De como os ciborgues que, se não são como nós,
representam muito do que somos. Ao mesmo tempo que nos rompem, nos confundem e
ampliam nossa subjetividade ao não humano, assim como as demais espécies.[i]
Destacando
sua origem na biologia e luta feminista, Cecília informa que Haraway
modelou o debate contemporâneo com o seu trabalho sobre o ciborgue. Ao criticar
o pensamento essencialista e o antropocentrismo ontológico, ela traz uma
ontologia que vem a ser um continuum entre ser humano, animais e
tecnologia e, nesse sentido, guarda função política na busca de um mundo “mais
amistoso”.
Cecilia argumenta que o Manifesto Ciborgue, de Haraway, traz questões como “Em que diabo de mundo vivemos?”, para unir discussão feminista com ciência e tecnologia. De natureza perversa e polimórfica, parte carne e parte silício, o ciborgue simboliza nosso tempo. Por um lado, o pós modernismo traz a junção de existência e tecnologia e, por outro, ao confundir as fronteiras, emergem grandes potencialidades, mas também angústias. Então, tal criatura como o ciborgue, feita de fios e sem interioridade, ao mesmo tempo que questiona nosso comportamento, põe em dúvida nossa singularidade e exclusividade. De acordo com Cecilia, com essa tese, Haraway desloca a antropologia filosófica para um modo de ser indissociável da tecnologia: uma ciborgue-ontologia que não se filia, pois marcado por uma promiscuidade ontológica que abre caminho transformador.
São três as rupturas do manifesto: 1.) pelo avanço científico quebram-se as barreiras entre o humano e o animal; 2.) quebra-se também a barreira entre organismo e máquina, entre natural e artificial e 3.) rompe-se a fronteira entre o físico e o não físico, já que a miniaturização da tecnologia a torna invisível, às vezes. Estando nas fronteiras, os ciborgues, símbolos da cultura hightech, rompem dualismos dominadores como eu/outro, o que faz/o que é feito, etc., as partes se confundem. Também rompem com a tradição originada por Sócrates, já que estão em um mundo tecno científico baseado na informação e oriundo da revolução digital do final do século XX que, se ainda dualista, permitem rompê-lo pela característica ciborgue aberta a questionamentos.
Como
não possuem natureza e nem identidade, os ciborgues não têm um mito de origem e estão sempre em
um trabalho-em-curso, fora da história de salvação, mas, embora fictícios,
têm realidade social. Entretanto, nesse quadro, já somos meio ciborgues, haja
vista os artefatos que a tecnologia nos imprime, como marca-passos, próteses,
lentes de contato, etc.
Do
ponto de vista ontológico, o ciborgue mostra sua faceta subversiva pois
redefine o modo de ser da subjetividade humana, não mais em termos de uma
essência única, mas de sistemas cibernéticos com uma condição sempre em
trânsito, que emite constantes feedbacks para reconstrução e adaptação. É essa
a promiscuidade ontológica da subjetividade ciborgue, mas que não quer dizer a
morte do sujeito, ao contrário, sua ampliação ao agregar modos de ser não
humanos, que recusam o sujeito humanista-liberal que estaria no topo da
hierarquia.
Nessa
linha, adiciona Cecília, quase vinte anos depois o Manifesto das espécies
companheiras, de Haraway, partindo agora da biologia, também traz um novo
significado para a reflexão antropológico-filosófica do ser humano que se
agencia em múltiplas camadas que constituem a espécie. Ou seja, nos conectamos
pelo processo evolutivo, além do parentesco familiar, com os complexos
orgânicos com os quais nos relacionamos.
Assim,
Haraway aponta para um engendramento coletivo onde “o conceito de social deve
ser ampliado, a fim de abarcar essa miríade de entidades em arranjos
intra-ativos, incluindo mais-que-humanos, outros-que-não-humanos, desumanos e
humano-como-húmus.” Emaranham-se, dialeticamente, sociedade, natureza e
tecnologia, mundo de híbridos e redes entrelaçadas com consequências
ontológicas e políticas.
[i] Filosofia da Tecnologia. Seus
autores e seus problemas. Organização de Jelson Oliveira e prefácio de Ivan
Domingues, resultado da iniciativa do GT de Filosofia da Tecnologia da ANPOF.
Caxias do Sul, RS: Educs, 2020. Conforme capítulo 12, A tecnologia entre a
ontologia e a política – Donna Haraway, por Cecília de Souza Neves.
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