sábado, 31 de julho de 2021

A máquina como construção social

Mais do que um aparato técnico da evolução biológica humana, a máquina é resultado de um processo social[i]

Álvaro Vieira mostra que a reflexão filosófica sobre as máquinas, atualmente e a despeito dos autômatos, traz a questão se elas poderiam pensar. Porém, segundo ele, só contribui para essa investigação a concepção histórico-dialética bem como o sistema lógico de análise, eliminando a tomada de posição a partir do estado atual do universo das máquinas.

1. O fundamento da compreensão da máquina

Para Vieira, só se pode entender a máquina pela história natural de quem a cria, o homem, e ainda mais quando aumenta nossa dependência para com elas, tornando-se parte de uma análise existencial. É pelo conhecimento de nosso progresso no domínio das forças naturais que, por uma reflexão filosófica, chegaremos a nossa capacidade criadora, qual seja, o processo de hominização que desemboca na “era tecnológica”.

Vieira argumenta que o que importa na história natural do homem é a constituição do próprio ser humano que cria utensílios para conservar a vida. Daí o engano de julgar a máquina um objeto físico por si e crer em sua espontaneidade[ii]. É pela inversão desse ponto de vista que se tem a base da construção das máquinas e das peculiaridades do animal humano diferenciadas pelo nosso sistema nervoso. Pois o homem só se humaniza depois da cooperação social, que é um salto qualitativo na evolução, com destaque para o córtex cerebral.

É a passagem da evolução biológica para a social, cujo eixo é a cultura, que Vieira mostra ser o ponto pelo qual o homem se relacionará com a natureza dialeticamente por meio da organização social e leis sociais. A análise filosofia supera o mero darwinismo formal por uma teoria antropogênica que traz o trabalho como alicerce do pensamento racional e da reflexão da realidade.

E ele reitera que a evolução do sistema nervoso se dá em correlação dialética com a capacidade humana de produzir em cooperação social por uma bilateralidade objetiva. Da capacidade de projetar surge a máquina por um processo complexo e específico do homem.

É com o surgimento da era cibernética que começa-se a se ver uma capacidade da máquina de substituir esforço mental, não somente de labuta braçal, mas não se pode prescindir da reflexão sobre as máquinas simples, mecânicas, térmicas ou elétricas. Entretanto Vieira diz que o homem não fabrica a máquina como extensão de seu corpo, mas por observar os fenômenos naturais e projetar fazer o que a natureza faz. Imita, abstrai e reproduz os efeitos desejados buscados por uma finalidade. O faz por novas ideias que se manifestam no plano das representações psíquicas, funções inéditas do sistema nervoso que permitem enunciar e fabricar.

Por fim, a máquina mais simples, de tipo mecânico, ainda tem como primeiro motor o homem, mas, desde lá, não se destina a realização do trabalho para um indivíduo isolado. Se a máquina surge da necessidade de poupar esforço, isso só faz sentido em dimensões sociais. Por mais que somente um homem tenha a ideia, é a sociedade que o realiza e a máquina construída aumenta a rede de relações do homem com a natureza, qual seja, seu domínio.



[i] VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. Capítulo II – O Homem e a Máquina.

[ii] Isso constitui a ingenuidade já mencionada por Vieira.

terça-feira, 27 de julho de 2021

Essência Tecnológica

A tecnologia é essencialmente capitalista. Não é possível ter certeza de que, sem capitalismo, haveria tecnologia. Requer esclarecer que não estamos falando de técnica, seja ela tradicional ou moderna. A questão principal, aqui, não é industrial e nem econômica, mas, ontológica. Isso porque, se o capitalismo transforma tudo em mercadoria e, também, visa o excedente, por que excluiríamos dessa fórmula a técnica que, sob esse ponto de vista, é tecnologia?

Essencialmente, o problema não é da técnica em si, mas do capitalismo, ou seja, é um problema de uma época, de nossa época.  A industrialização poderia se dar em qualquer época, talvez, por avanços que, entre tropeços, abrem caminhos. Mas o capitalismo se expressa em tudo e se apropria de tudo e o faz, essencialmente, com a tecnologia. É ela, provavelmente no início do século XX, que potencializa o capitalismo. Mas não é ela o motor do capitalismo, visto que ele, hoje, vive da especulação financeira.

Porém, no contexto do capitalismo, a tecnologia herda dele sua forma e se subordina aos proprietários dos meios de produção. A técnica se move sozinha, enquanto houver ser humano. A técnica, no capitalismo, é a tecnologia dos donos do poder, concentrada, dominadora. E eles emprestam aos demais seu acesso e uso. Mais do que isso, a classe dominadora prescinde do nosso consumo enquanto nós “achamos” que somos partícipes disso.

Mas, haveria tecnologia sem capitalismo? Não sabemos, mas poderíamos pensar em uma variação, uma “tecnicalogia”, que obtemos ao mudar o radical “tecno” por “técnica”. A contração de técnica em tecno pode ser uma chave fonética para filiar a tecnologia ao capitalismo, e vice-versa.  Já uma tecnicalogia poderia ser considerada o debruçar-se sobre a técnica, um salto além da técnica visando especificidades de conforto, inovação, etc., porém sem a primazia da mercadoria e seu filho preferido: o excedente.

Como isso não ocorreu e aqui estamos conjeturando, podemos então pensar na tecnicalogia como uma evolução da tecnologia, em um momento de superação capitalista. E já poderíamos começar a preparar o terreno recortando nossa análise da tecnologia a vieses tecnicalógicos, quais sejam, uma análise da tecnologia despendida de toda a roupagem capitalista, em todos os âmbitos e tendo como centro principal a atividade técnica e, a reboque, os artefatos, maquinário e procedimentos. Assim, talvez sejamos capazes de superar a essência tecnológica atual cada vez menos técnica, senão que tenha se apropriado e transformado o que entendemos por técnica.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Primeiro se concebe com a mente

Sobre uma ciência que não é feita somente de conjeturas, mas comprovada pela experiência[i]

Vargas enumera quatro pontos no pensamento de Galileu a partir da obra de Miguel Reale (Verdade e Conjetura), a saber: 1) compreende algo quando ainda não se pode determiná-lo analiticamente, 2) radicação numa experiência [vivencial] para encontrar uma solução plausível, 3) ideias para ordenar o que não estava e 4) intenção racional agindo com imaginação para compreender algo.

Porém, se Reale pretende justificar o pensamento metafisico através da conjetura, Vargas busca as bases da ciência moderna que se interessa por representações, embora Ortega y Gasset mostre que há um raiz essencialista como realidade radical[ii] em detrimento dos fatos[iii].

Galileu toma por base da investigação científica a experiência como critério de verdade, mas vai além do método renascentista da visão direta, pois a usa (a experiência) “como artifício para ajudar a mente a visualizar o fenômeno já por ela conjeturado” (citação de Vargas). Tem-se o “primeiro se concebe com a mente” de Galileu, que demole a evidência da visão direta (terra parada - ptolomaica) pela concepção da mente (sistema copernicano). Ponto 1, C.Q.D.

Sobre o ponto 2, supera-se a “visão direta” pela experiência, já contando com o auxílio de instrumentos, o que permitiu a Galileu ver irregularidades na lua, sobrepujando a visão aristotélica de um céu incorruptível e um mundo sublunar. Mais além, ao extrapolar a experiência do ponto de vista do observador em movimento estabeleceu solução plausível: o princípio da relatividade dos movimentos retilíneos e uniformes.

No mais, foi difícil sua luta contra os argumentos de autoridade, da Igreja, e árdua pelo seu pensamento conjetural baseado no plano das ideias (geométrico-platônico) que traduziam a natureza (ponto 3).

Por fim, Vargas traz longas argumentações de Galileu a partir de suas obras mostrando não somente o método como também suas conclusões. Interessante ressaltar suas observações nos arsenais venezianos reunindo tecnologia e ciência, máquina e razão (~1634). Demonstram-se, então, soluções matemáticas para problemas técnicos e vai constituindo a ciência dos materiais.

Ele conclui ressaltando que a maior contribuição de Galileu foi o método de investigação científica que acaba por demonstrar muito do que era contrariado pela evidência, trazendo uma nova verdade. E um pensamento conjetural que aliou ao pensamento racional da época sua prodigiosa imaginação criadora e uma ideia de mundo como maquinismo a partir dos princípios da Mecânica Racional (ponto último).



[i] Conforme A Conjetura no Pensamento de Galileu – Revista Brasileira de Filosofia Vol. XXXIV – Fasc. 138. Abril. Maio. Junho. 1985. Capítulo 7 de Vargas, M. (1994). Para uma filosofia da tecnologia. São Paulo: Alfa Omega.

[ii] O pensamento imagina uma realidade ideal...

[iii] Nota-se aqui a filiação reiterada de Vargas a essa tese, já expressada em: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2021/03/girando-em-torno-da-metafisica.html.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Em busca do método mais eficaz

Mostra as características que fazem com que a técnica seja a procura do meio mais eficiente de realizar coisas, independentemente de nossos valores[i]

Para Ellul, segundo Mocellin, tecnologia é a técnica moderna que, não sendo a técnica antiga, está presente em todos os aspectos da vida ameaçando a liberdade. Sua visão é pessimista pois vê a tecnologia como determinística[ii], obedecendo aos valores e regras dela e não os nossos.

O que é o fenômeno técnico?

Na visão de Ellul, a técnica é mais que o maquinário ou a produção e une teoria e prática numa atividade totalizante embora a máquina, satisfazendo nossas necessidades, criou um ambiente sem vida. Ela torna o meio antinatural e aproxima o humano do inumano. Aí, aparece como global, pois que atingindo todos os domínios, não um problema qualquer. Nesse último caso, é uma “operação técnica”, mas a primeira, universal, é o “fenômeno técnico”, além dos contextos culturais.

Se a “operação técnica” busca resolver um problema específico, pela eficácia, através de um aprimoramento operacional (desde a antiga à ciência), ela se amplia no “fenômeno técnico” que busca o eficaz em tudo. Ele começa com a razão que visa um objetivo determinado, mas que, ao se conscientizar, vai além do mundo natural na busca dos meios mais eficazes.

Quais são as características da técnica moderna?

Dada a diferença entre técnica moderna e técnica antiga, a primeira deixando de ser um meio para ser uma realidade em si, Ellul elenca três características para diferenciá-las, seguidas das características próprias da técnica moderna.

Limite dos domínios: se circunscrita a relações pessoais e com menos consumo nas sociedades primitivas, ao pensar na comodidade da sociedade atual para evitar esforços, passa a domínios ilimitados.

Variabilidade de uso: inicialmente a variabilidade de uso não era um problema como atualmente ocorre para se uniformizar cada usuário.

Propagação da técnica: fechado em grupos com pouca comunicação, como que subjetiva, atinge alcance global e objetivo na modernidade, com o foco da moralidade para a eficácia.

Características do progresso tecnológico.

Racionalidade: existência do processo racional com ênfase no esquema lógico.

Artificialidade: traz a técnica como modificação do natural, destruindo-o.

Automatismo: não há escolha, sempre prevalecerá o melhor método, aquele mais eficaz e racional, sem subjetividade ou acaso, ou seja, ipso facto. Sem a liberdade de escolha, estamos condenados à escravidão técnica.

Auto crescimento: como que o desenvolvimento técnico cresce sozinho, é ilimitado e irreversível. Apaixonado pela técnica, o homem trabalha também pelo seu aperfeiçoamento, mas com um papel cada vez menor.

Unicidade: todas as técnicas possuem as mesmas características e não se distingue a técnica do uso. Ou seja, ontologicamente seu ser é determinado pelo uso, como já postulou Aristóteles que o ser é determinado para que serve. Dada a unicidade, a técnica não pode ser valorada por ser boa ou má, já que obedece a motivos técnicos, e o seu ser é produzir, alheio a nós.

Universalismo: tanto geográfico, pois abarca todos os lugares, quanto qualitativo, pois qualquer um pode usar.

*  *  *  *  *

Essa expansão da técnica se dá por fatores técnicos, causas históricas ou exportação de técnicos que podem atuar em qualquer lugar, porém aí desaparecem os valores das civilizações antigas pela ascendência da axiologia da técnica. Com isso, o homem sai de cena e entra a autonomia do fenômeno técnico: “a procura do mais eficiente meio de realizar coisas torna-se a consideração suprema; e essa procura é o que chamo de técnica” (conforme citação de Ellul que Mocellin nos traz).

Sendo autônoma, a técnica segue leis próprias, sendo a lei principal a da eficácia independente do julgamento ou moralidade humanos, somente por critérios técnicos. Um procedimento não é bom ou mau, mas depende do resultado ser eficaz. Dessa forma, o regente da modernidade é o determinismo técnico que nos priva da liberdade e subordina nossas escolhas e vontades.



[i] Filosofia da Tecnologia. Seus autores e seus problemas. Organização de Jelson Oliveira e prefácio de Ivan Domingues, resultado da iniciativa do GT de Filosofia da Tecnologia da ANPOF. Caxias do Sul, RS: Educs, 2020. Conforme capítulo 7, Jacques Ellul – A construção do conceito de técnica moderna, por Vanessa Delazeri Mocellin.

[ii] Um dos tipos da filosofia da tecnologia e que será bem caracterizado por Ellul.

terça-feira, 13 de julho de 2021

Em face da “era tecnológica”

Traremos aqui dos principais aspectos do capítulo I de O Conceito de Tecnologia, de Álvaro Vieira Pinto (Rio de Janeiro: Contraponto, 2005), intitulado Em face da “era tecnológica”.

Vieira Pinto começa com a noção de maravilhamento que caracteriza nossa “era tecnológica”, mas o faz em contraponto ao maravilhar-se dos gregos em relação à ordem perfeita da natureza, enfatizada pela debilidade das forças produtivas. E isso é fundamental em sua análise, a noção crítica que se faz observando a história, em oposição ao que ele chama de atitude ingênua que se maravilha com suas próprias obras e se vê embasbacada com a ciência moderna. Porém, há, por traz disso, uma ideologia de propaganda das classes dominantes que, nessa sacralização do presente, desmobiliza processos de transformações sociais e políticas.

De acordo com Vieira Pinto, o conceito de era tecnológica induz um discurso enganador pois, ao mesmo tempo em que exalta nossa época, concentra os benefícios nas camadas dominantes que se outorgam os provedores da tecnologia e um valor ético positivo a ela associado, um privilégio de nosso tempo. Não obstante, as criações estão nos grandes centros e relegam aos países subdesenvolvidos o consumo dos produtos e, assim, aumentando a espoliação. Isso posto, o papel dos filósofos nos países pobres deve ser de uma consciência filosófica difícil de ser atingida, pois também reproduzimos as ideias. Consciência que, além do técnico, deve defender os recursos e se debruçar sobre os interesses antagônicos que se dão a partir de categorias dialéticas.

Ou seja, a filosofia da tecnologia deve olhar o processo histórico superando a visão maniqueísta, pois o novo é recorrente. Daí que a tecnologia avança em seu processo produtivo pelo trabalho humano em relação com a natureza. Se, no início, se fazia a análise da máquina que ajuda a superar as dificuldades da realidade, agora a reflexão se dá sobre a técnica e a capacidade de criação do homem que as projeta.

E é a faculdade de projetar que nos distingue, não só como um conceito existencialista, mas a partir da transformação da realidade material visando um novo ser. É um trabalho mental de perceber conexões que podem projetar o novo, criar um objeto inexistente. É uma capacidade que evoluiu biologicamente, mas também exercício social que está por detrás do caráter técnico de toda ação humana, que visa melhores maneiras de prover as necessidades por meio do projeto.

Então, o projeto visa a produção, que é essência de nossa realidade, pois não somos consumidores da natureza como os outros animais. Ela se dá pela técnica que nos leva a “obedecer às qualidades das coisas e agir de acordo com as leis dos fenômenos objetivos” e nos faz um animal técnico que sempre existiu, seja no polimento da pedra ou na Revolução Industrial. A tecnologia se vale do trabalho intelectual que age pela abstração do mundo que em cada tempo e lugar forma a cultura da época. Ela avança por invenções técnicas feitas de continuidade quantitativa e saltos qualitativos, que enriquecem a prática, mas cada descoberta também pode gerar incerteza e perigo, por isso, a tecnologia deve ser analisada sem estigma e nem ser endeusada, pelas categorias lógicas do pensamento crítico.

domingo, 11 de julho de 2021

Catálogo de autores da Filosofia da Tecnologia - primeira lista

Traremos resenhas de autores ligados à filosofia da tecnologia a partir das obras Filosofia da Tecnologia. Seus autores e seus problemas, organizada pelo Jelson Oliveira a partir de textos da ANPOF (Caxias do Sul, RS: Educs, 2020) e Filosofia da tecnologia: um convite, organizado por Cupani (Florianópolis: Editora da UFSC, 2016).

Da primeira obra, foram analisados seis autores até agora: Gunther Anders, Juan David García Bacca, Albert Borgmann, Mario Bunge, Georges Canguilhem e Gilles Deleuze. Da segunda, trata-se de Ortega y Gasset, Heidegger, Arnold Gehlen, Simondon e Lewis Mumford. São visões panorâmicas e delas destacamos o que mais nos chamou a atenção até agora.

Filosofia da Tecnologia: seus autores e seus problemas.

Gunther Anders traz uma visão antropológica de um ser humano sem mundo, que nasce sem um lugar e que esse deve ser construído pela técnica misturando antropogênese e tecnogênese. Mas, da evolução técnica para a tecnologia, podemos acabar em um mundo sem ser humano, dados os exemplos de usos perversos do conhecimento que podem juntar niilismo e nossa aniquilação, isto é, seu conceito de aniilismo. Anders também aborda nossa obsolescência perante a tecnologia e a criação de uma Technature que nos torna objetos da técnica. Se caracterizado na vertente determinista e preocupado com a ontologia tecnológica, aponta que a criatividade pode ter um papel importante nesse cenário.

Juan David García Bacca. Em linhas gerais, nos parece que Bacca faz um elogio da técnica entendendo a realidade de modo tecnocêntrico e a superação do natural pelo artificial, que tudo transforma em artefatos. É como se a técnica trouxesse uma ordem artificial e humanizadora ao Universo, de acordo com os propósitos do homem. Relevante para ele é a criatividade, que é tratada como uma potência criadora com característica metafísica, um fim supremo.

Albert Borgmann é filiado a Heidegger com seu paradigma do dispositivo e olhar para a essência do tecnológico de um ponto de vista metafísico. Em sua análise, a tecnologia nos afasta da realidade e das questões essenciais, que são as práticas focais que usam a tecnologia como meio. Borgmann aponta problemas no pós-modernismo tecnológico que se caracteriza pela hipermodernidade do universo cibernético irreal e que deveria ser combatido por relações incorporadas, pela refutação do imediatismo e uma análise ética da internet e da quantidade de informação recebida. Mas é uma visão otimista que busca o equilíbrio na adoção tecnológica e que em um ponto se aproxima da visão cristã de engajamento comunitário e cuidado com o outro.

Mario Bunge tem uma visão otimista da tecnologia, como campo de conhecimento associado ao científico, metódico e controlado, para produção de artefatos eficientes a partir de recursos naturais e sociais e que se aperfeiçoa. Também contribuem criatividade e inovação, mas o conhecimento tecnológico, espalhado nas várias, transforma lei científica em enunciado prático. Enfatiza-se a tecnologia da informação, embora ele seja crítico da equiparação do cérebro com um computador. Vinculado à tradição iluminista, embora veja os excessos da tecnologia, não foca neles.

Georges Canguilhem. Aqui trata-se de um estudo de caso da técnica de gestação de fetos por máquinas, ectogênese, que, se sujeita a questões éticas, seria defendida por Canguilhem na linha de Descartes. Além disso, mostra o papel de retrovírus em tais experimentos, vírus que competem com o homem na hegemonia do planeta, mas muito pelo cultivo em populações humanas que os mantêm e transmitem. Por fim, a vida como experiência maquínica mostra que há uma continuidade entre a vida e o homem por meio da técnica.

Gilles Deleuze. Partindo dos conceitos deleuzianos, já que Deleuze não tem propriamente uma teoria sobre a técnica, há o ponto de vista ontológico pelo estatuto da diferença: “o Ser é unívoco e imanente à multiplicidade dos entes como diferença”. É a noção virtual-atual fundamental da diferença como devir, atualização do virtual dentro do campo imanente. Similarmente, a tecnologia não se esgota no tecnológico, posto que há a imanência técnica, um modo nosso de ser, epistêmico, que expressa uma multiplicidade tecnológica. É a técnica o campo de sentido que permite a compreensão tecnológica que tem uma produção planejada e outra impensada, diferencial. A tecnologia se aproxima da multiplicidade e a técnica da univocidade, mas numa relação imanente pois a técnica é unívoca como sentido de nossa época, expressada na multiplicidade dos entes tecnológicos.

Filosofia da tecnologia: um convite.

Ortega y Gasset fala de técnica e produção, trazendo o raciovitalismo em que a razão responde necessidades vitais por um ato de liberdade. Além disso, os atos técnicos superam a satisfação pela produção resultado do projeto que obtém o que não há, gerando uma sobre natureza. Porém, para ele, visando o viver bem, produzimos o supérfluo e vamos progredindo de acordo com circunstâncias, já que a vida não é dada, é um constante problema onde o homem está na situação de técnico. Ortega y Gasset faz uma distinção em épocas, partindo dos primórdios onde as invenções se dão por acaso, depois na Grécia, Roma e Idade Média, há a técnica dos artesões e produção de instrumentos até o século XX, onde a técnica já não é natural e predomina o império das máquinas. É aí que ele faz uma crítica dizendo que a plenitude tecnológica pode levar ao vazio existencial.

Heidegger faz uma passagem da técnica tradicional para a moderna. Na primeira, há noções gregas como o telos (finalidade) que faz com que uma coisa surja, além da noção irrefletida de causa e efeito, ou a poiesis (produção) que traz à presença algo que há ocorre na physis (natureza). Já na segunda, desafiamos a natureza para que ela se torne disponível ao homem. Se os antigos cuidavam da natureza, agora a técnica tem por objetivo desafiá-la para que forneça algo para o homem. Nessa, até o homem deve ficar disponível, mas, conforme destaca Cupani, para Heidegger ainda haveria uma liberdade de resistência. Mas, as teses metafísicas e linguagem obscura do autor dificultam a nossa compreensão.

Arnold Gehlen mostra, de um ponto de vista antropológico, que nos valemos das técnicas para transformar a natureza e isso fazendo parte de nossa essência, já que carecemos de órgãos e instintos de adaptação ao ambiente. Contudo, o caminho da técnica é de substituir o orgânico pelo inorgânico, que é mais fácil de conhecer racionalmente e experimentalmente e em linha com o modo de produção capitalista. Ele mostra que há, também, uma técnica sobrenatural, a magia que, junto com a técnica, visam facilitar a ação humana e evoluem da ferramenta para a máquina, que dispensa energia humana, até o autômato, com processos autorregulados. Há, nesse caminho iluminista, uma cultura das máquinas e que leva a indústria a viver da obsolescência das mercadorias e tem como efeitos um prejuízo à nossa dimensão emotiva pois, até a Revolução Industrial, nosso contato com o mundo orgânico trazia dependência das forças naturais e, depois dela, a prioridade do inorgânico  não suscita um padrão moral que traz consequências negativas para nossa alma. Contudo, como bom conservador, o autor não aponta soluções, segundo Cupani.

Simondon trata da gênese do objeto técnico que evolui do abstrato ao concreto se aperfeiçoando, do artesanal e instável ao industrial, mantendo como essência a técnica. Quando concreto, se torna independente e se aproxima do objeto natural, todo esse processo mostrado pela cultura técnica que esquematiza o funcionamento dos objetos. Ele enumera três níveis no mundo técnico: elementar, quando o avanço não ameaça hábitos tradicionais, a era da termodinâmica e por fim a era da informação que regula e estabiliza o mundo. Para ele, a evolução técnica é análoga a de um ser vivo onde ocorre a criação de um meio para o objeto. Porém, a filosofia deve tentar compreender a índole dos objetos técnicos por meio de um ensino de iniciação à técnica que forme pessoas capazes de entender a natureza das máquinas e que permita superar nossa angústia atual frente às máquinas e compreender os objetos como portadores de informação, sua história, como resolveram problemas e como o homem foi estabelecendo uma relação prática com o mundo.

Lewis Mumford trata da mecanização, que é um ritmo da máquina que nos afasta do mundo real por meio de abstrações e é favorecida pela associação entre a técnica e o capitalismo, porém mais em proveito particular. Nas etapas do desenvolvimento tecnológico que ele enumera, passamos inicialmente pelas invenções mecânicas que nos levam a deixarmos de ser o motor energético e enriquecem nossa vida, para um período da indústria inorgânica baseada em carvão e ferro que degrada a vida humana pela exploração e depauperação das pessoas. Há então uma mudança axiológica que traz aceleração do tempo em busca de ganho para chegarmos no uso da eletricidade e ligas metálicas que, entre conquistas, problemas e compensações, suscita a questão do papel da máquina no melhoramento da existência humana. Para Mumford, a máquina é o processo tecnológico como um todo, pela nossa mente permitindo a criação de artefatos, desde o surgimento da civilização, mas que concentra poder e dominação. Pois que é o mito da máquina, então, que nos conduz a uma megamáquina constituída de seres humanos e o impulso obsessivo de controlar natureza que pode nos eliminar. Diante disso, precisamos de um modelo diferente de vida para superar essa condição derivado não das máquinas, mas dos organismos vivos e dos complexos orgânicos (ecossistemas).

terça-feira, 6 de julho de 2021

Sobre a evolução científica da antiguidade ao renascimento

Retomada de aspectos que levam à construção do que hoje entendemos por ciência e tecnologia, de um ponto de vista epistêmico conjugado com noções metafísicas

Trataremos aqui da visão geral dos 6 primeiros textos do livro Para uma filosofia da tecnologia, de Milton Vargas (São Paulo: Alfa Omega, 1994), que trazem suas publicações em conferências e revistas na década de 90. É uma visão histórica do conhecimento que ora se confunde com a metafísica ou a verdade de Deus, ora com a ciência, o experimentalismo ou a matemática.

A teoria grega

Conforme mostra Vargas, ao partir da clássica pergunta “O que é?”, a teoria antiga encontra o substrato por detrás da aparência que é a base da metafísica imutável das ideias platônicas e que revela a substância sobre a qual Aristóteles constrói a sua teoria ontológica. É uma ciência que parte da sensação, passa pelo raciocínio e chega no inteligível.

Além disso, retomando afirmação aristotélica de que “o fim de toda teoria é a verdade”, Vargas nos lembra que a busca da verdade só é possível porque há uma certeza no substrato que é a natureza autônoma, a physis que norteia a episteme grega. É essa episteme (conhecimento) que origina filosofia e ciência e é ela que permite sistematizar a técnica que, de tão antiga quanto o homem, aqui se transforma na techne grega. Nesse tempo, a ciência parte da abstração e contemplação da natureza e ainda não tem o viés de transformá-la.

Sobre a teoria grega, Vargas também traça a influência mútua entre metafísica e matemática desde o século VI a.C., como saberes teóricos que tem como objetivo o eterno e imutável, aí se conjugando a physis, os objetos matemáticos e a harmonia numérica, eventualmente mística. Se a matemática avança pelo conhecimento dedutivo de imagens, a metafísica de Platão se debruça sobre a realidade como conhecimento intuitivo das ideias. Ou seja, são as ideias perfeitas do mundo do saber e a perenidade indelével dos objetos da matemática. Até que o esquema analítico platônico de ideias que contem ideias seja aplicado por Aristóteles na doutrina do ser como um sistema postulacional à semelhança do Elementos de Euclides.

Vargas também adverte que as noções gregas devem ser vistas despidas de como as entendemos hoje. Como, por exemplo, a noção de causalidade em Aristóteles, que ele associa a um ordenamento, isto é, essência da physis no sentido de natureza animada que se move por um direito próprio e as regras de seu movimento estão sempre “em causa”, mais do que um mero processo físico. Entretanto, sem no esquecermos que o processo causal pode sofrer interferências, como acaso e sorte, e não ter sua finalidade atingida.

Concluímos essa visão geral da teoria grega com um princípio geral que Vargas empresta de Julián Marias, que a metafísica é uma teoria sobre a realidade concreta e que busca uma certeza radical, isto é, a raiz da realidade. Ela funciona com base do pensar e agir humano em cada época, em conjunção com a ciência, seja na antiguidade clássica e medieval, renascimento, Europa barroca e mundo ocidental hoje, como continuaremos a explorar.

Idade Média

A Idade Média prossegue com a indagação “O que é?”, porém, agora, a crença passa da physis para Deus como substância primeira que sustenta o mundo, através da metafísica interpretada por São Tomás. Com o advento do cristianismo, a certeza no conhecimento passa para Deus como criador da realidade e a lógica demonstra a verdade da revelação, embora geralmente seguindo a visão grega, como a busca de Santo Agostinho por seu Deus platônico que relega o mal ao livre-arbítrio humano.

Santo Anselmo, também influenciado por Platão, localiza a verdade no juízo da alma que é oriundo da mente divina subordinando a razão ao primado da fé. Já São Tomás, por volta do século XII, estará sob a influência da lógica e da física aristotélica para demonstrar racionalmente os enunciados da fé. Se, em Aristóteles, os primeiros princípios são evidentes em si, em São Tomás são artigos de fé revelados por Deus trazendo uma correlação entre teoria e verdade que, primeiro se crê, depois se prova que há razão em crer (predomínio da teologia sobre a filosofia).

A querela dos universais, disputas entre franciscanos e os dominicanos (tomistas) que os consideravam abstratos, mas existentes na mente de Deus. Já para o nominalismo os universais eram meras palavras e a teoria feita de enunciados universais, por isso não se podia fazer uma teoria do divino, além de qualquer conhecimento.

É quando começa a se abrir caminho para uma ciência experimental que não é feita através de verdades oriundas da mente divina, mas da apreensão de como a coisa ocorre na natureza. O franciscano Bacon (1214) tratava essa experiência como uma vivência do fenômeno quase mística até aceitando a alquimia. Desemboca-se, então, na impossibilidade teológica, quando Occam fortalece o nominalismo como uma realidade de entes particulares, mas que são abrangidos pela experiência, e o conhecimento de Deus só se daria por fé ou mística.

A ciência, que se organiza pela lógica, verifica o que há de comum na realidade e dá rumo à ciência moderna, que prevalece a partir de Galileu quando as teorias passam a serem elaboradas a partir de conjecturas, depois desenvolvidas por deduções matemáticas até serem verificadas comparando-se uma conclusão particular da teoria interpretada de acordo com ela própria, algo estranho às noções medievais de verdade.

Renascimento

No renascimento, com a perda da força de Deus, a metafísica moderna passa a duvidar da realidade do mundo e se pergunta sobre “O que existe?”.  Então, a raiz da realidade passa a ser o pensamento, seja pela via racionalista ou empirista. Por outro lado, a ciência de Galileu é mecânica e vê a natureza como máquina e não como o organismo animado dos gregos.

Na busca da verdade, o critério renascentista é a visão direta que remonta a tradição grega, mas superando o critério de autoridade dos sábios da antiguidade clássica. Exemplo marcante são as navegações portuguesas que retomam os mapas esféricos de Ptolomeu, incluindo aí o usado por Colombo, em oposição aos mapas medievais que mostravam a terra como um disco plano. O novo critério surge quando os portugueses superam as supostas chamas líquidas do sol, que fariam o mar efervescer ao sul da África.

Então, a ciência renascentista diverge da autoridade dos textos por contar com o que “pode ser visto”. A natureza não é mais criatura de Deus e fundamentada na mente divina, mas uma natureza panteísta, metafísica e de harmonia geométrica. É usado um tipo de investigação pela visão fenomenológica apoiada na geometria, superando o método analítico das epistemes gregas, mas ainda não é o empirismo que se funda no raciocínio indutivo.

Vargas ressalta que a lógica associada à confiança ilimitada na razão humana fez com que, na antiguidade e Idade Média, a discussão se baseasse em teses e não na enganosa observação sensível. Então, os portugueses revelaram um novo mundo à Humanidade e descobriam novas coisas pela visão direta, coisas que a teoria antiga não tinha experiência, porém levando em conta as bases anteriores.

Ciência moderna e contemporânea

A ciência moderna é influenciada pela teoria grega, mas traz uma via prática que se mantem até a teoria atual que é um sistema lógico composto por hipóteses e leis. Segundo Vargas, a tecnologia só aparece no 1600, ao unir técnica e experimentação científica e se abrindo a um saber progressista.

É por aí que surge a pergunta “O que há?”, que se origina da psicologia e do positivismo que é contrário à metafísica. Segundo Vargas, há algo oculto na psique humana que, se já foi uma consciência clara, traz a concepção do pensar inconsciente de Jung como uma psicologia profunda que pode gerar uma nova metafísica que vem da interioridade de nosso ser.

Por fim, outro ponto que Vargas explora baseado em Julián Marias, é que a ciência [objetiva] se ocupa da realidade que inclui o próprio homem, como também cultura, ideias e valores. Também traz a visão de Jaspers da ciência moderna que procurou uma concepção geral do mundo, mas, como não atingiu a totalidade, acaba em uma busca indefinida por cada coisa.