domingo, 18 de outubro de 2020

O programa do positivismo lógico [i]

Ayer é o iminente filósofo britânico condensador das ideias do positivismo lógico, oriundas do Tractatus e do Círculo de Viena. Seu livro, Language, Truth and Logic (1936) já se inicia com a tarefa reconhecida dos positivas de eliminação da metafisica com a frase “As disputas tradicionais dos filósofos são, em sua maior parte, tão injustificadas quanto infrutíferas”.

Como principal crítica, os positivos consideravam as proposições metafisicas como desprovidas de significado, sem conteúdo cognitivo. A base do ataque era lógica e se fundava no critério de verificabilidade da significação, para o qual proposições devem ser [francamente] verificáveis [em princípio] para poderem ter significado, como o são as da matemática e lógica e não as da metafísica.

Schwartz lista sete princípios do programa do positivismo lógico:

1.      A eliminação da metafisica, da ética, da estética e da teologia pelo critério de verificabilidade da significação.

2.      A causa da perplexidade da metafisica é a gramática superficial da língua; sua cura é a análise lógica.

3.      A lógica e a matemática não consistem em nada além de tautologias. Estas são verdades formais que não têm conteúdo referencial.

4.      Todas as proposições que são necessárias ou a priori são sintéticas. Todas as proposições que são contingentes ou a posteriori são tautologias.

a.      Analiticamente verdadeiro = tautológico = a priori = necessário.

b.      Sintético = a posteriori = contingente.

5.      Toda a ciência consiste num único sistema unificado com um único conjunto de leis naturais e fatos. Não há métodos ou sistemas separados nas ciências psicológicas ou sociais.

6.      A máxima suprema no filosofar científico é esta: Sempre que possível, entidades inferidas devem ser substituídas por construções lógicas.

7.      Enunciados éticos não têm conteúdo cognitvo, mas exprimem atitudes e emoções.

A metafísica tão requisitada se daria por uma ilusão de linguagem a ser resolvida pela análise lógica e mesmo números poderiam ser entidades metafísicas suspeitas, até que Wittgenstein postula esse discurso como tautologias formais sem qualquer peso ontológico ou referencial.

É o caso da substantivação de adjetivos, por exemplo, a rapidez. No discurso da linguagem a rapidez deveria se referir a algo, mas a que? Daí que rapidez se torna um universal sujeito a controvérsias mesmo por Russell, até que Wittgenstein os elimina na lógica simbólica. Discursos metafísicos intermináveis sobre a existência são eliminados com a lógica simbólica: “Zebras existem” passa a ser xZx: Existe um x tal que x é uma zebra.

Sobre o sexto princípio, trata-se do reducionismo de Russell, como no caso do discurso físico sobre objetos se transformarem em discurso sobre “dados dos sentidos”, mesmo que essa redução ainda fosse um ideal de difícil aplicação. Essa tradução é o fenomenalismo que foi abordado por Carnap como um discurso remetendo ao dado, reconstruído o conhecimento com base na experiência imediata (empirismo positivista).

O Fenomenalismo foi reduzido por Ayer a conteúdos sensoriais, dizer algo sobre “mesa” é dizer sobre um símbolo e em última instância sobre um conteúdo sensorial. O conteúdo sensorial é, então, uma construção lógica, uma proposição linguística e não parte da coisa material. Essa linguagem fenomenalista seria a linguagem da ciência unificada.[ii]

Uma contraposição ao fenomenalismo dentro do próprio Círculo de Viena veio do fisicalismo de Neurath que, com uma posição marxista, tratava da linguagem comum de objetos físicos. O fisicalismo substituía os conteúdos sensoriais por processos neurofisiológicos e comportamento.

Por fim, do sétimo se extrai o emotivismo e a proposta de que a ética não é normativa e não resulta em juízos de valor verificáveis, apenas justificáveis, e que por trás do discurso ético ainda poderia haver um ideal utilitarista ou de felicidade.




[i]
 Uma breve história da filosofia analítica de Russell a Rawls. Schwartz, Stephen P. São Paulo: Edições Loyola, 2017, p. 75 e ss.

[ii] Esses temas estão fortemente presentes no projeto husserliano, mas lá é voltado a vivências subjetivas e não a conteúdos sensoriais. Tema a ser melhor explorado: o fenomenalismo de Carnap e a fenomenologia de Husserl.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Meu ego

Eu queria falar um pouco sobre o meu ego, que não é o ego do egoísta ou do ególatra. “Fulano de tal tem um ego grande.” O que, de fato, é isso? Não sabemos. O ego que nos referimos aqui é o eu, o polo unificador de nossas vivências. Mas, ele existe?

A gente, nós, cada um é uma pessoa e sua vida, sua história. Mas, o que a unifica? Como eu posso dizer que eu sou o mesmo que eu era 20 anos atrás? Isso seria possível por esse polo, pelo ego.

Entretanto, eu não posso acreditar no ego e nem a ele confiar e confinar minha vida. É mais ou menos que nem o rio de Heráclito, sabe? O rio que passa é o mesmo ou é outro?

Eu não acredito no ego porque eu não acredito que sou o mesmo. Embora eu tenha certas características, algumas qualidades e tantos defeitos, isso só me da uma unidade externa e que é passageira e extremamente mutante e volátil.

Essa unidade externa eu não reconheço. Se eu me olho no espelho agora, eu não reconheço o eu de 20 ou 30 anos atrás. Talvez nem mesmo o eu de 10 anos atrás. E pudera, se eu me reconhecesse eu não teria evoluído, ou involuído, eu seria o mesmo.

Internamente muito menos e exatamente por um motivo semelhante: porque eu sou sempre tocado por algo, influenciado por algo, educado ou deseducado. Na luta interno-externo jogo fora o interno e confio piamente, plenamente no externo.

“Facilmente influenciável”, diria um amigo. “Não”, respondo eu. Facilmente domesticado, facilmente revoltado, atarantado, humilhado, encanado, desgastado, iluminado, aliviado, detonado. Facilmente externamente ado. Nada internamente.

Internamente oco, você, eu, tudo, todos. Tudo volatilidade e luta. Tudo mesmice. Não importa, a força interna pouco pode. A humanidade se faz pelo todo, embora cada qual em seu canto virtual de pandemia. Acreditar em algo diferente é metafísica.

 

 

sábado, 3 de outubro de 2020

Linguagem Referencial

Nascimento[i] trata de mostrar a problematização da referencialidade tanto em Wittgenstein quanto em Santo Agostinho.

1. Introdução. Nascimento define referencialidade (ou linguagem referencial) como a concepção de que a linguagem simboliza, ou seja, referencia coisas do mundo, das quais obtêm significado. Tal concepção, citada por Wittgenstein nas Investigações a partir de Santo Agostinho, foi usada no Tractatus como forma de resolver os problemas de filosofia pelo uso da linguagem representando fatos de forma lógica, ou seja, a partir de uma representação proposicional.

2. A Concepção do Tractatus. Então, é a forma lógica que relaciona pensamento e realidade pela afiguração e permite que a proposição tenha sentido[ii], embora a linguagem não seja uma cópia fiel do estado das coisas, pois ela apenas comporta possibilidades desses estados. Além disso, cada objeto deveria ter um símbolo associado e que determinasse seu significado.

E são os nomes a base para representar estados de coisas, a partir dessa forma lógica, pois eles permitem referenciar os objetos que não existem separadamente. Conforme 3.144: “Estados de coisas são descritas, não nomeadas. Nomes são como pontos, proposições são como flechas, elas têm sentido)”. E aqui vemos a capacidade representativa da linguagem.

Embora ressaltando a forma lógica proposicional no Tractatus, que é a linguagem referencial que interpreta as proposições da linguagem, Wittgenstein entende a linguagem cotidiana também com completude de sentido, porém com outro simbolismo. E, na virada filosófica, essa perspectiva impositiva da forma lógica será abandonada em prol de uma descrição da gramática do uso linguístico, da significação dentro de padrões de uso linguístico.

Assim, Wittgenstein amplia o rol da investigação linguística e se afasta de um ideal preconcebido, do dogmatismo. A descrição factual pela forma lógica dá lugar à investigação gramatical onde o uso de determinada forma depende de seu propósito. É uma investigação conceitual que evita possíveis confusões metafisicas do Tractatus pela imposição da forma lógica.[iii]

3. Problematização da concepção referencial. Wittgenstein traz a citação das Confissões de Agostinho no início das Investigações, através da qual o filósofo de Hipona conta sua experiência de aprendizado e compreensão pela designação dos objetos por palavras, concepção referencial que será criticada por Wittgenstein quando se trata de universalizar esse modelo.

Usando um exemplo de conversa entre operários de uma obra, Wittgenstein procura mostrar que as palavras denotam mais uma ordem que uma descrição de estado de coisas. Mais do que isso, as palavras não teriam um significado determinado, mas de acordo com seu uso linguístico e que se assemelha a uma caixa de ferramentas com variadas funções, sendo um deles o uso referencial.

Com relação à experiencia de aprendizado de Sto. Agostinho, Wittgenstein coloca que a função denotativa dos nomes tem um uso no ensino ostensivo que seria apenas uma preparação para o uso de uma palavra, mas que vai se definir com o significado que empregamos.

Retomando o exemplo da obra, um terceiro operário recém chegado só entenderia os sentidos das palavras a partir das circunstâncias, no jogo de linguagem. Só se mostra o que uma palavra designa pelo seu uso. Conforme citação: “Portanto, a estrutura de quando se diz ou se entende Traga-me uma laje como quatro palavras deriva, não de algo intrínseco ao funcionamento da mente do sujeito, mas da estrutura do jogo de linguagem do qual ele participa.”[iv]

De todo modo, as Investigações não contradizem totalmente as teses do Tractatus, mas as circunscreve e, quando o fazem, se aproximam de Agostinho, como por exemplo quando uma palavra tem significado enquanto seu referente existe. Porém é um uso limitado para todas as possibilidades de usos linguísticos dentro dos jogos de linguagem.

4. A concepção agostiniana de linguagem. Se Agostinho não propõe uma abordagem tão abrangente de linguagem, no De Magistro ele expõe inicialmente o uso referencial (de que as palavras são símbolos cujos significados se dão por se referirem a objetos) que será revisto posteriormente.

Ao analista a palavra nada, Agostinho diz que ela não é um sinal pois não significa coisa alguma, algo que não existe. Mesmo a palavra se não se refere a um objeto no mundo, embora se refira a um estado psicológico de dúvida. Tais exemplos apontam dificuldades na concepção referencial.

Dito isto, Nascimento reitera que Agostinho ainda se detém a exemplos de sintaxe ou analisando o que ocorre na mente do ouvinte, ao passo que em Wittgenstein a concepção pós-tractatus mostra uma concepção mais ampla de linguagem relacionado a definição de uso e multiplicidade de modelos funcionais, ou seja, no uso concreto.

5. Considerações finais. Nascimento mostra nesse artigo elementos importantes da virada filosófica de Wittgenstein, partindo das capacidades de representação da linguagem representando fatos da realidade e compartilhando sua estrutura lógica, em um simbolismo por demais reducionista.

Então ele parte desse modelo de linguagem clara para um modelo no qual a filosofia deve aclarar os padrões de uso e regras por uma investigação da gramática. Do mesmo Agostinho se questiona acerca de alguns usos referenciais o que faz com que ambos se aproximem na crítica a um modelo referencial que pudesse abarcar todas as possibilidades de uso linguísticos.



[i] O que se segue é um resumo de Agostinho e Wittgenstein: sobre a concepção de linguagem referencial, pelo link: http://www.revistas.usp.br/humanidades/article/download/154281/150503/. De Matheus Colares do Nascimento, acessado em 19/09/2020.

[iii] Ironicamente o que deveria ser combatido.