domingo, 14 de julho de 2024

Máquinas que pensam

Voltando ao tema da IA forte

Turing lançou o desafio por volta dos anos 50: se um computador “respondesse” a questões como se fosse um humano, ele seria capaz de pensar[i]. A partir daí, então, a sorte foi lançado e a disputa prossegue até nossos dias.

Mas a questão não é simples. Se conceitual, por um lado, ela também pode envolver um tanto de neurociência, possivelmente para “comprovar” como ocorre o pensar e processos envolvidos, bem como a psicologia, para se debruçar sobre um pensar subjetivo que, nesse caso, inacessível para máquinas.

Mas há um campo chamado IA forte que defende que uma máquina que processa pensa. Se, numa primeira vista, parece coisa incrível, vale a pena refletir um pouco sobre o tema. Penrose comenta que, para esses defensores, até um termostato poderia pensar:


“A ideia é que a atividade mental é simplesmente a execução de alguma sequência bem definida de operações, o que é frequentemente conhecido como um algoritmo. (...) Por ora, será adequado definir algoritmo simplesmente como um procedimento de cálculo de algum tipo. No caso do termostato, o algoritmo é extremamente simples (...)”[ii]

Parece que a ideia é pensamento = processamento, e isso é muito simples e interessante. Tomemos nós: somos matéria que pensa, isto é, matéria que tem um cérebro que processa coisas. Assim como um pato ou uma abelha. E são os pensamentos que nos guiam na execução das coisas.

Agora tomemos um computador desligado sobre a mesa: ele ali parado é simplesmente matéria, um conjunto de chips, termoplástico e por aí vai. Mas um computador ligado ganha vida, ele processa coisas. Não é que algo emerja dele, uma consciência, por exemplo, mas o fato de processar algo o difere de quanto está desligado e parece que, assim, ele está pensando (hardware - software).

Ora há algo a mais do que quando está desligado. Claro, há energia, assim como nós precisamos do sol para fazer nosso organismo funcionar. O computador ligado processa algo, ele possui um algoritmo sofisticado. Já uma lâmpada, quando ligada, transforma energia. E assim por diante, para todos os aparatos que executam algoritmos, que processam informação, transformam energia.

Todos esses aparatos e todas as máquinas que fazem isso pensam, a seu modo. É esse “algo que acontece quando estão funcionando”. Assim como nós funcionamos enquanto estamos aqui ligados e pensamos. E esse modo de pensar é perfeitamente factível, tanto o modo em si quanto o argumento.

Entretanto, para os postulantes da IA forte o algoritmo que é executado em qualquer aparato é consciente em si, coisa que parece bem esquisita. Isto faria com que ele fosse independente da plataforma, o mesmo algoritmo sendo executado por um computador ou um cérebro seria consciente da mesma forma. Até mais do que isso, levaria a um dualismo algoritmo (coisa pensante) x plataforma (coisa material)[iii].



[i] Essa era a ideia básica da coisa, falamos um pouco em https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2020/01/a-consciencia-da-ginoidei.html.

[ii] Pg. 55. Penrose, Roger. A mente nova do imperador: Sobre computadores, mentes e as leis da física. Traduzido por Gabriel Cozzella. São Paulo: Editora Unesp, 2023.

[iii] Há argumentos interessantes como o quarto chinês de Searle que mostraria que o algoritmo, mesmo passando no teste de Turing, seria incapaz de ter “entendimento” ou, em oposição, argumento de Hofstadter mostrando que o cérebro de Einstein descrito em um livro seria consciente, embora não possamos saber de que forma. De qualquer modo, Searle acha que muita coisa funciona como um computador digital, conforme Penrose, embora defenda que intencionalidade (ter intenção de) e semântica (entender significados) somente no cérebro humano. 

sábado, 13 de julho de 2024

Qual é a regra?

Pretende mostrar uma abordagem de como se constrói uma regra[i]

Gostaríamos de tratar da questão das regras sob um enfoque wittgensteiniano[ii], na medida em que toma uma regra como algo indeterminado. Ora, regra é “aquilo que regula, dirige, rege”[iii]. Nesse sentido, regra é uma metadefinição, pois uma regra precisa ser explicitada. Uma regra é uma generalização e, nesse sentido, praticamente impossível de atender todos os casos e sujeita a interpretação, inicialmente.

Dizer que fulano entende uma regra é dizer que fulano aplica a regra satisfatoriamente até aquele momento, mas não que ele vai sempre aplicar a regra de acordo com o que cicrano poderia tolerar. É que fulano pode ter entendido uma regra (regra específica um: RE1) de um modo RF que, nos casos aplicados até o momento, converge com o que entende cicrano, pelo modo RC. Mas nada impede que haja alguma aplicação de RE1 por uma regra RF que seja incongruente com RC.

Fica a questão de saber se RE1 pode ser igual a RF ou RC ou se RE1 é uma utopia. E isso só se dá na prática. Porque não se pode saber o que queria fulano na aplicação número 127 da regra, isto é, RF127 pode não coadunar com uma interpretação RCx de cicrano. Mas, até a aplicação RF126, RF era igual a RE1 e igual a RC (x – 1), não se podendo determinar ao certo esse x, o que inviabilizaria totalmente qualquer comunicação baseada em regras interpretadas por fulano ou cicrano. Se esse é o caso, essa possibilidade deve ser rejeitada.

Antes de mais nada, por que isso ocorre? Sem dúvida, porque cada palavra ou sentença que compõe a regra pode ter mais de um significado. Se o significado não está atrelado a algo mostrável, que se possa dizer: “o significado dessa regra é aquilo”, tem-se esse problema. Uma palavra não tem ligação lógica com seu significado[iv].

Isso posto, a única garantia é a linguagem comum, partilhada, e não um suposto entendimento de regras, ainda mais regras ancoradas em um pensamento interno, em uma linguagem privada. Pois por ela, nem mesmo o próprio sujeito teria um critério que determinasse o uso da regra, já que uma identidade interna seria duvidosa. Como ter certeza de que a dor de barriga que sinto agora é exatamente igual à que senti semana passada? Cai por terra o papel normativo de uma regra e condena-se o uso de qualquer linguagem, mas ainda assim continuamos nos comunicando[v].

Estamos no campo do suposto paradoxo do cético, mas ele não abandona a prática porque sabe que a linguagem é algo que funciona. Antes de haver fatos que legitimem as intenções há condições para uso da linguagem, ou seja, mantém-se o problema cético e soluciona-se a questão de outra forma[vi]. Se não há condição de verdade para a regra (ceticismo), não há um referencial interno (estado psicológico, comportamento), há o referencial da comunidade. A via de normatividade da regra passa para o uso público da linguagem, quando a regra é usada reiterada vezes em um acordo, no jogo de linguagem e agindo em acordo com a regra. Assim o julgamento de aderência sai do privado para o público, vai para um padrão de uso[vii].

Mas o fato de eu não saber se a dor que sinto é a mesma faz com que possivelmente eu não tenha nenhum tipo de parâmetro de como proceder. Mas temos porque sabemos que uma dor em determinada região até uma escala presumivelmente suportável irá passar ou tomamos o remédio “X” que já tomamos outra vez para sua cura. A causa específica fica por conta do médico. Ainda assim, não há critério garantidor, a não ser experiências passadas que se valem da memória.

Aqui surge um ponto que Nara traz da análise de Kripke que é fundamental: concluímos que uma regra privada não tem critério porque ele seria um critério de si mesmo e, nesse caso, sempre aderente, mas não poderia ocorrer o mesmo com uma regra pública? A questão cética volta porque não haveria critérios finitos para estabelecimento da regra e ela poderia ser interpretada de diversas formas. O problema é que queremos justificar o uso de uma regra pelo próprio uso da regra. Mas é exatamente porque uma regra não é algo separado e sim dependente do uso que se faz necessário recorrer ao acordo público.

Fica a questão de se uma regra deve ter um referencial, do ponto de vista cético, ou se basta que seja algo do uso prático, contingente.

Entretanto, o ponto de vista de Wittgenstein não é o de aderir a teses fundantes, mas mostrar que a linguagem é um jogo e que requer treino para o entendimento. Não se comprova algo de maneira irredutível, mas dependemos de testes recorrentes e situações que tendam para um uso comum e esse uso é a regra, dentro de cada contexto. Mesmo a palavra regra pode ter um uso diferente nos vários jogos de linguagem, cabendo explicitação do seu significado em cada um deles. Regra, então, não é um conceito, já que não pode ter um limite estabelecido, mas uma função normativa naquele jogo em que ela se caracteriza, conforme Nara. E que permite justificar o uso de determinadas palavras em um jogo, recorrendo a frequência de uso e generalização. E essa justificação é contingente, porém, uma vez estabelecida a regra, não haverá margem para interpretação.



[i] Seguimos na primeira leitura de: FIGUEIREDO, N. M. Estudo sobre regras e linguagem privada. A divergência de interpretações sobre a noção de regra nas Investigações Filosóficas. 2009. Dissertação FFLCH/USP.

[ii] Kripkenstein.

[iii] Oxford Languages

[iv] Nara, pg. 49.

[v] Idem, pg. 51

[vi] Conforme Nara, sobre Kripke, não que ele faça uma exegese, mas comentários.

[vii] Interessante a colocação de Nara de quando Wittgenstein nega a linguagem privada ele nega o uso de seguir uma regra privadamente. 

terça-feira, 9 de julho de 2024

Nova-mente

Estamos as voltas com a mente novamente e justifica-se, pois, é tema disputado na filosofia contemporânea. Saber o que é uma mente e conhecer sua composição, se é algo puramente físico ou algo que emerge e, uma questão lateral, mas que ajuda na compreensão, se máquinas podem pensar são assuntos instigantes.

Retomamos o estudo da mente também compreendendo que as questões filosóficas são cíclicas, vão e voltam. Estamos iniciando a jornada pela mente nova do imperador[i], jornada esta que promete ser longa e abrangente. E o tema está em aberto já que Penrose argumenta que ainda não temos uma teoria sobre a mente, mas teremos. E ela situa-se entre uma física microscópica e uma macroscópica, assunto que para nós é inóspito, mas que vamos explorar um pouco. Ocorre que há muitas pontas soltas entre as teorias físicas e uma que seria complementar poderia esclarecer os mistérios sobre o funcionamento da mente.

Porém, uma coisa é certa e com ele concorda Nicolelis[ii]: a mente não pode ser reduzida a processos computacionais. Ora, essa teoria por si só refuta a inteligência artificial, já que seus defensores entendem que um grande processamento, uma enorme capacidade de “pensar” originaria uma mente, por si só. Mas a coisa não é simples e Penrose terá trabalho para nos apresentar seu ponto de vista, que passa pela física, matemática, biologia e filosofia, isto é, é uma teoria de mundo físico, oriunda de uma de nossas mais altivas mentes.

Ressalta-se, obviamente, que é tema dos mais complexos, inclusive porque uma mente pode se confundir com uma alma e despertar paixões religiosas, mas nos parece que passaremos ao largo dessas questões. Por fim, não se pode negar que a tecnologia anda junto com a ciência e pode ser ferramenta de elucidação. Se o livro de Penrose já está envelhecendo (data de 89), nos parece que sua argumentação vai arregimentar boa parte de nossa evolução e poderá lançar luz a temas caros para nós.



[i] Penrose, Roger. A mente nova do imperador: Sobre computadores, mentes e as leis da física. Traduzido por Gabriel Cozzella. São Paulo: Editora Unesp, 2023.

[ii] Alguma coisa aqui: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2020/12/informacao-godeliana-anti-ia.html. 

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Manga não é manga

Tenta abordar a distinção entre definição e descrição e como ela pode esclarecer problemas de linguagem[i]

Nós comentamos que “não podemos sentir a dor do outro”. Eu não posso sentir a sua dor de dentes. Ocorre que essa impossibilidade é lógica e tentaremos elucidar. E, para isso, voltaremos ao contexto.

Vejamos um exemplo: “manga não é manga”. Essa sentença faz todo o sentido se estivermos usando os termos para falar da vestimenta e da fruta. Mas se assumirmos a convenção de que a manga da camisa não é mais somente manga, mas “manga da camisa”, então “manga seria sempre manga”, isto é, a fruta.

Nós podemos notar, com esse caso, que uma sentença pode ser verdadeira ou falsa dependendo do contexto, mas isso porque estamos nos referindo a algo no mundo, estamos tratando de sentenças que descrevem fatos, “descritivas”.

Por outro lado, não dá para dizer que “ele caiu para cima”, pelo menos aqui na terra e em se tratando do contexto físico. Essa é uma definição, uma regra que não é verdadeira nem falsa. Dizer que “caiu para cima” é uma impossibilidade lógica, assim como dizer que a “bola não é bola”.

Há, em Wittgenstein, de acordo com Nara, essa impossibilidade lógica e é exatamente essa impossibilidade lógica que faz com que “eu não possa sentir a sua dor de dente”, porque partimos de uma regra de que há uma dor interna de cada um. Mas se essa regra é flexibilizada e você me diz que está sentindo aquele dor de “raspar o dente para retirar uma cárie”, então eu posso dizer que já senti essa dor e, então, nós sentimos a mesma dor.

Seria esse argumento, se bem eu entendi até agora, que versa contra a linguagem privada, ou uma dor não compartilhada, ou um ego intransponível que beira o solipsismo. Isso tudo é um problema de linguagem. Se fizermos a análise da linguagem, dos usos termos, veremos que muitos conceitos caem e a metafísica pode se esfarelar. Mas esse trabalho é árduo e complicado e nosso entendimento do problema ainda é igual ao de um bebezinho que aponta para as coisas.



[i] Essas últimas observações têm se baseado no “ESTUDO SOBRE REGRAS E LINGUAGEM PRIVADA”, de Nara Miranda de Figueiredo, conforme referido em https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2024/06/apontar-nao-e-nada.html. Os erros de compreensão são meus, pois ainda são notas muito embrionárias de quem está com pouco tempo. 

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Apontar não é nada

Menino, não aponta o dedo que é feio![i]

A gente normalmente está acostumado a apontar para alguma coisa quando se pergunta pelo significado de algo. Por exemplo, quando nos perguntamos sobre uma maçã, podemos apontar para a fruta e então podemos falar sobre ela. Isso é muito comum, os bebês desde cedo aprendem dessa forma, apontando, não é mesmo? (já imagino aquele dedinho para cima)

Na maior parte das vezes, então, falamos sobre coisas e aí fica óbvio que esse é um caminho natural e correto. Até mesma sobre nossos problemas, nós os nomeamos e falamos sobre ele, eles se tornam coisas tangíveis. A gente fala de uma coisa, mas a gente usa a linguagem para falar dessas coisas. Porque as coisas em si mesmas estão lá paradas, quietas. A cadeira está lá, eu posso até atribuir uma propriedade para cadeira e ainda assim ela está lá. E podemos usar frases para colocar a cadeira em movimento, como ao dizer que a cadeira está “gasta”. Aí passamos uma ideia de movimento atribuindo um estado à cadeira, ela era nova e com o tempo ficou velha.

Mas há ocasiões em que não conseguimos apontar para as coisas e aí passamos para uma seara de difícil comunicação. Eu posso falar que estou ansioso, mas eu não consigo apontar para uma ansiedade. O número um, onde está? Há muitos casos que fazem com que nós tenhamos que “significar” as coisas de outro modo, que não o apontar. Daí conclui-se que a significação não se coaduna com a referenciação e uma coisa que parecia banal sofre um salto e precisa de nova interpretação.

Além do mais, o apontamento é nominalismo porque a palavra maçã significa a fruta maçã. A palavra é uma etiqueta para a coisa. Mas não é o caso que o significado de maçã seja a sua correspondência com a fruta porque isso fura a regra para muitos outros casos. Em realidade o significado de maçã se dá pela forma pela qual usamos a palavra maçã na linguagem.

Primeiro, pelas regras gramaticais, quando temos o entendimento de que maçã é um substantivo ao qual atribuímos propriedades, como cor, tamanho, etc. Segundo, ao usarmos dentro de um contexto, vejamos. Se um russo chega agora aqui em casa e eu ofereço uma maçã, ele prontamente poderá usar seu dicionário bilingue para entender o que eu quis dizer. Mas se eu pergunto para ele se quer uma maçã do amor, isso poderá deixá-lo em pandarecos porque maçã do amor é muito entendível por muitos, mas não por todos, e esse é outro problema de linguagem.



[i] Trata de um problema de linguagem que me surgiu quando dando uma lida em “ESTUDO SOBRE REGRAS E LINGUAGEM PRIVADA”. Acesso em 22/06/2024 pelo link: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-02122009-093554/publico/NARA_MIRANDA_DE_FIGUEIREDO.pdf. 

sábado, 22 de junho de 2024

Um problema de linguagem

Uma primeira reflexão sobre a linguagem privada

Eu falo e você me ouve, mas entende? Ora, aparente sim, nos comunicamos e a vida segue. A gente vai conversando e se comunicando, a gente vai sobrevivendo. O problema é que não há garantias de que você entende o que eu falo e um dos pontos principais é a suposição de que há uma linguagem privada que você tem e outra que eu tenho.

É como se você precisasse inferir a partir do seu estoque de coisas mentais, de coisas aprendidas, o que eu digo. Esse tipo de pensamento traz a impressão de que cada um tem a sua caixinha de coisas guardadas que dão sentido ao mundo. Então eu digo algo do meu estoque que tem um significado para mim e você escuta e processa de acordo com o seu mundinho. Vida que segue.

Ocorre que essa linguagem privada é quimera. Você pode ter uma dor dente e essa dor de dente é sua. Não adianta você me dizer que dói demais, eu não sei o que é isso. Eu posso saber por uma expressão, por uma cara de dor ou por uma reclamação reiterada. Você não pode me comunicar a sua quantidade de dor de dente e não há uma regra para medir a sua dor dente. Ora, com a linguagem é o mesmo.

Não adianta você dizer que entende A ou B do que eu falo. E eu falo C. A, B e C são coisas mentais e privadas e não existe uma linguagem privada porque não existe linguagem de uma pessoa. Pode haver um discurso mental, aquele capetinha que fica no ouvido. Mas isso é seu, não me importa.

Pode haver, no mínimo, uma linguagem de dois, mesmo que seja um dialeto, mas é algo que vai se acordando. Linguagem é acordo, é para fora, não é para dentro. Não importa o que algo significa para você, importa o que você expressa e o que o outro pode entender, e isso é um problema básico de linguagem.

  

sábado, 8 de junho de 2024

Dogma... Pra quê?

Pseudo manifesto sobre o viver[i]

É notável o esforço filosófico e sua contribuição nas mais diversas áreas. A filosofia se desloca pelos temas e traz reflexão. Ocorre que, aparentemente, a filosofia é muita subjetiva e pouco colaborativa. Um fruto daqui é colhido ali, há o edifício, porém dentro dele, os imóveis são de um morador. Ora, não podemos imaginar que há uma irrupção do espírito absoluto em uma mente, então, há dogma. Por mais rebelde que uma filosofia possa ser, seu dono nela acredita fazendo com que uma digressão vire dogma. Contudo, podemos viver sem ele(s)?

Precisamos pesquisar se há uma teoria filosófica livre de dogmas. Teoria e dogma dificilmente andam separados. Mesmo uma teoria com base empírica revela leis sub-reptícias. E uma teoria “quer” se estabelecer sendo que, para isso, o dogma é seu aliado. Entretanto, vemos cristalinamente as mais pujantes teorias se esvaírem. Dia-após-dia. E aqui convém ressaltar um ponto fundamental: não queremos negar a utilidade de uma teoria, há teorias de enorme aplicação prática. Queremos negar seu produto: o dogma. Ou sua base.

Isso posto, há sentido em uma vida sem dogmas? A resposta não é simples e ela envolve não somente considerações teóricas, mas também os impactos no viver, no bem viver. E não parece que uma bandeira de vida possa ser destrutiva. Não aventamos um não dogmatismo ou antidogmatismo. Importa passar os dogmas em revista. Importa viver praticamente, respirar. Comer, dormir e acordar da melhor maneira dentro das possibilidades que, em constante mudança, se apresentam. MUDAR. Mudar é uma postura que leva o cãozinho dogma consigo. Ele cai na mudança. Ele morre? Não sabemos, mas tentaremos sobreviver.



[i] Escrito depois de umas e outras, dia primeiro de maio de 2024, às 00h18. 

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Me da o contexto

Nossas investigações se encontram em uma situação na qual há uma linguagem que é usada para nos comunicarmos, mas não sabemos ao certo o que é compreendido nas interações entre falantes e ouvintes. Na base dessa linguagem há termos que devem ser entendidos pelos envolvidos, isto é, há termos com significado e eles se combinam para formar frases e períodos maiores que expressam grandes pensamentos.

Porém, o fato de haver significado em um termo ou em expressões linguísticas não quer dizer que, para cada um deles, o significado é único ou que ele é interpretado da mesma forma pelos emissores e receptores, isto é, pelos participantes de uma conversa ou aqueles a ela associados.

Nós podemos, então, caracterizar uma conversa como um recorte de uso da linguagem por aqueles que estão a ela associados. A conversa se dá pela interação entre os associados e, fundamentalmente, por um contexto compartilhado, porque se não há esse contexto no qual todos se inserem, já se pode considerar que o elo interpretativo está quebrado.

Delimitando esses elementos principais: a conversa, o contexto e os associados, ao pensarmos em uma ordem de precedência entre eles já poderíamos contribuir com uma possibilidade de esclarecimento da viabilidade da comunicação no que tange à compreensão[i]. Mas, saber esses elementos são suficientes é ponto para verificação.

De toda forma, o significado é condição sine qua non para a compreensão, mas a mola mostra é saber até que ponto ele deve estar fixado. O significado pode se confundir como uma “entidade” que emerge da conversa, como se referindo a algo ou como basicamente uma coisa inerente à própria linguagem.

É aqui que nossa análise dá um salto: partirmos das condições pelas quais uma comunicação ocorre, que é a união de associados em torno de conversa que tem um contexto, para que possamos investigar de que modo a compreensão se dá, como o significado é entendido. E delimitamos os três caminhos citados acima.

De fato, não são três, mas dois caminhos: um que o significado é “algo”, outro que o significado se confunde com a própria linguagem, com as regras de uso da linguagem. Podemos chamar a primeira abordagem de metafísica por ter que tratar do algo, já a segunda é a abordagem gramatical de Wittgenstein, sendo que ela é fortemente dependente do contexto, mas muito dinâmica e, de acordo com Kripke, não garantidor.

Nós queremos fazer uma análise da linguagem que não caia em armadilhas metafísicas e concordar com Wittgenstein na análise dos usos da linguagem; o que algo significa é dado por seu uso e fortemente marcado pelo contexto. Ocorre que Kripke pontua que o contexto não pode garantir o uso porque, dada a variância do contexto, haveria uma “livre interpretação” do significado.

Aí haveria uma dificuldade de concordância e voltamos ao princípio. Embora essa flexibilidade não seja de todo ruim. Por outro lado, um mínimo de explicabilidade é importante para resolver as disputas, mesmo aquelas da vida ordinária.



[i] Sobre esses termos, em 19 de maio de 24 o ChatGPT-4o nos responde assim: “Comunicação é o processo de transmitir informações, ideias ou sentimentos entre pessoas. Compreensão é o entendimento ou a interpretação correta dessas informações, ideias ou sentimentos recebidos. Em resumo, comunicar é enviar uma mensagem; compreender é decodificar e entender essa mensagem.” 

domingo, 26 de maio de 2024

Dois pensamentos da Flig 2024

A Flig é muito mais do que direi aqui, mas não é o caso de falar sobre ela, vale mais ir e conferir.
Assim como em 2023, em 2024 estivemos mais presentes do que em outros anos e não faltam reflexões, mas dois pontos me chamaram a atenção, particularmente.
O primeiro é a respeito de uma velha frase que escutamos em ocasiões de monta, qual seja, "até que a morte nos separe". Ora, se parece despretensiosa, cala. Cala no peito de carrascos e ressoa nos feminicídios. Até que a morte nos separe é o salvo conduto que os débeis reprimem esperando o momento de ataque. Por menos frases rigorosas e deletérias como essa. Por mais amor e leveza.
O segundo ponto trata da perversidade. Criado em Guaratinguetá, aprendi desde cedo que certas moças eram perversas, ou "pervas", no sentido de serem assanhadas. E qual o problema delas? Nenhum, há problema com a mentalidade perversa e tacanha de uma cidade antiga. Aprendi errado, a perversidade é de quem julga e quem julga quer punir. Sim, há gente que quer vigiar e punir e esses são os perversos.
E é por coisas como essa que a Flig é fundamental: em uma cidade atrasada é um sinal de luz. Que tenha vida longa!

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Pelo fim das opiniões filosóficas

Tenta pôr um fim na opinião filosófica que é um fim em si mesma[i]

Opiniões filosóficas. A princípio uma opinião filosófica é uma opinião que visa “desmistificar” algo, isto é, visa esclarecer, porém o faz procurando mostrar a essência daquele algo. “Cogito ergo sum”, ou, “penso, logo existo” é todo o fundamento da filosofia cartesiana que parte da dúvida para negar o mundo exterior. Ora, esclarece que não se pode confiar nos sentidos, mas, por outro lado, mostra nossa essência mental. Uma outra opinião filosófica pode nos ajudar a entender que devemos fazer o bem, mas para isso ela se baseia em uma máxima universal que se funda na essência moral. Já postular que Deus é a natureza esclarece que ele não é transcendente posto que sua essência é imanente.

Leis. Isso tudo são usos de linguagem para fins filosóficos. Entretanto, são opiniões que, uma vez postas, ficam à mercê de argumentação contrária. Mas por que estamos falando de “opiniões”? Isso não seria rebaixar a nobre filosofia? De maneira alguma, isso seria colocá-la em lugar útil e promissor. Porque se tratássemos opiniões filosóficas como leis filosóficas, elas não seriam passíveis de contestação, mas leis, pelo seu próprio caráter, ou são imposições ou têm total comprovação empírica. Uma lei filosófica é um absurdo em si mesmo, se imposta. Se, ao contrário, é empírica, não é filosofia, mas ciência.

Uso filosófico da linguagem. Então, uma opinião filosófica é um uso filosófico da linguagem. Mas esse uso não é promissor porque ele está sempre buscando esconder uma essência travestida em esclarecimento. Por isso, denunciemos o uso filosófico da linguagem ou o uso da linguagem para fazer filosofia. O uso da linguagem para expressar opinião filosófica é um uso especulativo e estéril. É um uso que arrebanha intelectuais que se digladiam por detrás de livros e ideias provisórias, senão dogmáticas.

Terapia. Se não de se pode falar se deve calar? De maneira alguma e o próprio mestre depois ensinou: devemos falar e muito, mas denunciar esses usos, que não passam de confusões. Na vida cotidiana temos nossas opiniões e um conjunto de crenças que muitas vezes nos levam a uma vida angustiante. Enxergamos o mundo de tal forma que essa interpretação se mostra claramente equivocada, se analisada. São confusões que devem ser resolvidas por uma boa terapia com procedimentos e métodos terapêuticos que podem nos ser úteis tanto no dia a dia como em filosofia.

Uso inadequado da linguagem. É justamente essa visão de terapia filosófica que estamos tentando entender da proposta wittgensteiniana. Conforme Plínio: “... as investigações filosóficas (...) nos farão reconhecer que o suposto conhecimento filosófico é apenas um produto de um uso inadequado da linguagem”.[ii] Não parece claro e cristalino? Só há conhecimento (sic. opinião) filosófico porque fazemos um uso inadequado da linguagem. Se queremos usar a linguagem para o seu fim adequado, não devemos usá-la para fazer filosofia. Mas não devemos fazer filosofia? Devemos! Mas como uma atividade de denúncia do uso inadequado da linguagem e de esclarecimento do uso correto da linguagem, mas um uso que não se mostre dogmático.

Pragmática. Um uso terapêutico no campo filosófico é um uso que não deve ser dogmático, já que visa elucidá-lo. Mas um uso terapêutico pode acabar pode ter teses positivas e cuja proteção se poderia dar pela pragmática, conforme o projeto de Arley Moreno[iii] e seu compromisso com “teses filosóficas não dogmáticas” e que enfoca a gramática dos usos das palavras sem formular hipóteses sobre sua justificação e sem afirmar nada sobre o que é, mas sobre o que é possível ser.

É um campo a ser explorado.



[i] Essa é uma tentativa de manifesto baseada em terapia e ceticismo a partir dos textos que temos lido e que, em geral, resenhamos nesse blog. Coisas que temos olhado: FILOSOFIA E TERAPIA EM WITTGENSTEIN, de João Carlos Salles Pires da Silva e WITTGENSTEIN E O PIRRONISMO: SOBRE A NATUREZA DA FILOSOFIA de Plínio Junqueira Smith.

[ii] Analytica, volume 1, número 1, 1993, pg 160.

[iii] Analytica, volume 9, número 2, 2005, pg 104.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Positividade Cética

Introduz a racionalidade cética perdida nos manuscritos[i]

 Nessa conferência Plínio trata da visão mais específica de Sexto Empírico sobre o ceticismo, oriunda de sua principal obra sobre o ceticismo antigo[ii]. Para Sexto, a escola cética pode ser conhecida por zetética, pelo exame da verdade; aporética, por produzir impasses; pirrônica, em relação ao mestre; suspensiva por suspender o juízo.

Há cinco noções fundamentais do ceticismo, conforme Plínio. A definição ou conceito, os princípios, os logoi (discursos ou razões céticas), o critério cético para agir no mundo e o objeto (telos) que o cético persegue, como sendo a tranquilidade nas ações. Conforme já vimos, a filosofia cética é mais uma habilidade do que uma doutrina, mas essa definição se limita a uma atividade filosófica da verdade, entretanto o ceticismo é uma forma de vida sem opiniões[iii].

Os princípios dirão como o cético é levado à filosofia e o que guia a atividade cética na investigação filosófica. Sobre as razões, Plínio ressalta que foram pouco notadas pois sua unidade se perdeu nos manuscritos. Por um lado, a razão nos mostra a forma correta de viver a vida, por outro que a investigação filosófica correta leva a suspensão do juízo. Então, de posse dos princípios, os critérios dirão que é possível viver uma vida convencional mesmo suspendo o juízo e tendo como objetivo a ataraxia (imperturbabilidade) e moderando as afecções, sendo essa a vida mais feliz que um ser humano pode ter.

Então, são as razões (a terceira noção) que fazem a mediação entre a teoria e a prática cética, sendo ela dupla: ação no mundo e suspensão do juízo, que integram o sistema cético como um todo. É uma ideia normativa do bem viver e da investigação filosófica que evita o dogmatismo e orienta a vida cética. Plínio enfatiza que o cético dispõe de uma argumentação, negando que o discurso cético seja dialético e, nesse sentido, positivo. Há uma racionalidade própria do ceticismo, que para Sexto é a maneira correta de raciocinar, e não o que dizem sobre o ceticismo de que a razão deveria combater a razão[iv], se voltando contra si mesma, já que a razão seria por si dogmática. Por essa opinião, o cético usaria um argumento temporariamente para mostrar que o dogmático está errado.

Plínio argumenta que há uma positividade no ceticismo que permite uma investigação correta, mas que não foi bem levada em conta na visão que se tem do ceticismo. O ceticismo não deixa de ter compromisso com a racionalidade. Entretanto é uma racionalidade que não se precipita, assim como o dogmático, mas esse último em algum momento deixa de ser racional ao não levar em consideração os outros argumentos e objeções. E Plínio considera que esses raciocínios são fundamentais para a escola cética.



[i] Um fichamento de https://youtu.be/nax9RDg-vko Plínio Junqueira Smith sobre Sexto Empírico: As características do ceticismo pirrônico. Acessado em 13 de abril de 2024.

[ii] Esboços Pirrônicos.

[iii] Adoxástica, ao contrário da doxa = opinião. Doxa que se rivaliza com a episteme, conforme algumas coisas já ditas por aqui: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/search?q=episteme .

[iv] Conforme Montaigne e Hume.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Habilidade Cética

Mostra que a filosofia cética se funda em uma atividade investigativa[i]

Plínio ressalta que Sexto Empírico não pretende precisar exatamente a essência do ceticismo, mas o divide em grandes linhas entre os novos céticos (Agripa, que traz outros modos de suspensão, reorganizando o material argumentativo) e os velhos céticos (Enesidemo e sucessores). Sexto visa comunicar o ceticismo não como o vê, mas dentro de uma longa tradição na qual ele pertence, a tradição cética que, remontada a Pirro, levaria em torno de 500 anos. Mas não é um discurso rigoroso, já que esse é dogmático, é um discurso que traz o ceticismo que se desenrola no tempo e vai se moldando e que ele deseja transmitir como um legado da escola pirrônica.

De acordo com Plínio, o ceticismo antigo pode ser dividido em três fases[ii]: a de Pirro e seu discípulo Tímon, que depois desaparece um pouco e surge a tradição acadêmica, que também tende a desaparecer, até que Enesidemo resgata o pensamento pirrônico, agora apresentando-o de maneira sistemática, porém com uma versão mais negativa do ceticismo e se aproximando da visão acadêmica. Até chegarem os novos pirrônicos que trazem uma concepção mais coerente de pirronismo que se alia ao discurso de que a suspensão do juízo nos leva a uma vida feliz e concebido como habilidade[iii].

Entretanto, Plínio vê essa periodização muito marcada e trazendo cada fase como autônoma. É como se fosse uma história dogmática do ceticismo, segundo ele, como se fossem doutrinas incompatíveis e que confunde a suspensão do juízo com um raciocínio e não uma habilidade. Plínio não vê essas contradições, mas uma evolução, um todo coerente de continuidades ao longo dos séculos, embora com suas diferenças.

Os cinco modos não refutam os dez, mas se juntam para refutar mais fortemente o dogmatismo, todos com origem pirrônica. Nesse sentido, é uma continuação da investigação da verdade e ainda poderia haver outros desdobramentos, já que é uma filosofia viva ainda hoje, uma investigação permanente que discute ideias. Interessante que Plínio cita as Investigações Filosóficas de Wittgenstein, obra que não apresenta teses definitivas, mas se desenrola como uma atividade de investigação.  Um belo exemplo.



[i] Um fichamento de https://youtu.be/npFZoTWE8FY Plínio Junqueira Smith sobre Sexto Empírico: Sexto e a tradição cética. Acessado em 10 de abril de 2024.

[ii] Divisão de Richard Bett, conforme citação de Plínio. Divisão de historiador, diferente da perspectiva de Sexto.

[iii] Diferentemente de Enesidemo que negava a possibilidade de conhecimento, sendo esse o motivo da vida feliz. 

terça-feira, 9 de abril de 2024

Filosofia e busca da verdade

Mostra que o interesse filosófico é pela busca da verdade, mas aí há três atitudes[i]

Plínio nos apresenta o recorte histórico que Sexto Empírico faz do empirismo antigo, chamado de pirronismo. Segundo ele, o ceticismo pirrônico faz uma distinção geral entre as filosofias, de maneira diferente do que estamos acostumados com a divisão das doutrinas entre platonismo, filosofia cartesiana, filosofia kantiana e por aí vai. Para o cético, essa distinção seria mais específica e cada uma delas poderia ser enquadrada em conjuntos de crenças que disputam entre si para saber qual é a verdadeira.

Entretanto, há filosofias com pensamento divergente, sejam elas as provenientes dos acadêmicos[ii] e o ceticismo. Para os primeiros, como não é possível conhecer a verdade, eles não se filiam a uma doutrina, ao passo que os dogmáticos o fazem ao dizer como as coisas são na realidade. Para os acadêmicos, se é impossível conhecer, não há uma tese. Por fim, o cético não pende para nenhum lado já que está sempre procurando a verdade e não a considera algo impossível de ser encontrado. É tipicamente uma filosofia investigativa.

Mas é importante reconhecer, segundo ele, que todo filósofo em algum momento faz uma investigação para tentar descobrir o que é a verdade, sendo essa a característica mais geral da filosofia. O que distingue cada um é o resultado dessa busca, mas todos passam por essa etapa inicial de investigação quando se debruçam sobre o estudo filosófico. É a filosofia como atividade, conforme enfatiza Plínio.

E é sobre a filosofia cética que falará Sexto Empírico[iii], dividindo-a em um discurso geral que descreve o ceticismo e uma discussão que combate o dogmatismo e a filosofia acadêmica. Sexto Empírico exporá os conceitos gerais do ceticismo e os modos de suspensão do juízo que definem a atitude cética e que são retomados dos acadêmicos. São os dez modos de Enesidemo[iv], os cinco modos de Agripa e os dois modos dos novos céticos. Nos dez modos e nos seguintes, não se fala sobre como as coisas são, mas como aparecem para nós, eles mesmos mais gerais; depois suspende-se o juízo sobre a lógica, a física e a ética.

Na continuação, de acordo com Plínio, ele falará das expressões céticas, por exemplo, “eu suspendo o juízo”, que permitem evitar falar das coisas em si mesmas, de sua natureza e nem dizendo que é impossível conhecê-las. O discurso sobre os objetos investigados nada afirma ou nega, sem se comprometer com eles. Essa apresentação é uma visão positiva do que é o ceticismo, posteriormente ele tratará dos seus limites externos e de filosofias próximas e como o diferenciar seja de Heráclito, Demócrito ou Protágoras, finalizando com a escola empirista.

E, assim, iniciamos um novo passeio pelo labirinto filosófico! 😊



[i] Um fichamento de https://youtu.be/O-lw68J-AqQ, Plínio Junqueira Smith sobre Sexto Empírico 1: Os tipos mais gerais de filosofias. Acessado em 9 de abril de 2024.

[ii] Na fase de Arcesilau.

[iii] Em Esboços Pirrônicos.

[iv] Rompe com a Academia e remete a Pirro. 

domingo, 7 de abril de 2024

Pesquisa sobre a atitude filosófica cética

Falaremos sobre a atitude filosófica cética e o conhecimento do mundo constituído pela linguagem[i]

Vamos admitir que a atitude filosófica se mede por uma régua cuja escala vai do ceticismo ao dogmatismo. É uma medida inicial de enquadramento, embora em algum momento as duas atitudes possam se confundir. Esquematicamente a posição dogmática parece procurar fundamentar suas posições em cima de verdades que vão sendo adquiridas e admitidas ao passo que a posição cética prefere manter a dúvida e colocar a verdade como ideal, ou mesmo possa duvidar que existam verdades.

Ocorre que a posição cética, ao duvidar das afirmações e das coisas, pode colocar nossa existência em risco. Ora, como podemos viver duvidando de tudo? A resposta cética parece ser a de uma atitude filosófica: aceitamos as coisas da vida ordinária e vivemos nos baseando nela, porém dentro de uma atitude filosófica mantemos a dúvida. Obviamente o ceticismo é uma escola milenar, mas é o que entendemos até agora de estudos preliminares.

Continuando, se há uma posição dogmática comum que se filia ao realismo ingênuo, a atitude cética passa a duvidar do conhecimento das coisas e de suas propriedades[ii]. A posição de Descartes, iniciada com a dúvida hiperbólica, foi a de postular uma mente que representa o mundo e, desse modo, acaba caindo em uma posição dogmática[iii]. Porchat, por outro lado, trata o mundo como um dado da experiência, um conteúdo fenomênico que tanto pode ser empírico quanto inteligível, dessa forma procurando escapar da conceituação de uma mente.

Mas, o conteúdo dado pela experiência se constitui pela linguagem, ele é expresso pela linguagem. Plínio diz que a linguagem se mistura no fenômeno. Esse é o ponto cético. Por outro lado, o dogmatismo usa a linguagem para falar sobre o fenômeno. Há um uso expressivo e um uso afirmativo, revelando uma ambiguidade, conforme ressalta Plínio. Para o cético, as afirmações se travestem em expressões. Volta-se do “é” para o “aparece”, do “ser” para o “aparecer”[iv].

O conteúdo da experiência é, com frequência, expresso na forma de uma afirmação, conforme explica Plínio sobre o pensamento de Porchat, e essas afirmações não são suspensas, mas aquelas afirmações que tratam do conteúdo. A linguagem ordinária é útil quando fala de aparências, fenômenos, dentro de uma atitude cética. Ao contrário do discurso tético[v] que fala de realidades.



[i] Estamos começando o estudo do ceticismo e esse texto carece de exegese teórica. É um primeiro descarrego sobre o assunto, mas a inspiração tem vindo dos vídeos de Plinio Junqueira Smith disponíveis no YouTube. Há bastante material que servirá como base para o nosso aprofundamento: Plínio se filia ao neopirronismo, então precisaremos aprender sobre essa doutrina, sobre Sexto Empírico. Plínio analisa Porchat e por aí também precisaremos adentrar. Não vamos parar nosso estudo da linguagem, ele corre em paralelo com menos prioridade. Mas aqui também gostaríamos de falar algumas coisas sobre “Plínio Junqueira Smith sobre o Sobre o que aparece 3: o fenômeno e a linguagem”, https://youtu.be/JjOc1b5SHtA, dia 7 de abril de 2024.

[ii] Ainda nos falta embasamento para avançar nas definições mais simples.

[iii] Parece que é isso que Plínio Junqueira diz, mas procuraremos compreender melhor seus ensinamentos: https://www.youtube.com/playlist?list=PL8IrZq3aRbAzPZUnTh3ODkvrG8Qft3BOq (Plínio Junqueira Smith: aulas sobre a filosofia de Descartes).

[iv] “O mel é doce” (dogmático) versus “O mel aparece doce” (cético, mas dá para viver assim).

[v] “Que põe ou é posto como tendo certo modo de realidade; posicional; existencial”: https://www.meudicionario.org/t%C3%A9tico. 

terça-feira, 12 de março de 2024

O problema fundamental da gramática

Verifica se falamos de coisas ou de fatos[i]

Hacking retoma argumentação de Russell de que a forma gramatical S-P pode ser parafraseada pela forma lógica pela qual “existe pelo menos um S, há no máximo um e todo S é P”. Hacking esclarece que, para um argumento dedutivo válido, a conclusão decorre das premissas em virtude de sua forma, caracterizada desde Aristóteles como “todo A é B, todo B é C, portanto todo A é C”.

Não obstante isto, o fato de uma sentença poder ocorrer tanto em premissas quanto em conclusões leva a uma crítica de Strawson que rejeita essa forma lógica, já que enunciados poderiam ocorrer em diferentes classes gerais de inferência. Hacking não acata essa objeção ao dizer que o intuito de Russell vai mais além pois ele não pretende tratar somente de inferências. Haveria uma forma lógica para uma sentença que é subjacente a todas as formas lógicas propostas por Strawson e que permite que ela tenha significado.

Russell estava interessado, em sua concepção, em condições sob as quais determinada sentença é verdadeira. Em associação com o primeiro Wittgenstein, essa concepção assere que as verdades correspondem aos fatos, isto é, a estrutura dos fatos poderia ser investigada pela forma lógica de sentenças verdadeiras a eles correspondentes e, com isso, abrir um campo de metafísica especulativa.

Contudo, o próprio Wittgenstein parece aderir, de acordo com Hacking, a um idealismo linguístico que restringe o conhecimento dos fatos com o qual temos familiaridade aos limites de linguagem, não à realidade dos fatos, de um mundo “lá”, independente de linguagem. Atualizamos Berkeley que dizia que não há mundo senão o percebido, em Wittgenstein, como o dito que ser é ser falado a respeito.

Hacking, então, remete ao século XVII novamente para ressaltar a importância da gramática e como a linguagem pode falar de coisas, já que a primeira é articulada e as segundas são totalidades. O malmequer, por exemplo, é uma coisa única, mas as palavras ocorrem em sequência[ii]. Isso fica claro pela teoria da referência quando sentenças da forma S é P (sujeito-predicado) se referem a coisas com propriedades e são verdadeiras se tem aquelas propriedades. O problema é que o objeto é um todo não articulado e não coisa de um lado e propriedade de outro.

Isso posto, Hacking postula: “O problema da gramática geral é explicar como a linguagem articulada realiza a representação de uma parte não articulada do mundo.” Ou seja, como as palavras se juntam na cópula que representa o objeto? Hacking argumenta que, como não foi possível fazer com que a cópula funcionasse da mesma maneira, surgiram diferentes gramáticas para as diferentes famílias de linguagens. E é Wittgenstein que traz o Tractatus para nos socorrer propondo que o mundo é feito de fatos e não de coisas e eles são articulados como as sentenças que os representam, os objetos se encaixam. Fica para trás o mundo das coisas e então “a proposição analisada não é sujeito e predicado, mas uma concatenação de nomes” (p. 93). Embora Hacking entenda que Russell ainda tenha mantido um mundo de coisas, o “isto”.

Se a forma lógica russelliana seria uma tentativa de responder ao problema da gramática, Hacking sugere que ela pode ser uma forma gramatical profunda, o que teria um paralelo com a proposta de Chomsky de uma gramática constituída de uma estrutura superficial projetada por regras de uma estrutura profunda a ela subjacente. Da proposta de Russell pode ser extraída uma lógica de primeira ordem das sentenças do inglês, como proporá Davidson. Mas esse caminho é rechaçado pelos seguidores de Chomsky que se mantem à estrutura sujeito-predicado, oriunda da gramática antiga. E essa é uma disputa em aberto, de acordo com Hacking.



[i] Fichamento do oitavo capítulo de Por que a linguagem interessa à filosofia? São Paulo: Editora Unesp, 1999. Ian Hacking. O capítulo se chama A articulação de Ludwig Wittgenstein.

[ii] A parte a teoria das ideias e se uma ideia é uma totalidade ou articulada.