De como o conflito existencial não é uma oposição
corpo-alma, mas uma luta da alma consigo mesma[i]
Crítica
à Purificação da Alma e ao Platonismo. Agostinho investiga o
tema do regresso da alma[ii]
cuja tese principal é a de que o corpo é um cárcere da alma, ou seja, a
alma aspira voltar ao seu lugar de origem por não fazer parte de sua natureza
estar nesse mundo presa a um corpo.
Agostinho
se posiciona contra a condenação da natureza corpórea e sua crítica ao
neoplatonismo dá novo sentido a ideia de regresso da alma, trazendo grande
repercussão da Idade Média, só equiparada ao aristotelismo redescoberto pelos
árabes[iii].
Se o platonismo, principal ascendência agostiniana e influência cristã, era um
esforço de busca da verdade que implicava na purificação da alma
[relativa ao corpo], quando o critica, Agostinho mostra que o cristianismo é a
única e verdadeira filosofia.
Crítica
ao maniqueísmo. Porém, é de Platão que Agostinho se vale
para se opor ao maniqueísmo que rejeitava as coisas inferiores por atrair as
vontades e, nesse sentido, o mal, já que o filósofo grego tinha nelas um [mero]
ponto de partida para o acesso desse mundo sensível e corruptível e, de certa
maneira negado, para o verdadeiro mundo superior.
O
maniqueísmo frisa a dualidade e transforma o mal em uma substância,
naturalizando-o, ao mostrá-lo presente na natureza. Essa posição traz um erro acerca
da natureza da mediação entre corporal e espiritual, sensível e inteligível e
trazendo um mundo já carregado de mal.
A
concepção agostiniana: reunião corpo-alma. Se, mesmo
citando o Livro da Sabedoria[iv]
que apregoa que "um corpo corruptível pesa sobre a alma", o projeto
agostiniano é de uma reunião saudável entre corpo e alma, integridade saudável,
mas também significando a salvação humana.
No
livro Cidade de Deus, se há relação de opressão do corpo sobre a alma,
isso não significa um conflito de naturezas em que o mal encontraria sua causa
em algo alheio à vontade humana. Para Agostinho, na verdade o conflito é um
sintoma, uma desordem da natureza em relação à ordem natural do império da alma
sobre o corpo. Ou seja, se essa ordem não ocorre, é preciso restabelecê-la.
Evitar
todo o corpo. Mesmo filosofias de um princípio (não
dualistas) trazem a origem do mal fora da vontade e a purificação da alma passando
pelo controle das paixões. Entretanto, em sua nova análise, Agostinho
enfatizará a dissociação clássica entre corpo e alma legada da tradição, como
na Eneida em que o pranto de Eneias não denuncia sua alma, isto é, há uma
manifestação corpórea dissociada da alma, que a escusa.
Do
ponto de vista dos estoicos e do platônico Porfírio, as impurezas do corpo
contaminam a alma e são elas as paixões, o desejo, o medo, a alegria, que devem
ser evitadas para o encontro com Deus. E tal condenação da exterioridade,
compartilhada por Agostinho, pode dar força ao maniqueísmo em nova
naturalização do mal. Então, em seu projeto, Agostinho procura neutralizar
moralmente as paixões, argumentando que elas não são intrinsecamente boas
ou más. Ou seja, evitando o maniqueísmo, o projeto agostiniano condena a
exterioridade, mas sem substancializar o mal e se posicionando contra a tese de
que a carne é a prisão da alma.
Vontade
como alternativa entre o bem e o mal. No Cidade de Deus, as
paixões são encaradas como diferentes vontades cuja espécie independe, haja
vista seu valor moral (amor bom e desejo mau). Isso porque há uma fluidez do
vocabulário entre bons e maus amores, etc. e neutralizam-se as paixões pois
essas dependem de um valor moral, de que coisas que a vontade elege ou aborrece
(coisas que devem ou não eleger, etc.). Essa inflexão agostiniana, se não é um
elogio das paixões, redefine o vínculo delas com o mal e mostra que são só
vontades.
Condição
peregrina. Todavia, as paixões devem ser analisadas na
peregrinação da vida humana, pois são sintomas da nossa condição decaída.
Advém daí que um exilado tem paixões e não se pode negligenciar a sua miséria,
pois ele vive nesse mundo que não é sua terra natal, estando aquém da
integridade da natureza humana.
Em
sua análise, na Cidade de Deus, Agostinho enfatiza as memórias de outra vida e,
se aqui tememos e desejamos, sofremos e gozamos, se afeições retas, são
privativas dessa vida. E é daí que se insurge o problema da moral: não de um aparente
conflito do corpo com a alma, mas da alma consigo mesma, já que a queda é
causada por uma livre decisão da vontade, quando ela entrou em contato
consigo mesma[v].
É
uma tempestade interior, uma rixa da alma contra si mesma: ela comanda o corpo
que obedece, mas comanda a si mesma que resiste. A alma ordena que a alma
queira, mas ela mesma não obedece, seria soberba? Por detrás da ideia de
regresso da alma há uma tirania do corpo sobre a alma, mas um poder
contrário à natureza, causado pela alma própria ter produzido a sublevação do
corpo (na queda). Então, a alma não deve se divorciar, mas se reunir com o
corpo de forma íntegra para superar o conflito da carne que, oriundo da decorrência
moral e não dos movimentos do corpo[vi].
A
Metafísica da Criação. É pela decomposição do ato criador que
Agostinho explica a natureza alma corpo. Em um primeiro ato tem-se a criação de
um algo diferente de Deus, depois dá-se a esse outro os traços de semelhança com
o criador. Se o outro é a matéria sujeita à alteridade, a forma
impõe a sua marca. E, sendo cada corpo matéria e forma, também o é a alma
racional, enquanto matéria diferente de Deus, mas é Deus enquanto racional. Se
o primeiro ato gera um outro, a forma convoca o outro de volta a origem, em um
chamado para se reaproximar do criador.
A
nova roupagem do regresso da alma. A alma humana tem o livre-arbítrio,
pois é a imagem de Deus [que é livre] e é ela que deve comandar o homem no
regresso, mas em uma condição peregrina. De posse da condição decaída, é
preciso recuperar a saúde do corpo que deve regressar com ela, mas não ela
liberta dele. Ressalta-se que, na metafísica agostiniana, a alma não é a forma
e o corpo não é a matéria, embora haja um primado dessas relações, pois é a alma
que escolhe, sendo mais próxima da forma de Deus e o corpo, sendo mais próximo
da matéria, pois mais alteridade com relação a Deus.
[i] Resenha de https://www.youtube.com/watch?v=DkIh1_Gk7r4,
professor Moacyr Novaes. Em 06/09/2021.
[ii] Influenciado pela obra homônima de
Porfírio.
[iii] Frise-se, aqui, que Agostinho de
Hipona – um clássico e vivente da antiguidade tardia, não só elabora, como
transforma o que recebeu da antiguidade grega (Platão, Aristóteles, Plotino e
Porfírio) e romana (Cícero, Salústio e Virgílio).
[iv] Conforme https://pt.wikipedia.org/wiki/Livro_da_Sabedoria,
O Livro da Sabedoria (ou Sabedoria de Salomão) é um dos maiores livros
deuterocanônicos da Bíblia. Possui 19 capítulos e é considerado o volume
companheiro do Eclesiástico. (...) Ele ensina a verdadeira sabedoria que conduz
a uma vida justa e à felicidade.
[v] Não se nega a consciência do
conflito, mas ela é atribuída à própria alma. Isso fica claro à luz das
confissões agostinianas, da sua experiência pessoal e luta travada por ele, que
pode nortear sua tomada de posição nesse tema presente.
[vi] Moacyr ressalta que a domesticação
das paixões não é negação do livre-arbítrio. Isso porque é preciso estar ciente
da tirania do corpo e não se culpar, como uma renovação do “Conhece-te a Ti
Mesmo”: um diagnóstico da alma racional dividida em relação a si mesma.
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