sábado, 22 de setembro de 2018

Intersecção

Uma pessoa pode se confundir com outra? Se sim, até que ponto? Leio um livro e há uma estória ali, há vários personagens, uns mais marcantes e outros menos. O que ocorre é que a leitura, silenciosa, está dentro de nós. Exercício no mais das vezes solitário. Pensamos e imaginamos uma estória de outrem, mas que nos atinge. Nesse contexto há três instâncias em ação, que se interseccionam: o escritor, o leitor e os personagens, para onde saltamos ao imponderável.
Nessa interseção, até que ponto o escritor está no personagem e até que ponto o leitor está no personagem? De fato, eles o disputam, cada um à sua maneira, e o personagem, fantoche dessas ilusões, ganha vida: daqui para lá e de lá para cá, pois há uma luta incessante que só acaba quando o livro acaba que é quando tudo acaba. Porque o leitor, envolvido, deseja determinado caminho ou situação para o personagem que definitivamente, não está em seu poder de atuação, ou estaria? Já o escritor, dono da tinta, dá a palavra final. Mas qual a sua independência? Como não duvidar que, após ganhar vida, o personagem  não o domine?  Inglória disputa... Sem vencedor!
É quando nos encontramos com Trapo, de Tezza: um personagem professor que lê as memórias de um poeta precoce, que se suicidou. A transição entre vida de professor, escritos de poeta e sonhos de professor se da sutilmente e precisamos estar atentos para saber onde estamos. A intersecção da trama intersecciona a relação escritor leitor: há um limite ou é tudo uma coisa só? Da trama da vida real, de pessoas estanques, passamos para a trama dos papéis (personagem, leitor, escritor) para nos perdemos na trama dos personagens, quando já não há mais domínio de qualquer fato. 
Por hora, não sabemos aonde a trama de Tezza desembocara, mas o que podemos afirmar é que estamos interseccionados todos, na trama do mundo. Tudo nos toca e influencia, portanto, não nos resta alternativa: só a ação e o posicionamento podem de alguma forma mudar a história de nossa vida, mesmo que por linhas tortuosas.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

bichinho perdido

Imagine um bichinho perdido na selva. Para ajudar a imaginação e evitar devaneios, imagine que ele é um esquilo de meia-idade. Corpo bem desenvolvido, vasta pelagem e membros delineados, porém pequenino. Dentre tantos dotes, ele é um bichinho perdido na selva. Saltitante, vai daqui para lá e de lá para cá. Nas andanças, sempre procura comida e quando cansa, dorme. Mas o bichinho está aflito: ele está perdido e isso o contrai e contraria. Ele precisa se achar, essa é sua única preocupação, mas é uma preocupação incessante, estressante. O bichinho quando dorme, não importa se um predador vem a lhe espreitar, esse perigo não está em seus planos. O bichinho perdido só se verte a problemas reais, um problema que de fato existe e não se importa com possibilidades. No entanto, se o bichinho percebe o perigo, o vociferar da cadeia alimentícia, esse então se torna problema maior e, se perdido, fica pior: mais perdido estará, de tanto correr.
O bichinho está sempre aflito, mas come, dorme, excreta e descansa e, apesar disso, não se cansa: sua meta é se achar. Mas onde estão todos? Esse mato alto, um céu cinza, ecos do falcão. O bichinho procura tenso, superando obstáculos. Para o bichinho, todos esses afazeres são necessidades que se somam, de tão longe que o prazer se encontra. Se o veem, por ventura, comendo, não sabem os males que o atormentam. Mas se o veem correndo sabem que há motivo. O bichinho quer achar para se achar. O bichinho quer seu bando. Sem bando, sambando, segue, seu bando sabe-se lá onde está. Pobre bichinho, por que isso tanto te desconcerta? Afinal, esse problema, é um problema real?
O bichinho era só bichinho, sem sobrenome, mas de tanta força ganhou outro nome: bichinho perdido. Agora, tão conhecido, não se faz de rogado, sua sina seu batismo. Bichinho perdido, tu não podes viver assim, simplesmente perdido? Precisas estar aflito, sempre correndo? Bichinho perdido decida-se: o que te falta é o que tu queres ou tu queres a falta? Não te basta ser um bichinho perdido, por que tamanha aflição? Saiba bichinho que nessa selva há tantos e tantos outros bichinhos perdidos que não se incomodam. Você pode ser mais um bichinho perdido se for apenas um bichinho perdido, mas se for para ser um bichinho perdido aflito, se ache!! Afinal, se perder é mais difícil do que se achar.

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Respirar e seguir

Há muitos momentos esquisitos na vivência. O fluxo de imagens, sons, cores e cheiros que passam pelo mundo, e que nos perpassam, é um fluxo contínuo e dúbio, senão contraditório. Com certeza, não há certeza. Soma-se ao externo o interno, o mesmo fluxo de imagens, etc., está dentro de nós. Não importa aqui o que essas coisas sejam de fato, seus nomes as indicam e fazem delas objetos que nos tocam. É nessa balburdia que vivemos e assim confundimos o que está em nós, com o que nos perpassa e com o que está fora. Como ter certeza?
A imagem mental proveniente de um pensamento ou sentimento tem sua origem exclusivamente interna ou é uma interferência externa? Ela também pode ser um pouco de cada. Nessa incerteza, não há autonomia. Se uma houvesse a outra poderia ser teorizada. Mas há muitas outras teorias e teorizações, pois o cérebro humano, enquanto vivo, não para. Além disso, há palavras e sentimentos que nos tocam. Mais do que a objetividade externa que caracterizávamos, há uma subjetividade que a acompanha, muitas vezes.
E há conspirações. Não bastasse essa efeméride de eventos, ainda contribuímos com a produção desenfreada de ruídos de toda espécie. Há falsificações, estímulos nervosos de origem psíquica e impulsos cerebrais por vezes sem origem, embora na maioria das ocorrências uma dor seja uma dor física de um desgaste biológico. Porém, se por algum motivo o “momento esquisito” se transforme em um “estado esquisito”, só nos resta respirar e seguir.