - Uma Odisseia no Espaço inspirou a ciência e a tecnologia, inclusive com a busca do PLN pela criação de um mecanismo que possibilidade copiar HAL – o robô da nave, ou seja, com muito conhecimento linguístico: fonética, fonologia, morfologia, vocabulário, semântica, uso das palavras, gramática, composição do discurso (conexão de várias frases) e, por fim, conhecimento de mundo para poder ter um diálogo inteligível com um ser humano, quer dizer, aprendizado do senso comum.

Ora, considerando a língua humana uma língua natural, código de comunicação, e a linguagem como algo que envolve os mecanismos físicos e cognitivos utilizados na comunicação, etc., deveríamos falar de um processamento de língua natural, à despeito do termo popularizado processamento de linguagem natural, que é uma sub área da IA. PLN, então, visa habilitar o computador a lidar com a língua, como se fosse uma pessoa.

O PLN, conforme o material, teria surgido na 2ª Guerra Mundial, através das tentativas de ingleses e americanos de descobrir os códigos russos. Embora tenha criado expectativas, logo houve uma frustação que passa a trazer resultados por volta dos anos 2000, não como uma inteligência que nos substituirá, mas que serve para nos apoiar.

Pardo lembra das origens das pesquisas, como o programa Eliza[x] que não tinha conhecimento suficiente de mundo e não era capaz de entender o contexto linguístico, por exemplo, não saber o que é era uma alergia. Isso significa que dá para conversar com a máquina, mas fazê-la entender é algo ainda difícil de conseguirmos implementar.

Já o GPT, citado anteriormente, usa rede neural em camadas com mecanismos de atenção (transformer) com capacidade de identificar o que é mais importante. Ele gera o texto a partir dos corpora que ele compõe, mas, ainda que muito superior à Eliza está muito longe do ser humano[xi]. Por fim, Pardo enumera outra série de ferramentas e aplicações que podem ser analisadas durantes as pesquisas de PLN, como WolframAlpha (https://www.wolframalpha.com/input/?i=what+time+is+it+now). Start para perguntas e respostas (http://start.csail.mit.edu/answer.php?query=what+time+is+it+now%3F), os famosos Watson (IBM) que usa computação cognitiva e teria superado humanos em um jogo, os assistentes virtuais Siri (Apple), Alexa (Amazon) e o da Google.

Por fim, Pardo cita o LX-Suite[xii] que permita fazer testes de análises linguísticas e um primeiro contato com os termos da área de PLN. Ele faz o parse das sentenças e termos como o VISL (https://visl.sdu.dk/visl/pt/), que é um dos mais usados em língua portuguesa. Há também o OpenWordnet-PT que pode ser usado para desenvolvimento de programas em NLTK usando Python.

Bom, como pudermos ver nessa primeira aula, há muito para aprender e percorrer no caminho do PLN. Mãos à obra!



[i] Essa reflexão / artigo é uma síntese da aula introdutória da disciplina espelhada “SCC0633/5908 Processamento de Linguagem Natural”, ministrada pelo Prof. Thiago A. S. Pardo no ICMC-USP-SC e, na presente data (25/01/2022), com material aberto e disponível na internet.

[ii] Conforme slide do professor Pardo How Revolutionary Tools Cracked a 1700s Code, http://www.nytimes.com/2011/10/25/science/25code.html.

[v] Sobre desempenho, podemos lembrar da crítica foucaultiana de Byung-Chul Han (https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2018/05/paradigmas-do-seculo-xxii.html), mas mais concretamente não podemos nos esquecer das críticas de um Ellul (https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2021/07/em-busca-do-metodo-mais-eficaz.html) ou Feenberg.

[vii] Talvez uma discussão inócua, mas que passa pela capacidade de comunicação dos animais e a nossa, “mais avançada”, comunicação pela linguagem.

[viii] Pardo cita Big Data e mineração de dados, inclusive as críticas relacionadas e “desperdício de processamento”, isso consequência da dataficação, como sabemos.

[ix] Termo criado por Piaget em 1979, é o conhecimento de uma forma plural (https://www.significados.com.br/transdisciplinaridade/), ou seja, holística e contextualizada, rompendo a divisão das áreas do conhecimento e visando a compreensão dos fenômenos em sua totalidade.

[xi] Pode ser testado aqui: https://app.inferkit.com/demo.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

O Antropoceno e a nossa visão de mundo

Sobre um tempo em que o ser humano deixa marcas geológicas em um planeta cuja imagem ele precisa rearticular[i]

O Antropoceno: uma inovação. A despeito do 34º Congresso Internacional de Geologia, em 2012, declarar o Antropoceno uma “possível” época geológica e, conforme ressalta Latour sobre o tamanho do peso desse tipo de decisão, já que colocaria uma marca da humanidade na geo-história, ainda assim, foi decretado o fim do Holoceno[ii]. Nesse sentido, depois de 11 mil anos de desenvolvimento da civilização, há um período novo de instabilidade[iii].

Certamente, continua Latour, a burocracia associada a tal decisão se deve a que a comunidade geológica precisa de um sinal geológico que seja medido pela estratigrafia, ou seja, seu reconhecimento nas rochas. Entretanto, não se discute o fato que o termo Antropoceno, cunhado por Crutzen no ano 2000[iv], já seja consenso nas pesquisas de mudanças climáticas.

Embora o Novo Regime Climático não tenha respaldo ainda na Geologia (depois de 2016, mas antes de 2019 quando foi chancelado[v]), Latour aponta para as contribuições do grupo liderado por Zalasiewicz a respeito dos temas das conferências: potências de agir, zona metamórfica, etc., e nossas pegadas começam a aparecer na base rochosa, nossa ação gera fenômenos em escala global e o dispêndio de energia da humanidade como um todo chega ao gasto energético de vulcões ou tsunamis, senão que nossa potência pode atingir a das placas tectônicas (nosso gasto por volta de 17 terawatts ainda ínfimo perto dos 130 mil oriundos da ação do sol).

Não obstante o citado na definição do termo, Latour recupera nossas “contribuições”[vi], enfatizando os efeitos dos sinais radioativos das bombas atômicas. Se antes queríamos dominar a natureza, agora trata-se de procurar nosso traço em suas ruínas. Importante ressaltar o fato de marcamos um tempo geológico a partir de uma contribuição de 100 a 200 anos, o que mostra o ritmo da transformação.

Mente et malleo. Porém, ressalta Latour, é justamente o Antropoceno, “cavilha de ouro” (golden spike), que pode se tornar o conceito filosófico que nos afastará da modernidade. Se a questão humana era parte dos estudos em ciências humanas, esse novo oximoro trata de colocar “Anthropo” no centro da “ciência natural” e da geologia, deixando para traz a área das humanidades que, as voltas com nossos valores, não viu o trabalho do martelo[vii].

E o termo, conforme continua ele, sendo mal compreendido, faz com que apressadamente se fundam as noções de Natureza e Cultura, em metamorfose capaz de petrificar o rosto humano ou antropomorfizar a natureza. A esse propósito Latour alude à revista Nature[viii] que, trazendo a “Era do humano”, não percebeu que se tratava exatamente do seu fim.

A ocasião ideal para desagregar as figuras do homem e da natureza. Retomando o tema anterior, Latour enfatiza que o Antropoceno não é capaz de reconciliar natureza e sociedade, mas que vem para desintegrar tais noções tão presentes até então. Pois quando a ação humana se funde com a geologia, tudo se mistura, pois nos misturamos aos ciclos do carbono e do nitrogênio, e às impressões de lavas em rochas se misturam plásticos.

O Antropoceno habilita a transposição da geografia física e da geografia humana tornando obsoleto um conceito como o de Natureza. Assim como não permite responsabilizar ninguém por ele, já que a humanidade como um todo não poderia atuar como um agente único, dotado de consistência moral ou política. E mesmo que se pudesse responsabilizar é possível já imaginar a grita em contrário. Entretanto, não se pode enumerar a pegada de carbono de cada um porque há povos distintos, há interesses diversos, enfim, uma miríade de hábitos e ações as mais contraditórias que nos impede de ser um todo unificado.

Sloterdijk ou a origem da imagem da esfera[ix]. Conforme argumenta Latour, para retirar o fardo que é para o humano carregar o Globo todo nas costas, convém recorrer ao conceito de esferas de Sloterdijk, como que capaz de imunizar e perpetuar a vida. É esse conceito de esfera, germinado na história da filosofia, que Sloterdijk usa para tematizar um envoltório que nos permite viver e respirar, que nos climatiza. Inclusive para criticar o Dasein de Heidegger, ele pergunta: para onde o Dasein é jogado no mundo, qual a composição do ar e temperatura de lá?

Segundo Sloterdijk, criou-se uma imagem de Globo que não se sustenta, se o Globo é belo, não se põe de pé. Ter uma visão global é sair da esfera e se expor ao mundo, quebrar o envoltório é destruir a camada de proteção que nos sustenta vivos. Envoltório frágil, mas que contém as condições climáticas que permitem nossa existência.

Conforme Latour, “oferecendo-nos a primeira filosofia que atende diretamente às exigências do Antropoceno”, Sloterdijk conceitua um Deus Esfera (Deus sive Sphaera)[x] que pode romper a cosmologia ocidental ao colocar a Terra no centro jogando Deus para a periferia. Ele mostra que há um bifocalismo a ser superado: local teocêntrico ou geocêntrico. No mais, pensar globalmente trazendo a reboque Deus nos impede ter de pensar historicamente e ficamos sem o tempo e o espaço...

A confusão entre a ciência e o globo. Da mesma maneira há, para Latour, duas visões de mundo científicas que não se reconciliam: a da Natureza (na natureza, centrada no cosmos) e a da Natureza no laboratório, como se uma descoberta científica pudesse traduzir a Natureza. Do mesmo modo que a imagem do Globo ou Deus cristão é o Globo platônico separado e perfeito, sem os efeitos da gravidade. Esse sim, se pode abarcar com a mão[xi], mas que aí não passaria de um globo de papel machê.

 Então, Segundo Latour, é pelo uso da esferologia de Solterdijk ou da história da ciência que conseguiremos escapar da maldição de Atlas, pelo entendimento que a noção de globo não inclui tudo o que está contido no mundo, o global é um modelo reduzido pois nunca se pode pensar globalmente sobre a Natureza ou Gaia.

Tyrrell versus Lovelock. Conforme Latour, ao tratar do Antropoceno, de Gaia ou do Globo, confundem-se as figuras de conexão com as de totalidade, mesmo entre os cientistas. Um exemplo que ele traz é o de Tyrrell que converte Gaia em algo superior que envolveria a Terra[xii]. Diante disso, Tyrrell postula que Lovelock não consegue provar que existe essa camada de proteção da Terra, tal como uma Providência. E aí seu erro, conforme indica Latour, de tomar o todo pelas partes.

A despeito do alerta de Lovelock e de sua hesitação em definir Gaia, ainda assim Tyrrell a toma por um ente todo-poderoso como que por uma visão teológica, talvez pela influência daquele conceito de Globo. Mesmo que Lovelock tenha conceituado uma versão profana de Gaia, não teleológica e que foge de um nível de conexão e outro de totalidade reguladora, Tyrrell é taxativo ao adotar o segundo ponto em prol da teoria da evolução, tirando qualquer possibilidade de os organismos também poderem interferir no meio.

Por mais que Lovelock enfatize não haver intenção oculta na autorregulação planetária, um neodarwinista como Tyrrell vê ali uma Teodiceia. Isso porque alguns cientistas se agarram à visão global de um superorganismo, ao invés de se mirarem nas conexões entre os seres. E o Antropoceno ensina que não há uma unificação em uma esfera terráquea e que a cosmologia do planeta azul como Globo deve ser superada. Se livrar da maldição de Atlas é ultrapassar a imagem da Esfera platônica sem história nem descontinuidade, a ideia ideal.

Os ciclos de realimentação não desenham um globo. Mas é tomando as potências de agir com um movimento em ciclos que se traça um caminho que rompe o desenho da esfera. E aqui Latour toca num ponto particularmente problemático que é o de como trazer essa noção de Antropoceno, tão distante, para o centro das atenções. Ainda que já tenham havido vários ciclos para superar a visão de Globo, como as observações de Keeling e as medições do ciclo do dióxido de carbono, o buraco na camada de ozônio ou os estudos de Carl Sagan sobre um possível inverno nuclear, é preciso que os sintamos, de fato, em nós mesmos. Isso quer dizer receber os efeitos do que praticamos, de nossa frágil condição climática, ou seja, desses ciclos que voltam a nós e nos sensibilizam (assim como os ciclos para parar de fumar, por exemplo, conforme cita Latour: a necessidade de sentir na pele, ou, nos pulmões...).

É por ciclos entrelaçados que a camada de Gaia se compõe, envoltório delicado das zonas críticas e que, não somente sente a nossa ação, como reage e é nesse momento que temos que ter nossos sensores ativados para não sermos negacionistas e identificarmos de que maneira as potências de agir estão conectadas.

Enfim, outro princípio de composição. Por mais que Gaia gere sinais de insatisfação, a partir do Antropoceno que destruiu qualquer sonho de união no cuidado com a Natureza, ela em si também não nos une como que nos chamando à ordem. Dada a complexidade do que se passa sob Gaia, nem mesmo a Ciência une, haja vista as pseudocontrovérsias lideradas pelos climatocéticos. Há, então, que se tecer uma universalidade, segundo Latour, pela construção de coletivos em uma multiplicidade de ações em torno de uma luta política.

Redesenhar o formato Natureza/Cultura em uma nova cosmologia, que é de um tempo pós-natural e pós-humano. Não se trata mais de questões ambientais, mas da redistribuição das potências de agir, maior que as paixões políticas que conhecemos.

Melancolia ou o fim do globo. Por fim, Latour relembra Melancolia, o filme, com a imagem de Melancolia, e não o planeta Terra, sendo Gaia, pois é aquela que devastará o que é demasiado humano. Enfim destruídos, haveremos de encontrar uma nova teologia geopolítica.



[i] Resenha da Quarta Conferência de Bruno Latour: O Antropoceno e a destruição (da imagem) do globo. Em LATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo / Rio de Janeiro: Ubu Editora / Ateliê de Humanidades Editorial, 2020. Como de costume, de maneira alguma visa exaurir a argumentação do autor, é um recorte das principais ideias abordadas.

[ii] Conforme https://www.infoescola.com/geologia/holoceno/: Na escala de tempo geológico, o Holoceno ou Holocênico é a época do Período Quaternário da Era Cenozoica do Eon Fanerozóico, que se iniciou há cerca de 11,5 mil anos e se estende até o presente, onde a humanidade se desenvolveu. O desenvolvimento da humanidade se deu principalmente graças ao clima mais ameno e estável. Os grupos nômades de caçadores-coletores passaram para uma população com casas fixas de mais de 6 bilhões de pessoas, que estão agrupadas em complexas organizações sociais com nacionalidades, culturas e modos de vida. Durante o Holoceno, o clima sofreu drásticas mudanças em relação à temperatura, chuva, nível médio do mar, entre outros aspectos. Indicadores climáticos mostraram que o El Niño também foi impactado pelas mudanças climáticas ocorridas no Holoceno, que podem ter sido geradas pela variação nos parâmetros orbitais. Neste mesmo período, também ocorreu a extinção em massa de diversos animais e vegetais, principalmente de grandes mamíferos, por volta de 9.000 a 13.000 anos atrás, ou seja, ao final da última glaciação, no limite Pleistoceno - Holoceno. Este grande evento pode estar relacionado a dois outros eventos que ocorreram na mesma época, sendo eles a mudança climática e a fixação dos povos humanos. A quantidade de espécies que estão entrando em extinção é superior a quantidade de novas espécies ou até mesmo de nascimento de animais e vegetais. Com todas estas mudanças que ocorreram e continuam a ocorrer, teve início uma nova corrente de pesquisa, na qual os pesquisadores propõem uma época nova, o Antropoceno. No entanto, para que esta nova época seja efetivamente reconhecida na tabela geológica é necessário que se tenha uma significância ou ocorrência global que marque o estratotipo globalmente, um golden Spike. Esta significância ou golden Spike é um ponto que marca o limite entre tempos geológicos diferentes, e o grande desafio está sendo encontrar este ponto que determina o início do Antropoceno para que esta nova nomenclatura seja aceita sem ressalvas pela comunidade científica da geologia mundial. Embora seja aceito que o homem seja o grande causador de algumas mudanças que estão ocorrendo na Terra, não se sabe precisar se estes impactos se iniciaram com o advento da agricultura ou da industrialização, se estão relacionados ao crescimento da população e ao uso de recursos naturais. No final do século XIX e início do século XX, a sociedade deixou de ser industrial e passou a ser uma sociedade de informação, com um grande aumento da população global e consequente consumo de recursos naturais, modificando ainda mais o planeta Terra.

[iii] Há controvérsias se por volta de 1800, no começo da revolução industrial ou no pós 2ª Guerra, graças à radioatividade artificial. Um pouco disso na nota anterior.

[iv] Tradução do texto seminal publicado por Paul Crutzen & Eugene Stoermer em 2000 na Global Change Newsletter, 41:17-18 https://revistas.uminho.pt/index.php/anthropocenica/article/view/3095/2989. Sucinto, porém mostra o estrago que temos feito ao planeta.

[vi] São: "a modificação por barragens da sedimentação dos rios; mudanças na acidez dos oceanos; a introdução de produtos químicos anteriormente desconhecidos; as ruínas compostas de vastas infraestruturas que não se parecem em nada com as anteriores; as mudanças na taxa e na natureza da erosão; as variações no ciclo do nitrogênio; o aumento contínuo do CO2 atmosférico; sem esquecer o desaparecimento abrupto de espécies vivas durante o que os biólogos se resignam chamar de "sexta extinção" p. 187, 188. Muitos dos pontos tratados por Crutzen e Stoermer.

[vii] Nossa resenha segue a fina ironia latouriana.

[viii] Referência de Latour à ilustração de Jessica Fortner https://www.nature.com/articles/519144a.

[xi] Aqui ressaltando sua constante referência a Atlas, nesses tópicos: “Na mitologia da Grécia antiga, Atlas era um gigante condenado a carregar o universo nas costas”, conforme o artigo acessado em 16/01/2022:  https://escola.britannica.com.br/artigo/Atlas/480699.

[xii] Latour uso o livro “On Gaia: A Critical Investigation of the Relationship Between Life and Earth” de Tyrrell como base da argumentação do equivocado professor.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Base física do efeito estufa e aquecimento global

Sobre as bases físicas que mostram que as emissões antropogênicas de gases estufa contribuem para o aquecimento global[i]

Introdução. Com a emergência da temática ambiental, nos interessa entender questões ligadas às mudanças climáticas e ao aquecimento global. Para isso, requer voltarmos a conceitos básicos outrora vistos para melhor compreensão desses fenômenos, ou seja, suas bases físicas. A respeito do artigo, mais precisamente, os autores enfocam o aquecimento global cuja causa dominante é a ação humana, de acordo com a evolução das pesquisas científicas no último século e a despeito de alegações em contrário[ii]. Então, o efeito estufa tem papel preponderante na regulação da temperatura planetária.

O papel da composição atmosférica na temperatura planetária. Os autores trazem o raciocínio de Fourier, primeiro a tratar da temperatura planetária, de que a Terra, recebendo energia constantemente do sol, deveria reemiti-la de volta pois, de outra forma, superaqueceria e assim poderia manter uma temperatura de equilíbrio. A energia solar atinge os planetas de seu sistema por ondas eletromagnéticas cujas intensidades dependem da luminosidade do astro e da sua distância. Porém, boa parte dessa energia não é absorvida pelo planeta[iii], já que uma parte é refletida pela atmosfera e outra parte pela superfície. Ocorre que o planeta recebe a luz solar em metade de sua superfície e a reflete por toda a sua extensão (conceito conhecido por albedo[iv]). A figura abaixo ilustra esse ponto.

Os itens elencados acima fazem com que a temperatura de equilíbrio da Terra (-18º) seja bem menor do que a temperatura em sua superfície, em torno de 15º. Comparando com outros planetas que têm as temperaturas estimadas, podemos notar a diferença entre elas, conforme a tabela que segue.

Se Mercúrio e Marte as têm próximas, isso não ocorre com Terra e Vênus que as têm distintas exatamente por conta da atmosfera de cada um. Se a atmosfera é substancial, isto é, espessa e com gases estufa, ela absorve parte da radiação refletida e aumenta a temperatura da atmosfera baixa, qual seja, da superfície e a isso dá-se o nome de “efeito estufa”. Já a próxima tabela ilustra as tênues pressões atmosféricas em Mercúrio e Marte que não geram as diferenças de temperatura bem como o oposto para Terra e Vênus.

Vênus que, mais longe do sol do que Mercúrio, ainda assim apresenta alta temperatura devido à junção da alta pressão com alta presença do gás de efeito estufa dióxido de carbono, como podemos ver a seguir.

Ainda conforme a tabela, embora Marte também tenha alta presença de CO2, ele é pouco concentrado como se pode ver pela sua pressão atmosférica, que faz com que o planeta não absorva muita radiação infravermelha oriunda da superfície. A tabela também mostra a distinta composição de gases que a Terra apresenta com relação aos vizinhos Vênus e Marte (conforme figura dos planetas do sistema solar que se segue[v]) e, embora seja baixa a concentração de dióxido de carbono, ele se junta a outros gases (vapor d’água, metano e óxido nitroso) para compor o efeito estufa e aumentar a temperatura da superfície em 30º acima da temperatura de equilíbrio.

Os autores também enfatizam que é a própria vida na Terra, sua biosfera, que regula a composição química da atmosfera pelos ciclos biogeoquímicos e, se a vida fosse extinta, rapidamente teríamos uma composição similar a Vênus e Marte.

Detalhamento do efeito estufa da Terra. Embora Fourier tenha afirmado que o calor encontra menos resistência ao entrar na atmosfera em estado de luz do que ao sair como calor não luminoso, a base física só foi evidenciada com o uso de um espectrofotômetro por Tyndall, em 1859, que mostrou que dióxido de carbono e vapor d’água (CO2, H2O) poderiam absorver radiação infravermelha, enquanto oxigênio, nitrogênio e hidrogênio não (O2, N2, H2).

Contudo, só no século XX se clarificaram as medidas e os gases de efeito estufa, nomeadamente: CO2, H2O, CH4 (metano), N2O (óxido nitroso), CFCs e O3(ozônio) que absorvem radiação infravermelha. Abaixo são mostrados os comprimentos de onda com destaque para o espectro visível e também as ondas longas de infravermelho na qual os gases estufa são ativos radioativamente.

Então, conforme já dito, o sol emite ondas eletromagnéticas para nós numa radiação visível que não é absorvida por esses gases (0,4 μm a 0,7 μm). Cerca de 70% dessa radiação visível entra na Terra aquecendo-a, que então emite radiação infravermelha para o espaço que é obstruída pelos gases estufa, esquentando a baixa atmosfera.

Acima o desenho esquemático do efeito estufa, com destaque para a emissão de dióxido de carbono em todas as direções. Outro ponto é que, quanto maior a temperatura de um corpo, menor o seu comprimento de onda emitida e aí a Terra, bem menos quente que o sol, emitindo na faixa do infravermelho em torno de 10 μm (isso será mostrado em outro gráfico mais a frente). Pois que, pelo estudo da espectroscopia do infravermelho para o dióxido de carbono, é mostrado que ele absorve radiação nos comprimentos de onda de e 4,2 μm e 15 μm, ou seja, ele é opaco nesses pontos (e vai coincidir com o comprimento de onda da Terra, como se verá).

Os autores ainda trazem uma questão extremamente técnica para esclarecer as bandas de absorção do CO2 e sua interação com a radiação infravermelha. Sucede-se que a radiação infravermelha incidente na molécula de CO2 possui frequência compatível com a frequência de vibração do mesmo e este absorve radiação em uma mudança do momento de dipolo, que ocorre quando a molécula vibra e interage com os campos elétricos e magnéticos da radiação.

Acima é mostrado os modos normais de vibração do CO2 com destaque para os momentos de absorção v2 e v3, ao passo que o estado v1 é apolar (simétrico). Trazendo o gráfico da emissão da radiação da Terra abaixo, vê-se a atuação da banda de 15 μm (v2 acima) atuando na faixa de 10 μm, indicando a existência do efeito estufa.

O balanço energia da Terra: o efeito estufa em ação. A despeito do comportamento do CO2, etc., os autores ressaltam que o mecanismo principal da temperatura planetária é o balanço de energia da Terra, qual seja, a manutenção da temperatura média entre as intensidades de energia entrantes e saintes. De acordo com os cientistas, um desequilíbrio que possa levar a mudança da temperatura média ocorreria por três possiblidades ou forçantes climáticas: 1.) mudança da radiação solar entrante, seja por mudança na intensidade da radiação solar ou da órbita da Terra (que não tem acontecido, segundo observações), 2.) mudança do albedo da Terra, pela mudança de cobertura das nuvens, partículas de aerossóis e cobertura do solo (também não ocorre) e 3.) mudança da radiação terrestre para o espaço, devido à alteração na concentração dos gases de efeito estufa.

Não obstante, convém lembrar que a temperatura de equilíbrio se dá a uma altitude média da atmosfera acima dos gases estufa e, abaixo deles, há a temperatura da superfície que recebe a reemissão da radiação para baixo e aí se aplicam modelos de medida da transferência radioativa que não nos interessa detalhar agora, embora os autores os tivessem simplificado em  um modelo de linha que abstrai as camadas da atmosfera e outros fatores como correntes oceânicas, variações dos espectros de onda, transferência de energia entre as camadas e distribuição dos gases.

De todo modo, desse modelo é possível estimar a temperatura da superfície a partir da temperatura de equilíbrio, chegando a um valor de ~303 K (-273 = 30º, acima dos 15º por conta da simplificação) e permitindo mostrar que a “radiação reemitida para baixo contribui para o aquecimento da superfície” (p. 16) e também que, em última instância, a radiação escapa a altas altitudes e o aumento dos gases de estufa irá aumentar a temperatura de superfície e sua diferença com relação à temperatura de equilíbrio, desequilibrando o balanço.

O aumento do efeito estufa e a busca do balanço trazem aquecimento. Se o efeito estufa é um processo natural e essencial para a vida na Terra, a mudança da composição química da atmosfera pela concentração de gases de efeito estufa, sem dúvida, irá aumentar a temperatura do planeta. Acontece que, se é mantida a radiação entrante e os gases de efeito estufa dificultam a sua saída, há um desequilíbrio entre a entrada e a saída de radiação. Nesse caso, a Terra precisa esquentar para reequilibrar o fluxo de energia e, aí, atinge um novo estado de equilíbrio.

A figura acima ilustra a busca pelo balanço de energia quando, em b), o aumento da concentração de dióxido de carbono irá diminuir a temperatura de saída para 236K e, então, a Terra se aquece (3º) para atingir o novo equilíbrio. Esse valor de incremento e sua rapidez de aumento ainda são debate entre os cientistas, conforme enfatizam os autores.

Papel do CO2 no aquecimento global. Se o vapor d’água contribui mais do que o CO2 entre os gases com efeito estufa (vapor d’água = 50%, nuvens = 25%, CO2 = 20% e demais gases 5%), o CO2, além de não condensável, apresenta evidências de relação com as eras do gelo[vi] e é parte da história climática da terra. Soma-se a isso que o nível atual de CO2 jamais foi atingido no período observado (um pico de 300 contra 400 ppm atuais das emissões humanas pós revolução industrial)[vii].

Já o vapor d’água é condensável e se regula pela temperatura da atmosfera que vai comportar determinada quantidade, o resto condensa-se. Assim sendo, ele não é considerado uma forçante climática e se associa com o mecanismo de retroalimentação. Conclui-se que o CO2 é o termostato da terra, já que a sua ausência atmosférica levaria a um congelamento do planeta.

A contribuição de dióxido de carbono de origem humana é demonstrada pelas conhecidas anotações de Charles David Keelling, ilustradas abaixo.

Se aliarmos esse dado com as medições de temperatura ao longo dos anos (considerando incremento de 1º desde a revolução industrial) e com as comprovações cientificas que descartam as outras forçantes climáticas, os autores afirmam que:

“O IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) criado em 1988 sob o comando da Organização Meteorológica Mundial (WMO) em seus relatórios tem atestado com níveis de confiança cada vez maiores que as evidências científicas são suficientemente fortes para afirmar que o aquecimento observado tem como causa dominante as emissões antropogênicas de gases estufa (Ipcc, 2013)”

Por fim, os autores sintetizam o argumento da seguinte forma:

1. O efeito estufa é um fenômeno natural essencial à vida na Terra.

2. O mecanismo do efeito estufa opera a partir das moléculas dos gases estufa que absorvem a radiação infravermelha emitida pela Terra, reemitindo uma parte de volta para a superfície terrestre.

3. As emissões humanas estão aumentando a concentração de gases estufa na atmosfera.

4. Um aumento da concentração de gases estufa na atmosfera intensifica o efeito estufa da Terra.

5. Um efeito estufa mais forte causa um desequilíbrio no balanço de energia da Terra.

6. Para retornar ao equilíbrio energético a Terra precisa esquentar tendo como resultado o aquecimento global.



[i] Conforme https://if.ufmt.br/eenci/artigos/Artigo_ID531/v13_n5_a2018.pdf: Efeito Estufa e Aquecimento Global: Uma abordagem conceitual a partir da física para Educação Básica. Simplificado, resumido, sem fórmulas 😊.

[ii] “Fatos alternativos” citados: 1.) o planeta não está aquecendo, mas resfriando; 2.) estamos num ciclo natural; 3.) as emissões de dióxido de carbono não são um problema; 4.) o efeito estufa não existe.

[iii] Energia absorvida = potência.

[iv] Conforme http://sigep.cprm.gov.br/glossario/verbete/albedo.htm, albedo é a medida da quantidade de radiação solar refletida de um objeto ou alvo com relação a quantidade de energia incidente. O albedo varia de 1 (reflexão total de corpo refletor perfeito) a 0 (absorção total de um corpo negro), que são extremos teóricos inexistentes na natureza. O albedo da Terra como um todo, incluindo as nuvens, é em torno de 0,4, ou seja, 60% da energia solar incidente é retida no sistema Terra.

[vi] Conforme citação dos autores dos estudos feitos na estação Vostok da Antártica.

[vii] Não só o dióxido de carbono, como metano, óxido nitroso, ozônio e clorofluorcarbonetos apresentam aumentos expressivos de 1850 para cá, principalmente pela queima de combustíveis fosseis como petróleo e carvão, desmatamento, agricultura e pastagens.