sábado, 30 de setembro de 2017

A corrupção do homem*


Em tempos de progresso tecnológico e predomínio do mundo virtual, recorrer a Rousseau pode “iluminar” algumas questões. Evitando o anacronismo, consideremos a análise que Rousseau faz dos costumes em seu Discurso sobre as ciências e as artes, no ano de 1749 e que, já na época, foi objeto de muitas críticas. Para ele, a ciência e as artes estariam relacionadas à decadência moral dos homens já que os artistas viveriam “à custa” dos que trabalham e o progresso científico os levariam ao luxo, ócio e vaidades. Isso em pleno iluminismo!! Ele considerou suas próprias peças e poesias um erro de juventude e abandonou as roupas da época em uma verdadeira reforma pessoal. Controverso, mas saibamos entender sua tese paradoxal: o progresso das ciências e das artes levaria à degeneração dos costumes e traria um suposto conforto maculado.
A cultura, que é criticada no primeiro discurso, será colocada a parte no segundo, o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, quando Rousseau sai à busca da condição natural do homem. Será necessário abandonar os livros que falam do homem civilizado [não natural] para encontrar a essência da natureza humana e o ponto aonde a desigualdade foi introduzida. Nesse suposto estado natural haveria dois princípios inatos e independentes da razão humana: o amor de si, através do qual o homem se interessa pela sua própria conservação já que quer viver, e a piedade natural, que é o sentimento de repugnância ao sofrimento de outro ser vivo. A cultura traria o enfraquecimento da piedade natural e transformaria o amor de si em amor próprio.
Se há uma desigualdade natural, por exemplo, de idade entre a criança e o velho, entre homens altos e baixos ou lentos e rápidos, há uma desigualdade moral ou política de riqueza, poder e privilégios. Mas qual a sua origem? Em que momento ela foi introduzida se opondo à natureza? No estado natural todos são robustos e buscam alimento respeitando a desigualdade natural. Já a desigualdade civil agrava a desigualdade natural. Essa história hipotética do homem se vale seja do afastamento dos livros científicos seja dos fatos. Os discursos mostram que o progresso não melhorou os homens moralmente e não os tornou felizes. Se cada passo do progresso traz o conforto como avanço, também traz o enfraquecimento das habilidades naturais como perda e o aumento da desigualdade.
A teoria do estado natural é inerente à época fazendo parte dela Hobbes, Locke e Pufendorf, entre outros, mas, para Rousseau o estado de natureza humana não aponta para a criação de um estado civil que deveria evitar o aniquilamento da espécie pela lei, já que para ele o estado natural é um estado feliz. Nele, os homens vivem dispersos e isolados, o homem é independente e autossuficiente e sua destinação é permanecer na vida e na natureza[1]. No campo moral, dado que os homens não tem relação entre si, não há deveres comuns e, por conseguinte, não há vícios e virtudes. O homem natural não é bom nem mau e não se pode falar em caráter ou moral.
Porém, gradativamente, o homem vai alterando suas condições materiais e sai de sua vida nômade para uma vida familiar e, com o progresso, surgem as diferenças entre eles. Das diferenças vêm as comparações e a dar-se preferência a esse ou aquele. Antes se escolhiam “coisas”, agora se escolhem pessoas e valores [criados]. O homem civilizado traz consigo as paixões e, na tentativa de agradar aos outros, surgem as aparências e já não é possível saber o que é verdadeiro ou falso, o que é realidade ou aparência.
Dá-se início o processo de degeneração: na dependência de uns em relação aos outros em virtude das divisões de trabalho aparece o conflito de direitos que, associado às já conhecidas desigualdades naturais levam o homem a um estado de guerra. A vaidade faz com que homem queira consideração e prestígio, ele quer agora levar vantagens, aumentar seus bens. Vê-se a transformação do amor de si em amor próprio e, como nessa situação ninguém tem segurança, o homem decide pelo pacto de construir leis comuns que deveriam ser obedecidas. Mas é aqui que se atinge o ápice do declínio: os mesmos vícios que fazem os homens inventarem a lei são os que os fazem burlar a lei. O ponto nevrálgico da corrupção humana é a transgressão às leis [2].
Nota-se em Rousseau um pessimismo histórico e uma crítica de sua modernidade e das leis ineficientes e que, por um contrato não representativo, não são guiadas pelo interesse comum. Do balanço do homem natural com o homem civilizado observa-se o surgimento das paixões e inclinações, do trabalho, do ser e parecer. Da pergunta se a origem da desigualdade está fundada na lei natural obtém-se a resposta de que não: ela está fundada na propriedade legitimada nas leis, no desenvolvimento do espírito humano e na desigualdade moral contrária ao direito natural. O modelo de felicidade de Rousseau é o homem natural e isso pode ser muito instrutivo nos nossos dias.


* Da série Revisando as notas das aulas da escola – voltamos ao 1º Semestre de 2012 que discutiu o tema da servidão voluntária de La Boetie e o modelo de Rousseau referente ao progresso e à política, na disciplina de Introdução à Filosofia.
[1] As teorias do estado de natureza são amplas e requerem análise aprofundada. As concepções de estado de natureza guiam a teoria política, nesse momento. Aparte ainda há discussões de comparação entre os homens e os animais ou mesmo especulação sobre o surgimento da linguagem.
[2] Há maiores implicações nesse estágio como a perda da liberdade ao abrir-se mão do estado de natureza; há a primazia dos ricos sobre os pobres nessa instauração; há a culpa do que primeiro cercou a terra e dela se apropriou; há o surgimento da tirania; há a hereditariedade ilegítima; enfim, há um aprofundamento que se fará necessário analisar, mas que já deverá acontecer em termos de política e do Contrato Social.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Colação de grau

As palavras têm seu significado. Colar é grudar, juntar de modo que não desgrude, senão a cola não é boa. Grau é uma graduação, um nível: primeiro grau, segundo grau e por aí vai. Porém,  algumas combinações de palavras poucos entendem. O que é colar um grau? Onde um grau será grudado? Em nosso país, quantos saberiam o que é colar grau?
Palavras vazias, ação vazia. Colar grau não serve para nada. Compromisso forjado. O grau depende do seu grau. Você é o termômetro. Um dia alguém inventou uma burocracia chamada "colar grau" que visava chancelar algo, uma etapa. É uma combinação abstrata, mas um fato que nos persegue. É aí que claramente as palavras ganham força e colar grau se torna ou se supõe uma responsabilidade. "Colar grau" significa: não se esqueça do que fez!!! É um lembrete ou uma recordação? Se colar grau não significasse nada não haveria essas palavras. Não há honra sem mérito e não há palavra sem significado.
Muitas vezes a força das palavras serve para separar. Quanto mais se sabe mais se pode. A cada grau uma nova ordem de palavras. Afinal, para que serve o grau? Livremo-nos das palavras, livremo-nos das burocracias!!! Rumo à economia de palavras, rumo ao pensar, sentir, dormir. Aparemos as arestas burocráticas, evitemos o mérito. Eles, para quê? Mundo civilizado hipócrita que impõe obstáculos a serem superados para nos redimir. Mas,  + hipócrita é um discurso fantasioso como esse, pois tem como mote a palavra e que só se cria pela palavra. E viva a colação de grau. Viva tudo isso.