Analisa algumas tendências delimitadoras do
desenvolvimento das tecnologias móveis que marcam direções e hegemonias a
partir de seu uso sociotécnico e permitem pensar no futuro tecnológico que se
avizinha[i]
Introdução.
Mendonça faz uma tipologia das tendências tecnológicas oriundas do grande
crescimento das tecnologias móveis e suas aplicações de software, marcadas por
amplo mercado tecno-capitalista e inovação industrial. A abordagem, entre
tendências que geram movimentos globais, se posiciona nos estudos sociais de
ciência e tecnologia focando na materialidade que a técnica imprime no espaço
social por um viés sociotécnico, sem pender para um lado ou outro. E a etnografia
material no uso dos artefatos permite trazer um quadro compreensivo desse
contexto tecnológico.
Paradigmas
e trajetórias tecnológicos. Mendonça enquadra as tendências tecnológicas
nos paradigmas de Kuhn, mas transpondo-os para a sociologia da tecnologia
principalmente pela abertura das revoluções epistêmicas a fatores externos,
diga-se, sociais que geram os conflitos (cf. Bijker)[ii].
Embora menos atenta ao componente estritamente social, a filosofia da
tecnologia também traz essa noção a partir de Borgmann e o paradigma do
dispositivo da contemporaneidade, onde os aparelhos, ao mesmo tempo que trazem
comodidade, escondem os processos de funcionamento e escolhas sociais. Já Ihde
traz a noção de telos associada a construção dos instrumentos, ou seja, o
propósito de quem os cria, seja a transparência, no caso de próteses, ou o GPS,
que procura representar o “real”. São tendências[iii]
tecnológicas a partir de valores e que contribuem com o objeto de análise de
Mendonça, sobre materialidade e sociedade.
Mendonça
ressalta que há expectativas quanto ao futuro tecnológico que induzem projetos
e, consequentemente, conflitos políticos e econômicos. Nesse ínterim, as
tecnologias de informação e comunicação (TIC), a partir do entrelaçamento da
eletrônica e informática nos dispositivos, trazem uma explosão da comunicação
(conforme Breton e Proulx) e uma valorização ideológica dessa vertente. Elas
crescem combinando dialeticamente um projeto social ou um imaginário, por um
lado e concretizações técnicas, por outro, gerando conceitos como a noção de
rede ou sociedade em rede. Dentro desse contexto paradigmático há tendências
nas tecnologias móveis que influenciam em paradigmas de mobilidade e
comunicação e são transversais a eles, tendências que serão analisadas por ele,
sustentadas por dados empíricos.
Tendências sociotécnicas em tecnologias móveis
Segundo
Mendonça, em um contexto de proliferação de objetos, as tecnologias móveis
levam a um quadro de “mobilização total”, que ele agrupa em cinco tendências:
realismo, continuidade técnico-corporal, prioridade ao contexto, velocidade e
compatibilidade/multifuncionalidade.
Realismo.
Há
no realismo tentativa de aproximação do que se supõe ser a realidade para que
se possa ver mais e melhor, mas, se no cinema 3D a representação se confunde
com o referente, no caso do GPS (Google Earth), por exemplo, não ocorre uma
simulação verdadeira, mas aproximação entre a representação (imagem) e o
referente (estrada, edifícios) que se impõe materialmente, por um ligação
direta e tensa. Segundo Ihde, a articulação homem máquina se estabelece por
incorporação da máquina como extensão do corpo, por ambientes em que elas
desaparecem na indiferença ou pela hermenêutica que será analisada por
Mendonça, “em que a máquina se coloca em face ao humano como texto a
interpretá-lo”.
Diferentemente
dos mapas tradicionais que exigem maior tematização por não serem realistas, no
caso de imagens 3D, sendo instrumento hermenêutico, o objeto tecnológico surge
tematizado, tendo o realismo como telos implícito e que permite interpretar o
mundo exterior[iv].
Entretanto, por mais que se anseie o real, não se escapa da condição
hermenêutica, pois o objeto precisa de interpretação e há uma intencionalidade
seletiva na funcionalidade, entre o que se destaca, a rua, o caminho, no caso
do Google e o que se reduz: as casas, a paisagem.
Continuidade
técnico-corporal. Ainda sobre a compreensão dos elementos
táteis, além da hermenêutica, há o reconhecimento corporal onde as
funcionalidades se conectam com o corpo do utilizador como: diminuição do
tamanho, reconhecimento de gestos e digitação com a mão, trazendo fluxo direto
e suave entre o organismo e a tecnologia.
A
diminuição, inerente às tecnologias móveis, trazem mobilidade sem perder de
vista a ergonomia, conciliando a relação com a mão e possibilidades de
transporte. Mendonça cita um falso enquadramento da diminuição do tamanho em uma
minimalidade tecnológica (em oposição à maximalidade tecnológica que busca
níveis elevados de produção, velocidade, performance, etc.) que traria uma
lógica de sustentação ou controle de efeitos, porém a microeletrônica decorre
da intensificação do poder tecnológico[v]
e não do seu desaceleramento ou proximidade com teorias do decrescimento.
A
continuidade se apresenta também na tela tátil, expoente da evolução das telas
oriundas da pintura, fotografia, etc., que se torna um instrumento que vai além
da mera representação. Retomando a incorporação de Ihde, aqui tratada por Mendonça
como continuidade técnico-corporal, pois mantém a dialética, tal característica
permite se relacionar com o mundo por um objeto quase ausente, como no caso do
giz que permite sentir o quadro como se o instrumento não existisse, mas que é
uma experiência diferente de tocar o quadro com o dedo. Então, conforme
Mendonça: “Se o telos da relação hermenêutica é o realismo, o da incorporação é
a transparência, pois pretende uma extensão completa do corpo ao mundo. Mas nem
isso se consuma. Daí que Ihde fale de uma semitransparência.”.
Ou
seja, a diminuição do tamanho permite uma melhor relação do indivíduo com o
objeto e isso fez com que, privilegiando a anatomia, caísse o uso da caneta
para tocar a tela que, se era extensão da mão, ainda trazia a necessidade de
ter que manipulá-la.
Mendonça
também traz a tese de Leroi-Gourhan segundo a qual é o artefato que se adapta
ao corpo, ou seja, só há tela tátil porque existe uma mão para a manipular,
visa-se o gesto e seu conforto, além da busca da intuição, mesmo que em uma
relação direta aparentemente primária entre mão e tela, ao invés de mão-caneta-tela
(primarismo, como um menu em carrossel que simula o efeito de uma força).
Prioridade
ao contexto. Aqui trata-se de utilizar o contexto do
usuário, como favoritos, redes temáticas, perfis que servem como critério de
categorização, etc. São funcionalidades que permitem às empresas priorizar
certas opções, mesmo que de forma involuntária e campanhas de marketing. Há uma
categorização prévia que pode se utilizar das escolhas do usuário dentro de uma
memorização cultural, que Mendonça atribuir ao conceito de “sistema mnemotécnico”
de Stiegler, baseado no histórico de experiências. Essa categorização também
gera uma desaculturação técnica, conforme conceituado por Leroi-Gourhan, na
qual tem-se um contexto tão reduzido que traz a falta de noção de pertença a um
grupo, pois fora de um âmbito de partilha. Aí é onde a personalização ignora o
sistema mnemotécnico. E mesmo as comunidades das redes sociais e a memória
mnemotécnica, por exemplo em buscas demográficas, podem produzir discriminação
pois, no fundo, busca-se a elisão de gestos através da previsibilidade das
estruturas culturais em intersecção com os contextos, visando reduzir
movimentos.
Velocidade.
É
aí que surge o aspecto cada vez maior de rapidez de uso nas TIC, seja na
quantidade de toques para se atingir uma função ou na velocidade de
processamento dos artefatos. É o objetivo da imediatidade aliada a uma
utilização intuitiva, seja um gesto corporal ou funcional, que formam um
complexo que se pretende reduzir por uma escrita inteligente, alfabetização
demográfica ou nos “atalhos”. Poderíamos chegar, aventa Mendonça, a
possiblidade da máquina responder à mente do utilizador, no que seria um
“cérebro-botão”. Mas essas tendências, ele observa, ocorrem de forma oculta em
uma caixa preta e quase indiferente, pois a tecnologia já se torna uma segunda
natureza, pano de fundo proposto por Ihde.
Compatibilidade
e multifuncionalidade. Última categoria, abordada duplamente,
trata do uso de determinadas aplicações em variadas plataformas e junto com
outras funcionalidades, ex. GSP e leitor de música e, na maioria das vezes, o
hardware se torna multifuncional pelo software. A dinâmica da
multifuncionalidade se dá pelo alargamento de funções, como câmera fotográfica
em smartphones.
Os
aspectos de compatibilidade e multifuncionalidade cabem na caracterização por
Lev Manovich dos “novos mídia”, convergência entre informática e mídias
tradicionais onde, nas tecnologias móveis, acoplam-se telefone, vídeo, etc.
Podem ser definidas por um código que permite programação, são de forma
modelar, ex. pixels que podem ser combinados, são produzidos em automação, que
os tornam livres do humano, grande variedade de versões, interfaces e
permitindo manifestações culturais.
Com
isso, cresce a utilização dos smartphones e novos modos de comportamento a ele
associados e mesmo estratégias de comercialização e marketing. E foi o
movimento da multifuncionalidade que converteu o celular em smartphone, que
traz um misto de comunicação e informação.
Conclusão.
A tipologia trazida por Mendonça, seja pela vontade social por mais
“realidade”, a “continuidade técnico-corporal” num híbrido entre objetos e
corpos, os contextos de uso que trazer atenção aos utilizadores, a velocidade
dos artefatos e do seu uso e, por fim, a expansão das funcionalidades, mostra
um conjunto de tendências que podem ser confirmadas no cotidiano e trazem
entendimento da disposição material nas consequências sociais. O uso nas TIC,
especialmente os celulares, são de fundamental relevância para entender esse
movimento e a construção de uma sociologia das configurações técnicas.
[i] Resenha do texto homônimo de Pedro
Xavier Mendonça na Revista Scientiae Studia. Disponível em https://www.scielo.br/j/ss/a/rYKtvRBfK79qsn8dHRnL5Ws/?lang=pt.
[ii] Mendonça também referencia o mesmo
tipo de modelo usado na economia por Dosi, que define um paradigma tecnológico
que avança por tecnologias específicas, como é o caso da indústria de
semicondutores. E, sob o ponto de vista sócio histórico, Hughes usa o conceito
de trajetória tecnológica que norteia o desenvolvimento por escolhas sociais,
como é o caso da hidrogenização na indústria química.
[iii] Menos que paradigmas...
[iv] Assim como a fotografia que não
exige tanta tematização embora possua um referente.
[v] Ainda ele leva em consideração o
aparato global que esses pequenos telefones implicam no uso do GPS por exemplo.
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