sábado, 23 de maio de 2015

Dificuldades

De vez em quando existe uma dificuldade no pano de fundo de todas as coisas e situações; existe um cansaço, uma preguiça, uma falta de aderência à realidade. A realidade sempre nos cobra algo, senão ela nos convida, nos chama para alguma realização. Esse estar-vivendo-sempre-tendo-que-fazer-alguma-coisa cria dificuldades. As situações e exigências são diferentes ante cada cenário que se apresenta. Manter um discurso coerente ou se ater a alguma linha sempre promissora nos põe em dificuldades. É preciso articular um discurso, é preciso criar confiança: confiar e gerar confiança. Talvez, assim, o mundo responda. As dificuldades não se explicam facilmente. Algumas são criadas por nós, voluntariamente. Atribuímos valor a certas coisas, às vezes, muito mais pela criação de uma zona de conforto que prometa vida longa. Mas, nessa zona de conforto, não há crítica. Aí surge um conflito: a dificuldade que aparece na zona de conforto também aparece na ação, na abertura para o novo. Sempre há um novo, embora queiramos transformá-lo ou tratá-lo como velho. O velho está no nosso estoque, é familiar. O velho é companheiro, mas o velho não cansa? Dificuldades... Viver não é fácil. O que é fácil? O que é facilidade? A facilidade é pejorativa ou pode ser boa? Afinal, queremos facilidade ou dificuldades? Queremos dificuldades boas ou ruins. Há altos e baixos e as dificuldades sempre a elas se agregam. No momento em que elas aparecem precisamos ser fortes. Conciliar realidade com dificuldade: se a realidade for muito difícil, temos que facilitar, se a dificuldade for muito real, temos que encarar.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Ciência do pensamento

    Somos a espécie racional, característica que nos diferencia dos animais e dos demais seres que conhecemos no planeta. Trocando em miúdos: ser racional significa que raciocinamos, ou seja, pensamos e sabemos que pensamos, pensamos e refletimos, pensamos e calculamos. O pensar é o ato que nos dá autonomia, nos leva a tomar decisões; é pensando que sobrevivemos, sabemos que precisamos comer, como os animais; é pensando que nos relacionamos usando a linguagem; e é pensando que fazemos ciência. As ciências se utilizam do pensamento para resolver seus problemas e se desenvolver, o pensamento é o meio através do qual a teria se formula e se expressa. Para algumas ciências o pensamento é objeto, como a neurologia com o pensamento sendo mais objeto físico ou a psicologia, que vê o pensamento como objeto psíquico, mas ambas tem como pano de fundo alguém, um sujeito, seja ele corpo ou seja ele agente. Para a filosofia, o pensamento também é objeto, mas objeto desconectado, objeto em si mesmo, abstratamente separado de um corpo e universalmente separado de um sujeito: o que vale para um pensamento enquanto objeto filosófico, vale para todo e qualquer pensamento aqui e acolá, enquanto aquela hipótese for verdadeira ou tomada como verdade.
    Tratar a filosofia como ciência do pensamento objetivado em si, separado, poderia levá-la a ser considerada uma ciência do vazio ou com menor utilidade? Não acreditamos. Porque tudo o que fazemos, fazemos pensando. Há um pensamento que resolve um problema de matemática. Ok. Não paramos para pensar nesse pensamento porque as idéias matemáticas já nos são dadas como imutáveis e verdadeiras. Mas o pensamento que aí opera é o lógico, ele é condição de possibilidade para o acordo intersubjetivo entre eu e você, nós que concordamos que dois mais dois é igual a quatro. Há um pensamento que conhece o mundo: sabemos que o pão é de comer e a terra é para plantar, mas não paramos para pensar nisso; aí está a teoria do conhecimento. Se a pintura, o quadro é belo, aí mora um pensamento prazeroso, que não analisamos pelo viés estético filosófico. Ou a crítica política, etc. Há sempre um pensamento lá.
    A possibilidade de reflexão sobre coisas, sobre nós mesmos, uma desconstrução da realidade apontando para um horizonte novo que se abre, aí está uma atividade filosófica que se aproveita do pensamento revelador que emancipa. Precisa do discurso racional? Precisa sim. Tanto lá como aqui, não há objeto determinado e a ideia (o conceito) se desenrola por meio de uma argumentação coerente. Tem regra? Acreditamos que não. Acreditamos que a premissa é a coerência interna, tem que ser plausível, deve haver início, meio e fim, não precisa ser longo e pode representar uma ideia (conceito). Por exemplo, a frase: "Quem tem tudo não tem nada." pode ser filosófica, é uma frase que tem coerência interna, permite refletirmos logicamente que quem tem tudo não tem mais nada, porque já tem tudo, para quem tem tudo o resto é um nada e aí o que fazer com tudo? É uma frase vazia, solta e sem sentido? Não, não é. Ela permite verificar e concluir que qualquer ideia de totalidade não permite o diálogo e acaba por se encerrar em si mesma. Querer mais um pouco é bom? Talvez, mas pode ser perigoso. E querer menos? Tende ao nada. Equilíbrio! Deve ser esse conceito para o qual aquela frase remete. Na minha leitura daquela frase, esta é minha filosofia, a manifestação do meu pensamento. Para você essa frase pode significar outra coisa ou não significar nada. É o seu modo de pensar sua filosofia. E assim as suas ideias sobre tudo o que está por aí vão se associando e se moldando, formando um discurso coerente e que emancipa. Sem o exercício filosófico, agimos e pensamos naturalmente, com naturalidade. Com o exercício filosófico, pensando no que se pensa, a ciência do pensamento expressa um significado e uma leitura que pode me mudar, que pode te mudar, nos mudar. Vai que rola...

terça-feira, 19 de maio de 2015

Breve comentário sobre a religião

    É muito comum uma tese dos ateístas de que Deus é um produto do homem. Nós teríamos criado Deus para nossa própria redenção, dando sentido e objetividade à fragilidade de nossa vida. Por outro lado, não explicamos Deus. A própria filosofia já se aventurou por essas terras desconhecidas: Aristóteles inventou a metafísica e Kant a sepultou. Se a metafísica nasceu como filosofia primeira, que trataria das coisas que viriam primeiro (como relação de causa e efeito) ou das coisas mais importantes, para além da física, Kant nos mostrou que ela estaria no nível da coisa em si, coisas que não podem ser acessadas por nós no domínio do conhecimento. Até haveria espaço para especulação, mas não haveria confirmação prática. Todo esforço antigo, medieval e moderno, não iluminou as profundezas do além secular, e Kant atestou: deixemos para a fé. De um lado, conjecturas e crenças, de outro, explicação racional ou vida sem explicação.

    Mas, poderíamos nos abster de explicação? Muito difícil. Em nossos mais profundos devaneios nos perguntamos sobre a origem disso tudo. E a tese dos ateístas é uma falácia porque tudo que temos é inventado, toda a ciência e conhecimento humano é inventado, essa argumentação é circular e cai em petição de princípio porque a tese é inventada ela mesma. Não há conhecimento no domínio do homem que não provenha do próprio homem. E, se há algo exterior ao homem, esse algo só pode ser admitido e não explicado. Assim, admitimos que não há explicação racional, somente fé.

domingo, 17 de maio de 2015

Objeto da fenomenologia: a consciência intencional do sujeito constituída de vivências*

Husserl acentuava o processo intencional através do qual o sujeito se voltaria para si mesmo, fazendo aparecer a estrutura intencional da sua consciência, com o foco nesse processo interno. Através de um esforço reflexivo, objetivando as estruturas internas da consciência, seria deixado de lado o que normalmente aparece, visando fazer aparecer o que não aparece: as vivências. Seriam deixados de lado os objetos intencionais que estão no mundo porque eles não seriam interiores à consciência, eles apareceriam: seriam os polos aos quais a consciência se dirigiria. E eles nem mesmo seriam necessários para as vivências aparecerem, poderiam ser visados objetos inexistentes ou objetos irreais, resultados de conjecturas. A fenomenologia deveria fazer aparecer as vivências, torná-las objeto, através da descrição eidética da imanência psíquica, da região ontológica interior da consciência, de sua essência noética.
As vivências seriam constituídas de sensações e apreensões objetivantes. As sensações seriam o material inerte da consciência, elas seriam vividas, não intencionais e não apareceriam. As apreensões objetivantes seriam os atos intencionais que fariam aparecer os objetos. Então, o vivenciar seria um mecanismo que não aparece, a partir de sensações que não percebemos, mas que são sensações de algo e que são animadas pelas apreensões que direcionam a consciência rumo aos objetos, em um esquema de conteúdo-apreensão. Ou seja, o material sensível inerte é animado por um ato mental que então constitui a referência intencional ao objeto visado.
Husserl atribuía ao sujeito o poder de constituir o sentido objetivo do correlato visado através desse processo reflexivo e interior. Somente por meio do interior os objetos do mundo receberiam sentido ativamente, mas, embora esse real não estivesse reduzido ao interior do sujeito, ele só se manifestaria pela atividade (imperceptível) do sujeito. As emoções também seriam manifestadas por meio da intencionalidade, como atos complexos: uma tomada de posição afetiva seria construída sobre uma apresentação prévia do objeto, supondo um ato objetivante prévio.
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* Notas de aula de História da Filosofia Contemporânea, professor Marcus Sacrini. 

sábado, 9 de maio de 2015

Do buraco a filosofia saiu e no buraco ela ficou

     Eu era eu há 5 anos atrás, mas eu era, digamos, descontente. Não posso explicar exatamente o motivo daquele descontentamento, mas faltava algo. Eu não sabia o que faltava, mas resolvi buscar alguma coisa: a filosofia. Hoje, com a filosofia, não me parece que falte algo, embora eu não saiba o que eu busco. A falta é um buraco que nos é imposto e que nos incomoda. A busca é um buraco que criamos e que nos incomoda. O buraco da falta nos invade e nos inibe. O buraco da busca nos move. O buraco está lá, é o mesmo, sempre teremos que lidar com ele. Por mais areia que coloquemos dentro dele, nunca vamos cobri-lo. Por mais que o cavemos, nunca encontraremos o fundo. 
     Podemos cair dentro do buraco e sermos engolidos por ele, sem conseguir sair. Por mais que tentemos, escorregamos. Quanto mais força, menos energia. A ansiedade de sair do buraco nos torna incrédulos, o tempo passa e o buraco continua. E, nós, dentro do buraco. Então percebemos os mais sórdidos detalhes do buraco, percebermos que ele nos esquenta quando está calor e nos esfria quando está frio. Percebermos que quanto mais luz queremos, mais escuro ele fica. E quando vem a água... Vindo em grande quantidade, maior o buraco fica e nós a girar com a água dentro do buraco. Ficamos tontos. Vindo pouca água, ela vem pouca porque temos sede. A água se mistura com a terra e fica suja, não mata a nossa sede. E o buraco está ali para nos proteger dos outros. Temos medo dos outros e nos escondemos dentro do buraco. Se nos chamam, não temos para onde correr, cavamos, cavamos, cavamos!! Cavamos... Não tem jeito, vão nos achar.
     Mas, se vão nos achar, porque não os chamamos, então? Venham todos, por favor, comigo para dentro do buraco! Podemos, juntos, lutar contra as adversidades...  Hum. Bobagem minha. Eles não têm tempo, ninguém tem tempo de lutar com os outros pelas adversidades deles. Mas é só isso: uma questão de tempo, nada mais. E o tempo, hoje, é precioso. Por isso entendemos porque eles não vêm. Tudo bem, tudo bem. Não nos resta saída, o buraco está em nós e nós estamos no buraco. Então, entremos dentro dele. Cultivemos o buraco. Abandonemos o buraco da falta pelo buraco da busca. Buraco por buraco, que ele seja nosso. Criemos o buraco a nosso modo e, se preciso for, a revelia dos outros. Criemos um buraco, não para preenchê-lo, nem para aumentá-lo, criemos nosso buraco para deixá-lo ali, conosco. Ele é nosso buraco e de mais ninguém. É o buraco mais importante que tem porque é nosso e precisa ser cultivado, e mesmo cultuado, a nosso modo. Quem quiser pode se emburacar, não paga nada. Mas não há um compromisso, fiquem à vontade. 
     Buraco, buraquinho, buracão. Grande ou pequeno, limpo ou sujo: é o meu buraco. Não é onde me escondo, é onde me crio. É o meu buraco.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Distanciamento e intimidade com o mundo*

Por que filósofo? Conforme Giannotti, o que busca o filósofo é um exercício de distanciamento e intimidade como o mundo, porque o filósofo visa o mundo, mas pelo olhar de outro filósofo. Quando o filósofo lê, consome uma filosofia, ele não a destrói, mas a perpetua; é de uma ideia, de uma filosofia que surgem novas ideias e novas filosofias. Ao mesmo tempo em que é um exercício autônomo é também dependente, porque é um exercício de transformação. Meio ao modo da noção de história hegeliana é a história de um espírito que se desenrola no tempo, não um espírito absoluto, mas um espírito encarnado que está no mundo em interação com outros pensantes. Assim é o professor quando leciona e cria: da atividade surgem novos pensamentos.
O exercício autônomo do livre pensar, mas dependente de outras leituras porque intermediando o acesso ao mundo que afasta e aproxima, esse exercício, assim colocado por Giannotti, é científico porque, segundo ele, apresenta um resultado objetivado. Nesse sentido, permite a análise por outra subjetividade que também o objetiva, apresentando esse caráter de perpetuação. E, mais do que nunca, hoje o filósofo é financiado pelo Estado. O filósofo acadêmico, ao mesmo tempo em que é funcionário do Estado com disciplinas e obrigações, ainda mantém certo caráter subversivo, mas muito mais reflexivo. E a ele muito se associa a imagem do professor aposentado, como o legislador de Rousseau - aquele que "ilumina" o povo, como o escritor proposto por Sartre - aquele que, de dentro da academia e dentro dos círculos cultos pode fazer a reflexão. Mas, menos do que nunca, independentemente, porque compromissado com os deveres que a produção dos ethos acadêmico exige.
Mas se a filosofia é o exercício da reflexão, Giannotti conclui o artigo indicando que o filósofo não deve se satisfazer apenas com o discurso: é preciso interação, diálogo, é preciso se aproximar da prática. É estimulando aquele movimento de intimidade e distanciamento nos outros que o filósofo poder se libertar e escapar da mão forte do Estado que o financia. É preciso ir a fundo à reflexão exatamente para se verificar até que ponto existe essa interferência ou não. A própria ciência, que se autoproclama neutra e autônoma, se vê às voltas de um exercício teórico e quase apartado da realidade, quase estéril no que tange a grandes inovações. O filósofo precisa ir além desses efeitos aparentes dados pela lógica competitiva do mercado onde é necessário produzir, do capital financeiro que estabelece prioridades e da mão paterna do Estado que afaga, mas submete. A consciência que o filósofo deve apresentar, segundo Giannotti, pode aparecer no uso de suas palavras e nas consequências que ele pode trazer aos jovens, ao mesmo tempo em que pode se difundir pela sociedade de modo que suas reflexões diminuam as diferenças entre filósofos e não filósofos.
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Resenha – texto “Por que filósofo?” – José Arthur Giannotti

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Aula de Didática*

    Conforme Perrenoud, podemos verificar três tipos de currículos escolares: 1.) currículo formal: aquele que está documentado, que dita o que será lecionado (ou não) e como; 2.) currículo real: do que está documentado, o que de fato acontece na prática, desvios de planejamento, etc.; 3.) currículo oculto: o que é aprendido/apreendido pelos alunos mas que não é explicitado, documentado, por exemplo, que na escola há um hierarquia, que tem que usar uniforme e isso se parece com o uniforme que será utilizado nas fábricas, que na festa junina da escola o caipira vira alvo de deboches e piadas e é desvalorizado sem ficar claro para os alunos, etc. Diálogo de aula:

Interlocutora 1: Professora, mas a escola não tem que formar cidadãos conscientes e participativos? Na verdade, as pessoas não sabem se comportar em sociedade, esse não seria um papel da escola?

Interlocutora 2: Entendo que isso é um problema de vivência de cada um, que nasce com a gente e vamos desenvolvendo durante toda a vida. Isso seria relativo ao âmbito familiar, os pais, primos, toda uma interação que se constrói e que nos molda. Imagine o fardo dos professores, além de ter que ensinar o conteúdo (ou vá lá..., que seja competências e habilidades) e ainda ter que educar os alunos.

Interlocutora 1: Mas as pessoas hoje não tem o mínimo de civilidade. Outro dia, eu estava na fila do bandejão e, de repente, entrou um monte de gente na minha frente, não pediram licença e acharam aquela atitude a coisa mais normal.

Interlocutora 3: Na verdade, cidadãos conscientes e participativos devem pensar além: qual a situação dos funcionários que nos estão servindo no bandejão, faz quanto tempo que não tem aumento. Alguns moram em favela, outros são terceirizados e, ainda, tem muitos funcionários com LER (lesão de esforço repetitivo). Cidadãos conscientes e participativos não pensam somente neles mesmos, pensam além, além das suas próprias fronteiras pessoais e individuais.

Interlocutor 4: Numa outra aula em que eu estava participando, a professora comentou a respeito da nossa atitude atual de sempre responder, nunca intervir. A gente não transforma mais o nosso espaço, só ficamos reclamando e não temos atitude.

Interlocutor 5: O problema não é entrar na fila do bandejão comportadamente, o problema é saber porquê estamos fazendo aquilo. O que se ensina na sala de aula acontece sob uma relação de autoridade entre professor e alunos, não sabemos para que serve aquilo, mas temos que fazer.

Interlocutora 1: Mas o que eu dizia sobre moralização, não quer dizer algo que se fazia na ditadura, é um mínimo que é necessário na vida real. Na escola onde faço estágio, na prática, não se consegue dar aula, teria que haver um mínimo de imposição ou de controle. Isso seria um currículo moral, ficaria escondido no currículo oculto ou deveria ser um artifício a ser acrescentado ao currículo formal?

Eu: só ouvindo...
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* as falas foram resumidas e estilizadas.