terça-feira, 7 de setembro de 2021

Materialidade e sociedade: tendências sociotécnicas em tecnologias móveis

Analisa algumas tendências delimitadoras do desenvolvimento das tecnologias móveis que marcam direções e hegemonias a partir de seu uso sociotécnico e permitem pensar no futuro tecnológico que se avizinha[i]

Introdução. Mendonça faz uma tipologia das tendências tecnológicas oriundas do grande crescimento das tecnologias móveis e suas aplicações de software, marcadas por amplo mercado tecno-capitalista e inovação industrial. A abordagem, entre tendências que geram movimentos globais, se posiciona nos estudos sociais de ciência e tecnologia focando na materialidade que a técnica imprime no espaço social por um viés sociotécnico, sem pender para um lado ou outro. E a etnografia material no uso dos artefatos permite trazer um quadro compreensivo desse contexto tecnológico.

Paradigmas e trajetórias tecnológicos. Mendonça enquadra as tendências tecnológicas nos paradigmas de Kuhn, mas transpondo-os para a sociologia da tecnologia principalmente pela abertura das revoluções epistêmicas a fatores externos, diga-se, sociais que geram os conflitos (cf. Bijker)[ii]. Embora menos atenta ao componente estritamente social, a filosofia da tecnologia também traz essa noção a partir de Borgmann e o paradigma do dispositivo da contemporaneidade, onde os aparelhos, ao mesmo tempo que trazem comodidade, escondem os processos de funcionamento e escolhas sociais. Já Ihde traz a noção de telos associada a construção dos instrumentos, ou seja, o propósito de quem os cria, seja a transparência, no caso de próteses, ou o GPS, que procura representar o “real”. São tendências[iii] tecnológicas a partir de valores e que contribuem com o objeto de análise de Mendonça, sobre materialidade e sociedade.

Mendonça ressalta que há expectativas quanto ao futuro tecnológico que induzem projetos e, consequentemente, conflitos políticos e econômicos. Nesse ínterim, as tecnologias de informação e comunicação (TIC), a partir do entrelaçamento da eletrônica e informática nos dispositivos, trazem uma explosão da comunicação (conforme Breton e Proulx) e uma valorização ideológica dessa vertente. Elas crescem combinando dialeticamente um projeto social ou um imaginário, por um lado e concretizações técnicas, por outro, gerando conceitos como a noção de rede ou sociedade em rede. Dentro desse contexto paradigmáticotendências nas tecnologias móveis que influenciam em paradigmas de mobilidade e comunicação e são transversais a eles, tendências que serão analisadas por ele, sustentadas por dados empíricos.

Tendências sociotécnicas em tecnologias móveis

Segundo Mendonça, em um contexto de proliferação de objetos, as tecnologias móveis levam a um quadro de “mobilização total”, que ele agrupa em cinco tendências: realismo, continuidade técnico-corporal, prioridade ao contexto, velocidade e compatibilidade/multifuncionalidade.

Realismo. Há no realismo tentativa de aproximação do que se supõe ser a realidade para que se possa ver mais e melhor, mas, se no cinema 3D a representação se confunde com o referente, no caso do GPS (Google Earth), por exemplo, não ocorre uma simulação verdadeira, mas aproximação entre a representação (imagem) e o referente (estrada, edifícios) que se impõe materialmente, por um ligação direta e tensa. Segundo Ihde, a articulação homem máquina se estabelece por incorporação da máquina como extensão do corpo, por ambientes em que elas desaparecem na indiferença ou pela hermenêutica que será analisada por Mendonça, “em que a máquina se coloca em face ao humano como texto a interpretá-lo”.

Diferentemente dos mapas tradicionais que exigem maior tematização por não serem realistas, no caso de imagens 3D, sendo instrumento hermenêutico, o objeto tecnológico surge tematizado, tendo o realismo como telos implícito e que permite interpretar o mundo exterior[iv]. Entretanto, por mais que se anseie o real, não se escapa da condição hermenêutica, pois o objeto precisa de interpretação e há uma intencionalidade seletiva na funcionalidade, entre o que se destaca, a rua, o caminho, no caso do Google e o que se reduz: as casas, a paisagem.

Continuidade técnico-corporal. Ainda sobre a compreensão dos elementos táteis, além da hermenêutica, há o reconhecimento corporal onde as funcionalidades se conectam com o corpo do utilizador como: diminuição do tamanho, reconhecimento de gestos e digitação com a mão, trazendo fluxo direto e suave entre o organismo e a tecnologia.

A diminuição, inerente às tecnologias móveis, trazem mobilidade sem perder de vista a ergonomia, conciliando a relação com a mão e possibilidades de transporte. Mendonça cita um falso enquadramento da diminuição do tamanho em uma minimalidade tecnológica (em oposição à maximalidade tecnológica que busca níveis elevados de produção, velocidade, performance, etc.) que traria uma lógica de sustentação ou controle de efeitos, porém a microeletrônica decorre da intensificação do poder tecnológico[v] e não do seu desaceleramento ou proximidade com teorias do decrescimento.

A continuidade se apresenta também na tela tátil, expoente da evolução das telas oriundas da pintura, fotografia, etc., que se torna um instrumento que vai além da mera representação. Retomando a incorporação de Ihde, aqui tratada por Mendonça como continuidade técnico-corporal, pois mantém a dialética, tal característica permite se relacionar com o mundo por um objeto quase ausente, como no caso do giz que permite sentir o quadro como se o instrumento não existisse, mas que é uma experiência diferente de tocar o quadro com o dedo. Então, conforme Mendonça: “Se o telos da relação hermenêutica é o realismo, o da incorporação é a transparência, pois pretende uma extensão completa do corpo ao mundo. Mas nem isso se consuma. Daí que Ihde fale de uma semitransparência.”.

Ou seja, a diminuição do tamanho permite uma melhor relação do indivíduo com o objeto e isso fez com que, privilegiando a anatomia, caísse o uso da caneta para tocar a tela que, se era extensão da mão, ainda trazia a necessidade de ter que manipulá-la.

Mendonça também traz a tese de Leroi-Gourhan segundo a qual é o artefato que se adapta ao corpo, ou seja, só há tela tátil porque existe uma mão para a manipular, visa-se o gesto e seu conforto, além da busca da intuição, mesmo que em uma relação direta aparentemente primária entre mão e tela, ao invés de mão-caneta-tela (primarismo, como um menu em carrossel que simula o efeito de uma força).

Prioridade ao contexto. Aqui trata-se de utilizar o contexto do usuário, como favoritos, redes temáticas, perfis que servem como critério de categorização, etc. São funcionalidades que permitem às empresas priorizar certas opções, mesmo que de forma involuntária e campanhas de marketing. Há uma categorização prévia que pode se utilizar das escolhas do usuário dentro de uma memorização cultural, que Mendonça atribuir ao conceito de “sistema mnemotécnico” de Stiegler, baseado no histórico de experiências. Essa categorização também gera uma desaculturação técnica, conforme conceituado por Leroi-Gourhan, na qual tem-se um contexto tão reduzido que traz a falta de noção de pertença a um grupo, pois fora de um âmbito de partilha. Aí é onde a personalização ignora o sistema mnemotécnico. E mesmo as comunidades das redes sociais e a memória mnemotécnica, por exemplo em buscas demográficas, podem produzir discriminação pois, no fundo, busca-se a elisão de gestos através da previsibilidade das estruturas culturais em intersecção com os contextos, visando reduzir movimentos.

Velocidade. É aí que surge o aspecto cada vez maior de rapidez de uso nas TIC, seja na quantidade de toques para se atingir uma função ou na velocidade de processamento dos artefatos. É o objetivo da imediatidade aliada a uma utilização intuitiva, seja um gesto corporal ou funcional, que formam um complexo que se pretende reduzir por uma escrita inteligente, alfabetização demográfica ou nos “atalhos”. Poderíamos chegar, aventa Mendonça, a possiblidade da máquina responder à mente do utilizador, no que seria um “cérebro-botão”. Mas essas tendências, ele observa, ocorrem de forma oculta em uma caixa preta e quase indiferente, pois a tecnologia já se torna uma segunda natureza, pano de fundo proposto por Ihde.

Compatibilidade e multifuncionalidade. Última categoria, abordada duplamente, trata do uso de determinadas aplicações em variadas plataformas e junto com outras funcionalidades, ex. GSP e leitor de música e, na maioria das vezes, o hardware se torna multifuncional pelo software. A dinâmica da multifuncionalidade se dá pelo alargamento de funções, como câmera fotográfica em smartphones.

Os aspectos de compatibilidade e multifuncionalidade cabem na caracterização por Lev Manovich dos “novos mídia”, convergência entre informática e mídias tradicionais onde, nas tecnologias móveis, acoplam-se telefone, vídeo, etc. Podem ser definidas por um código que permite programação, são de forma modelar, ex. pixels que podem ser combinados, são produzidos em automação, que os tornam livres do humano, grande variedade de versões, interfaces e permitindo manifestações culturais.

Com isso, cresce a utilização dos smartphones e novos modos de comportamento a ele associados e mesmo estratégias de comercialização e marketing. E foi o movimento da multifuncionalidade que converteu o celular em smartphone, que traz um misto de comunicação e informação.

Conclusão. A tipologia trazida por Mendonça, seja pela vontade social por mais “realidade”, a “continuidade técnico-corporal” num híbrido entre objetos e corpos, os contextos de uso que trazer atenção aos utilizadores, a velocidade dos artefatos e do seu uso e, por fim, a expansão das funcionalidades, mostra um conjunto de tendências que podem ser confirmadas no cotidiano e trazem entendimento da disposição material nas consequências sociais. O uso nas TIC, especialmente os celulares, são de fundamental relevância para entender esse movimento e a construção de uma sociologia das configurações técnicas.



[i] Resenha do texto homônimo de Pedro Xavier Mendonça na Revista Scientiae Studia. Disponível em https://www.scielo.br/j/ss/a/rYKtvRBfK79qsn8dHRnL5Ws/?lang=pt.

[ii] Mendonça também referencia o mesmo tipo de modelo usado na economia por Dosi, que define um paradigma tecnológico que avança por tecnologias específicas, como é o caso da indústria de semicondutores. E, sob o ponto de vista sócio histórico, Hughes usa o conceito de trajetória tecnológica que norteia o desenvolvimento por escolhas sociais, como é o caso da hidrogenização na indústria química.

[iii] Menos que paradigmas...

[iv] Assim como a fotografia que não exige tanta tematização embora possua um referente.

[v] Ainda ele leva em consideração o aparato global que esses pequenos telefones implicam no uso do GPS por exemplo.

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