domingo, 26 de setembro de 2021

A mão que liberta, lidera. Mas, até quando?

Mostra o papel fundamental que a mão tem na evolução humana[i]

Situado no arcabouço da filosofia da técnica francesa, Leroi-Gourhan traz uma abordagem antropológica do ser humano em relação à técnica por meio da qual cria objetos ou utiliza o corpo para transformar o meio. Aportando também elementos de biologia e paleontologia, Leroi-Gourhan trabalha o processo evolutivo por meio do elemento técnico, a chamada “hominização”, vista por ele pela relação entre homem, linguagem e técnica, desde o paleolítico até o século XX.

A libertação da mão. Conforme nos mostram os autores, Leroi-Gourhan considera a mão livre como símbolo de nossa evolução e interligado com a tecnicidade, o pensamento e a locomoção bípede. Vê a técnica já nas nossas formas mais primitivas ou, antes, quando os répteis, pelos quatro membros colunares, se afastam do contato com o solo.

Para ele, a humanização se dá pela libertação de mão na locomoção, o que nos diferencia dos macacos e bipedalismo oriundo do endireitamento da coluna vertebral. Antes mesmo do Homo Sapiens, a mão, pela sua atividade criadora, impele o desenvolvimento cerebral e a torna o motor humano.

Corpo e Cérebro. Se a mão, no macaco, por exemplo, tem função locomotora pela oposição do polegar ao resto da mão, quando em posição sentada permite a preensão. Mesmo em humanos, a mão é a primeira ferramenta que, ao deixar de responder às pressões ambientais de menor inteligência, se torna atividade criadora. Ela, então, já não se transforma, sua incidência passa a se dar nos arranjos cerebrais que a comandam.

A análise técnica de Leroi-Gourhan traça o desenvolvimento da espécie desde o peixe até o ser humano em suas variadas transições que perpassam a libertação da água, etc. Leroi-Gourhan, além das habilidades manuais, aborda o gestual nas atividades linguísticas e não vê primado da evolução cerebral sobre o corpo que o cérebro controla.

A linguagem e a libertação da memória. Se a mão é responsável pelo fazer técnico, ela libera a face para a fonação, face essa que já não é utilizada para a defesa. A mão, que lidera face e cérebro, faz com que o último não seja responsável principal pela capacidade técnica, mas a linguagem. É o corpo que comanda. É pela linguagem que o ser humano transmite o conhecimento técnico e cria sua memória social e responsável por transportar a evolução humana da natureza zoológica para a técnica.

Homo Sapiens: fóssil vivo. A técnica, no Homo Sapiens, dita novo ritmo evolutivo, não mais da zoologia ou biologia, e Leroi-Gourhan aventa que um dia o próprio homem poderá se embaraçar com seu corpo herdado do paleolítico. Se o corpo humano evolui tecnicamente em escala geológica, o ritmo do desenvolvimento de utensílios muda mais rapidamente fazendo com que o homem do século XX pareça de outra espécie se comparado ao do XVIII, por exemplo.

Entretanto, se a libertação da mão das atividades locomotoras foi chave na evolução dos hominídeos, com a Revolução Industrial a atividade manual perde em importância. A transformação do ambiente, então, se da por máquinas e o Homo Sapiens deixa de pensar com a mão e, esse regresso, pode ter consequências no aparelho neuro-motor. Além do mais,  com as máquinas ultrapassando o poderio cerebral humano, já seríamos um fóssil vivo dada a atual evolução em que a eletrônica supera as capacidades do córtex cerebral.

Concluímos com os autores dizendo que Leroi-Gourhan traz uma análise antropológica da tecnicidade considerada constitutiva da condição humana, porém indo além daquele conceito de Homo Faber, que não teria fundamento paleontológico. Todo seu arcabouço analítico influenciou pensadores de destaque, como, entre outros, Deleuze, Simondon, Stiegler e Latour. 


[i] Filosofia da Tecnologia. Seus autores e seus problemas. Organização de Jelson Oliveira e prefácio de Ivan Domingues, resultado da iniciativa do GT de Filosofia da Tecnologia da ANPOF. Caxias do Sul, RS: Educs, 2020. Conforme capítulo 19, A mão, o cérebro, a técnica e a evolução – André Leroi-Gourhan, por Luís Hernandes Matos Leite e Luiz Henrique de Lacerda Abrahão.

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