Em
tempos de progresso tecnológico e predomínio do mundo virtual, recorrer a
Rousseau pode “iluminar” algumas questões. Evitando o anacronismo, consideremos
a análise que Rousseau faz dos costumes em seu Discurso sobre as ciências e as artes, no ano de 1749 e que, já na
época, foi objeto de muitas críticas. Para ele, a ciência e as artes estariam
relacionadas à decadência moral dos homens já que os artistas viveriam “à custa”
dos que trabalham e o progresso científico os levariam ao luxo, ócio e vaidades. Isso em pleno
iluminismo!! Ele considerou suas próprias peças e poesias um erro de juventude
e abandonou as roupas da época em uma verdadeira reforma pessoal. Controverso,
mas saibamos entender sua tese paradoxal: o progresso das ciências e das artes
levaria à degeneração dos costumes e traria um suposto conforto maculado.
A
cultura, que é criticada no primeiro discurso, será colocada a parte no
segundo, o Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens, quando Rousseau sai à busca da
condição natural do homem. Será necessário abandonar os livros que
falam do homem civilizado [não natural] para encontrar a essência da natureza
humana e o ponto aonde a desigualdade foi introduzida. Nesse suposto estado
natural haveria dois princípios inatos e independentes da razão humana: o amor
de si, através do qual o homem se interessa pela sua própria conservação já que
quer viver, e a piedade natural, que é o sentimento de repugnância ao
sofrimento de outro ser vivo. A cultura traria o enfraquecimento da piedade
natural e transformaria o amor de si em amor próprio.
Se
há uma desigualdade natural, por exemplo, de idade entre a criança e o velho,
entre homens altos e baixos ou lentos e rápidos, há uma desigualdade moral ou
política de riqueza, poder e privilégios. Mas qual a sua origem? Em que momento
ela foi introduzida se opondo à natureza? No estado natural todos são robustos
e buscam alimento respeitando a desigualdade natural. Já a desigualdade civil
agrava a desigualdade natural. Essa história hipotética do homem se vale seja
do afastamento dos livros científicos seja dos fatos. Os discursos mostram que
o progresso não melhorou os homens moralmente e não os tornou felizes. Se cada
passo do progresso traz o conforto como avanço, também traz o enfraquecimento
das habilidades naturais como perda e o aumento da desigualdade.
A
teoria do estado natural é inerente à época fazendo parte dela Hobbes, Locke e
Pufendorf, entre outros, mas, para Rousseau o estado de natureza humana não aponta
para a criação de um estado civil que deveria evitar o aniquilamento da espécie
pela lei, já que para ele o estado natural é um estado feliz. Nele, os homens
vivem dispersos e isolados, o homem é independente e autossuficiente e sua destinação
é permanecer na vida e na natureza[1]. No
campo moral, dado que os homens não tem relação entre si, não há deveres comuns
e, por conseguinte, não há vícios e virtudes. O homem natural não é bom nem mau
e não se pode falar em caráter ou moral.
Porém,
gradativamente, o homem vai alterando suas condições materiais e sai de sua
vida nômade para uma vida familiar e, com o progresso, surgem as diferenças entre
eles. Das diferenças vêm as comparações e a dar-se preferência a esse ou aquele.
Antes se escolhiam “coisas”, agora se escolhem pessoas e valores [criados]. O homem
civilizado traz consigo as paixões e, na tentativa de agradar aos outros,
surgem as aparências e já não é possível saber o que é verdadeiro ou falso, o
que é realidade ou aparência.
Dá-se
início o processo de degeneração: na dependência de uns em relação aos outros
em virtude das divisões de trabalho aparece o conflito de direitos que,
associado às já conhecidas desigualdades naturais levam o homem a um estado de
guerra. A vaidade faz com que homem queira consideração e prestígio, ele quer
agora levar vantagens, aumentar seus bens. Vê-se a transformação do amor de si
em amor próprio e, como nessa situação ninguém tem segurança, o homem decide
pelo pacto de construir leis comuns que deveriam ser obedecidas. Mas é aqui que
se atinge o ápice do declínio: os mesmos vícios que fazem os homens inventarem
a lei são os que os fazem burlar a lei. O ponto nevrálgico da corrupção humana
é a transgressão às leis [2].
Nota-se
em Rousseau um pessimismo histórico e uma crítica de sua modernidade e das leis
ineficientes e que, por um contrato não representativo, não são guiadas pelo
interesse comum. Do balanço do homem natural com o homem civilizado observa-se
o surgimento das paixões e inclinações, do trabalho, do ser e parecer. Da
pergunta se a origem da desigualdade está fundada na lei natural obtém-se a
resposta de que não: ela está fundada na propriedade legitimada nas leis, no
desenvolvimento do espírito humano e na desigualdade moral contrária ao direito
natural. O modelo de felicidade de Rousseau é o homem natural e isso pode ser
muito instrutivo nos nossos dias.
* Da série Revisando as notas das aulas da escola – voltamos ao 1º Semestre de
2012 que discutiu o tema da servidão voluntária de La Boetie e o modelo de
Rousseau referente ao progresso e à política, na disciplina de Introdução à
Filosofia.
[1] As teorias do estado de natureza
são amplas e requerem análise aprofundada. As concepções de estado de natureza
guiam a teoria política, nesse momento. Aparte ainda há discussões de
comparação entre os homens e os animais ou mesmo especulação sobre o surgimento
da linguagem.
[2] Há maiores implicações nesse
estágio como a perda da liberdade ao abrir-se mão do estado de natureza; há a
primazia dos ricos sobre os pobres nessa instauração; há a culpa do que
primeiro cercou a terra e dela se apropriou; há o surgimento da tirania; há a
hereditariedade ilegítima; enfim, há um aprofundamento que se fará necessário
analisar, mas que já deverá acontecer em termos de política e do Contrato Social.
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