sábado, 22 de outubro de 2016

Escola é melhor do que lidar com merda*

Mannoni parte das análises psicanalíticas onde se valoriza muito o ponto de vista do pai ou do médico fazendo do discurso do paciente um mito morto. Ela toma dois exemplos, o de Schreber (caso emblemático de Freud) e Lettre au père (a carta ao pai) de Kafka, como casos em que havia tamanha autoridade do pai que o discurso do filho foi negado, extinguindo seu desejo ou fazendo com que o seu desejo se filiasse ao desejo do pai. A educação ideal de Schreber pai visava um adestramento moral e domínio corporal da criança que era má de nascença e que resultou em perversão da demanda de amor e na eclosão do delírio do filho[1]. A autoridade paterna baseada na violência levou o filho Kafka à perda da fala, o pai educador punia e submetia o filho, imobilizando-o. E é aí que a educação deve verificar o exemplo de não se basear em uma chamada “missão civilizadora” que se vale da autoridade do professor ou na hipótese de que o aluno nada sabe ao passo que o professor sabe tudo porque aí, de novo, elimina-se o desejo[2].
A autoridade do pai ganha força na transição da família medieval para a moderna que se constitui como núcleo conjugal burguês. Essa família, já marcada pela linguagem e por um demanda reprimida vinda dos progenitores, somente conserva o que está estabelecido, conservando as instituições. Nessa sociedade moderna, quem não se adapta ou se adequa é considerado doente. Mas, de fato, tal doença expõe apenas uma doença da própria sociedade. Mannoni, então, coloca que esses “delinquentes”, neuróticos, entre outros, de fato são os saudáveis da sociedade, porque a questionam e questionam as instituições estabelecidas. Eles não devem ser tratados como doentes, mas devem ser acolhidos em locais que façam valer a sua existência e seus desejos. Diferente da família nuclear, há uma contrapartida de movimentos libertários do início do século XX que pregavam que os jovens se adequassem sozinhos rompendo com a sociedade e autoridade dos adultos. Ela também cita o caso chinês que deveria ser mais estudado, onde a coletividade permite uma permutação das crianças pelas famílias e por onde a educação se dá partindo de uma não relação incestuosa entre pai e filho.
Mas, a busca de uma ciência da educação vem desde Platão e, na modernidade, Rousseau busca apagar o papel do educador em prol de uma educação que se guie pelo desenvolvimento da criança de acordo com a sua natureza, visando mais o caráter que o saber e estimulando o desejo de aprender. Tirando-se o foco de uma educação ideal, há um ideal de educação baseado na carência e no impossível – abre-se espaço para o desejo. Quando se parte de um ideal estabelecido de entrada cria-se uma verdade imaginária que não é a do desejo. Nessa polarização entre sociedade e natureza, a psicanálise instaura a linguagem e ressalta que há um Outro que marca a relação do sujeito com o significante. Platão representa um ideal de estado-nação elitista, escolha ideológica diferente da de Rousseau que vê a criança capaz de se inserir na cadeia significante pela linguagem e numa dialética mestre-aluno.
Quando a escola reproduz a sociedade, ela recalca o desejo do aluno de aprender e expulsa dela os casos sintomáticos. Mas é questionando as instituições que Mannoni relata exemplos de resistência e casos pedagógicos que se colocam a margem das instituições valorizando mais uma educação política formativa em detrimento de um método pedagógico ou técnica[3]. Desmistificando a função docente e indo a um sentido de uma educação comunitária e de contestação, as crianças não só são ensinadas como ensinam. Nessa posição, uma criança camponesa pode dizer: “A escola será sempre melhor que lidar com merda”. Muito mais do que o êxito que tais experiências vieram a apresentar, o que transparece é uma sociedade que estimula e fomenta um fracasso escolar para que possa manter a elite que se apossa de serventes usados como mão-de-obra e que garantem o seu poder de dominação. O papel da psicanálise, nesse caso, é o de questionar a ordem vigente, mas o da pedagogia é de revolucioná-la.



* Resenha de MANNONI, M. Uma educação pervertida. Em: Educação Impossível. Livraria Francisco Alves Editora SA.
[1] Schreber filho encontrou reproduzida na clínica a mesma posição autoritária do pai e o não reconhecimento simbólico da transferência o levou a uma construção imaginária.
[2] Na colisão do desejo do saber do aluno com o do mestre, o primeiro é negado.
[3] O pedagogo Freinet, a posição do educador Deligny, o caso Neill e a experiência da scuola di Barbiana

sábado, 15 de outubro de 2016

O homem e a rua e a rua e o homem

O homem se desloca pelas ruas, esse é seu território.
O homem abre clareiras, não vive da natureza.
A natureza é quase seu oposto.
E pelas ruas o homem é senhor de si.
Ele sabe por onde anda, mede os obstáculos e desliza solto.
Não é preciso muita atenção porque o cálculo todo já foi feito desde criança.
A incursão no mundo é essa experiência acumulativa.
Andando pelas ruas o homem sabe que a rua é dele e foi feita para ele.
As ruas são planejadas para o homem se deslocar, ele agradece e nelas se desloca.
Ele fecha esse círculo porque acredita que se basta, porque acredita que está satisfeito.
A esquina é logo ali, eu sei quem eu sou e sei para onde vou.
Nada me impede nessa rua, eu chegarei aonde quero e talvez nem precise estar tão concentrado assim.
Mas é assim e não poderia ser diferente: o homem só é homem por causa da rua e a rua só é rua por causa do homem.
A rua leva algo a algum lugar: o homem.
O homem vai a algum lugar, busca algo pela rua.
O homem não é pássaro e nem peixe e a rua não é ar, nem rio e nem mar.
O homem não é gado e nem leão e a rua não é pasto e nem selva.
O homem é da rua e a rua é do homem.
Mas se o homem deseja a rua e a rua deseja o homem, a rua não é o homem e o homem não é rua.
Sem homem não há rua e sem rua não há homem, mas homem não é rua e rua não é homem.
A rua movimenta o homem e o homem movimenta a rua, mas o homem se movimenta e a rua não se movimenta.
A rua está parada e o homem não pára.
A rua vê o homem e o homem vê a rua, mas a rua fica e o homem passa.
A rua é sempre rua, não foi e não será, não é diferente de rua.
O homem foi à rua, passou pela rua, arruinou a rua.
Se a rua rui é por causa do homem se o homem rui é por causa da rua, mas o homem não é a rua e a rua não é o homem.
Embora a rua seja a quilo que o homem quer o homem não é bem aquilo o que a rua quer, mas o que a rua quis.
Uma vez rua, nada mais.
Uma vez homem, sempre mais.

domingo, 2 de outubro de 2016

Uma nova imagem

Não é que o real não existe, mas ele não existe para nós porque nós somos seres de linguagem. Pensar o real como existente é pensar em algo que é pura aparência. É estar acometido por uma consciência irrefletida. Pensar o real como existente é o primeiro passo para aceitar uma normalidade e uma situação de controle humano e integração total com o mundo. Mas não é isso que ocorre. Nunca tocamos o real e nunca tocaremos, há uma intermediação. E não conseguimos tocar o real mesmo ele estando lá, dado, embora não o vejamos. Está além de qualquer capacidade humana tocar ou sentir o real. E assim, distantes, optamos por uma ilusão ou por um conformismo. Iludir é viver dentro de regras sistêmicas, é luta também poque tudo se faz por luta, mas poderíamos ir além. Conformar é entender nossa constituição e recalcar. Não há real para nós e isso é apenas um lembrete de que devemos nos situar e optar viver pelo simbólico e não pelo real. A ilusão de viver pelo real é a negação de qualquer possibilidade de ir além. A conformação de viver pelo simbólico é o primeiro passo para a ação. É só de posse desse entendimento que sabemos como a luta deve ser travada: é uma luta pela palavra.

Mas é tão difícil falar! Porque aceitamos o real e achamos que dominamos a situação quando não o tocamos. Se há alguma chance de mudança ela passa exclusivamente pela palavra como instrumento de guerra. Não podemos nos calar. Precisamos do discurso e devemos usá-lo a serviço da educação.  A mudança deve começar o mais cedo possível. Precisamos ser capazes de entender que o real não existe e que jamais será alcançado. De posse disso nos conscientizamos de nossa situação humana e podemos comprovar o que somos e como fomos gerados. Não fomos gerados no real, mas no seio do humano e humano seremos, por enquanto. Humanizados, então, poderemos ressignificar a nossa relação com o outro e com uma imagem preconcebida. Desfazer essa imagem, torcer essa imagem, recriá-la plasticamente é tarefa nossa. A imagem significa muito, ela tem um peso tão grande que deve ser reelaborada para que possamos nos aceitar como seres de linguagem, apenas isso.