segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Prevendo previsões

Procura mostrar que uma teoria da mente se baseia na capacidade de prever não somente nossas previsões, mas as dos outros seres inteligentes[i]

Aprofundando um pouco mais a visão que Dennett tem da mente, Teixeira o conceitua como uma antiplatonista, no sentido de que não acredita na existência das ideias e entende a mente como uma interpretação do que ocorre em nosso cérebro, se manifestando pelo comportamento. Essa visão é fortemente influenciada pelo campo de estudo da inteligência artificial, oriunda de Turing e acenando para a possibilidade do processamento inteligente em máquinas.

Destaquemos dois pontos que Teixeira nos traz: primeiro que o teste de Turing para atribuir estados mentais a máquinas se vale da indiscernibilidade do comportamento linguístico e, depois, que é um critério operacional, ou seja, não se debruça na natureza desses estados, mas no seu funcionamento, seja de um organismo ou dispositivo[ii]. Se tal enfoque é prato cheio para os behavioristas, Dennett não segue exatamente essa linha, mas captura os estados mentais como termos teóricos que permitem falar do comportamento. Citando Teixeira, à página 33:

“Desta perspectiva, estados mentais como ‘intenções’, ‘crença’ e ‘desejos’ e todo o vocabulário mentalista habitual que forma a psicologia popular (folk psychology) podem permanecer em um limbo ontológico, ou seja, não precisamos atribuir-lhes realidade própria ou independente dos olhos de quem observa o comportamento”.

Assim, a mente passa a ser somente uma construção teórica útil e distante de uma visão de realidade mental que é, a princípio, aceita por todos nós. Ora, o aparato conceitual que a psicologia usa para tratar da mente é transformado por Dennett em um sistema intencional usado para descrever algo dotado de uma mente. Ocorre que, para atribuir um sistema intencional a algo, é preciso observar o seu comportamento para ver se é inteligente. Então, interagimos com esse algo e tentamos predizer suas ações, se aparentam serem racionais ou se se adaptam a novas situações, se são flexíveis.

Entretanto, dada nossa ignorância em não podermos afirmar se há um correlato no cérebro, nos utilizamos do sistema intencional. Por mais complexo que seja um dispositivo ou organismo, mais difícil explicar seu comportamento sem renunciar a intenções e desejos, qual seja, uma vida mental nos termos da psicologia popular. Psicologia essa que se vale dessa estratégia preditiva tão preponderante em nossos, humanos, que somos capazes crer, conhecer e assim por diante., a nós mesmos e aos outros.

Há, fundamentalmente, um desenvolvimento de um modelo mental do outro, como em um jogo de xadrez, em que se tenta sempre prever e a previsão do outro. Nossa inteligência funciona antecipando experiências que ocorrerão e de que forma agiremos, conforme ressalta Teixeira, recobrindo uma inteligência maquiavélica que origina a psicologia popular que nos permite sobreviver.

Teixeira também destaca que é necessário que ao menos outra mente para a postulação de um sistema intencional, assim como a linguagem requer dois falantes. Ele traz a teoria de neurônios espelhos que seriam ativados quando atribuímos estados mentais a outrem e, daí, o correlato neural para a teoria da mente[iii].

Por fim para esse momento, Teixeira caracteriza o campo de estudo da inteligência maquiavélica e psicologia popular como habilitar da disciplina de inteligência artificial social, ciência deveras complexa para dar conta de robôs que interagem com humanos. Seus estudiosos esperam que, um dia, robôs participem da vida social e sociologia permitirá que simulações sejam feitas para verificar o comportamento desses agentes.



[i] Iniciando capítulo I de A mente segundo Dennett, de, João de Fernandes Teixeira. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008.

[ii] Teixeira levanta desafios ao teste de Turing como, por exemplo, uma limitação temporal, já que programas de computador tem que ser finitos e decidíveis.

[iii] Tema que deve ser explorado oportunamente.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

A terceira margem do rio

Sobre filosofia da mente, com uma pitada de ceticismo, linguagem e que tais[i]

Mote. Vamos tentar investigar se, quando Dennett assume uma postura perante a linguagem comum e outra perante a linguagem científica, se ele está em uma postura cética. A postura cética é aquela que nos deixa viver da seguinte forma: “eu sei que tem um problema ali, mas eu consigo conviver com ele”[ii]. Até se aproxima de uma postura existencial, a lá Camus: “eu não tenho garantias de nada, tudo é muito misterioso, devo me matar?”. Ora, a postura cética não deixa de estar associada à linguagem, pois devemos evitar termos ou os parafrasear, como vamos ver com a substituição de “mente” por “cabeça” em asserções como: “o que tenho na mente?” e “O que tenho na cabeça?”.

Consciência[iii] (p. 13). Parece que o materialismo trata o mental como algo apenas cerebral. Porém, não podemos nos privar da consciência, segundo Chalmers. De outro modo, seríamos zumbis[iv], ou seja, pessoas que andam por aí sem estar exatamente consciente do que fazem. Para Chalmers, há consciência e ela é um fenômeno irredutível no mundo, assim, com o tempo, espaço e outras coisas[v]. Dennett se insere nesse campo trazendo a visão de que é possível elucidar o que é a consciência pela investigação científica, pela neurociência, ou seja, “abrindo” o cérebro para ver o que tem dentro. Ou, enfim, pela evolução dos estudos de imagens cerebrais[vi]. Ora, essa linha de investigação pode abalar o campo filosófico já que a filosofia, pela sua primazia, trata os temas de maneira conceitual e, voltando nosso olhar estritamente para a ciência como ferramenta para resolução das questões, poderia não sobrar espaço para a reflexão filosófica (p. 15).

Estudo da mente. Se o estudo do mental remete às origens da filosofia[vii], ele se reacende por volta dos anos 50 do século passado, até pelo aporte do viés empírico, seja pela via da inteligência artificial e neurociência[viii]. Entretanto, não podemos esquecer do debate entre dualismo e materialismo que vem dos modernos (p. 17). Quando Descartes separa a mente do corpo cria-se o problema de explicar como instâncias separadas e de diferentes composições podem se comunicar[ix]. Por outro lado, Hobbes entende que não há tal estado de coisas porque o pensamento é um resultado do movimento corporal, então o mental faz parte do físico[x]. Aí se configura essa disputa entre dualismo e materialismo, ambas as teses muito difíceis de serem defendidas em sua totalidade. Com a atualização dos termos mente e corpo para mente e cérebro, mais especificamente.

Naturalismo e linguagem (p. 18). Dennett adota uma postura naturalista, dada sua filiação a Quine, enxergando que os problemas podem ser resolvidos pela ciência, no sentido do naturalismo científico[xi]. Enfatizando o papel da linguagem em tal semântica, cabe aludirmos a como Ryle trata o tema, de maneira deflacionária[xii]. Resumidamente, cotidianamente utilizamos a expressão “na” cabeça metaforicamente, por exemplo, ao dizermos: “fiz aquela conta de cabeça”. Ocorre que, de fato, na cabeça há o cérebro, há sangue e pode haver óculos ou chapéu. Mas, ainda assim, é preferível que se use “na cabeça” do que na “mente” já que essa palavra vem carregada de ontologia, como um lugar estranho, mas cujo significado poderia ser simplificado se dispensássemos seu uso.

Matematização da vida e a questão psicológica (p. 19). A análise lógica da psicologia revela que ela não é exata, isso nos moldes da ciência moderna redefinida por Galileu e Newton, quando se matematiza a natureza pelo mapeamento dos fenômenos naturais em leis matemáticas e físicas, a partir daí podemos trabalhar com números e fazer previsões e predições[xiii]. Uma dificuldade da psicologia são os termos que ela usa e a dificuldade de localização desses termos. Por exemplo, termos como ansiedade ou inveja não se referem a coisas que se encontram no mundo, como é feito nas ditas ciências naturais, matematizantes. Isso mostra que o mental não se reduz ao físico e há necessidade de termos intencionais que tratam do seu significado e termos não intencionais, regidos pela ciência natural. Conceitualmente, se aproximam da distinção de Frege de sentido e referência, ou seja, a extensão é a coisa e a intensão é o significado da coisa[xiv]. Mas é nessa distinção que reside o problema da psicologia, porque acaba sendo um discurso permeado pela vagueza, porque, como os termos significam, o significado é dependente do contexto. Para que o discurso psicológico se tornasse científico, ele teria que renunciar à intencionalidade com “s”, que é exatamente os termos que estão presentes no seu discurso.

Domínio do virtual (p. 22). Qual que é a solução do Dennett? Vamos investigar mais detidamente como Teixeira, mas parece que Dennett passa essa conceituação para o domínio do virtual, por exemplo, falar da mente como algo virtual, que estaria no campo do intencional com “s”, mas que não teria existência própria, ou seja, é como se fosse um recurso de linguagem, um constructo de conversação. Os exemplos do dia a dia são abundantes: todos nós usamos muitos artifícios em uma conversa e que muitas vezes não se referem às coisas, mas se refere a significados, que podem ser significados pessoais, introspectivos e subjetivos, significados que não tem uma aderência de fato compartilhada. Por outro lado, não nos esqueçamos do alerta de Russell de que ficaríamos presos em um discurso totalmente ancorado e cristalino, ele poderia aniquilar comunicação, porque não sobraria margem para a interpretação[xv].

Uma porta aberta para a IA forte (p. 23). Ora, como os termos intensionais são constructos, esses termos mentais e o aparato que é utilizado na psicologia poderia ser aplicado para dispositivos também. Esse recurso nos permite um afastamento do daquele terreno que é muito o dogmático de se falar de “pensamento” somente de humanos e podemos verificar também se máquinas podem pensar. Passa-se para uma questão de linguagem que flexibiliza o uso do termo “pensar” [xvi].

A terceira margem do rio (p. 24). Por fim, Dennett. Teixeira ressalta Dennett não é um dualista, mas também não é um fisicalista reducionista porque ele postula um sistema intencional e um sistema do virtual que não se reduz ao fisicalismo. Parece que assim ele consegue compatibilizar tanto uma psicologia popular quanto uma física estrita. É a terceira margem do rio que precisaremos investigar mais detidamente.



[i] Com base na Introdução de A mente segundo Dennett, de, João de Fernandes Teixeira. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008.

[ii] “Ocorre que a posição cética, ao duvidar das afirmações e das coisas, pode colocar nossa existência em risco. Ora, como podemos viver duvidando de tudo? A resposta cética parece ser a de uma atitude filosófica: aceitamos as coisas da vida ordinária e vivemos nos baseando nela, porém dentro de uma atitude filosófica mantemos a dúvida.”. Em https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2024/04/pesquisa-sobre-atitude-filosofica-cetica.html.

[iii] Já em 2020 tínhamos problema com ela: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2020/03/uma-consciencia-uma-dificuldade.html. Na verdade, muito antes, na escola de filosofia.

[v] Fizemos uma aproximação do pensamento de Chalmers, mas devemos aprofundar para compreender as colocações de Teixeira: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2016/05/a-informacao-como-lei-da-consciencia.html.

[vii] Vai valer a pena olharmos o “De anima”: https://www.editora34.com.br/detalhe.asp?id=340, “Primeiro estudo sistemático da psykhê, entendida aqui como o princípio vital comum a todos os seres animados, o tratado De Anima (literalmente, "Sobre a Alma") representa o ponto culminante da filosofia natural de Aristóteles e está na origem tanto da biologia quanto da psicologia como disciplinas teóricas.”

[viii] Não nos esqueçamos das críticas de Dreyfus: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2020/06/ia-do-representacao-cognitiva-ao.html.

[ix] A chamada causação mental, já bastante explorada nesse espaço, pode ser acompanhada nesse texto https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2018/03/nao-estamos-no-comando.html, e pretendemos voltar ao assunto para ver as contribuições de Monica Aiub e Jonas Gonçalves Coelho com aplicações mais práticas. Ver https://youtu.be/sT7Ldtu8k1s.

[xi] Aspectos gerais da proposta de Quine: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2023/11/teses-quineanas.html.

[xii] Conforme https://youtu.be/gfp7cm3NtP8?t=433, por Mariana Claudia Broens, UNESP, Marília. Mentes são lugares onde moram as representações.

[xiv] Em maio de 2022 verificamos a teoria fregeana: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2022/05/.

[xv] Conforme https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2024/03/o-conhecimento-por-familiaridade-de.html, “Seria completa e inacreditavelmente inconveniente ter uma linguagem não ambígua”

domingo, 14 de julho de 2024

Máquinas que pensam

Voltando ao tema da IA forte

Turing lançou o desafio por volta dos anos 50: se um computador “respondesse” a questões como se fosse um humano, ele seria capaz de pensar[i]. A partir daí, então, a sorte foi lançado e a disputa prossegue até nossos dias.

Mas a questão não é simples. Se conceitual, por um lado, ela também pode envolver um tanto de neurociência, possivelmente para “comprovar” como ocorre o pensar e processos envolvidos, bem como a psicologia, para se debruçar sobre um pensar subjetivo que, nesse caso, inacessível para máquinas.

Mas há um campo chamado IA forte que defende que uma máquina que processa pensa. Se, numa primeira vista, parece coisa incrível, vale a pena refletir um pouco sobre o tema. Penrose comenta que, para esses defensores, até um termostato poderia pensar:


“A ideia é que a atividade mental é simplesmente a execução de alguma sequência bem definida de operações, o que é frequentemente conhecido como um algoritmo. (...) Por ora, será adequado definir algoritmo simplesmente como um procedimento de cálculo de algum tipo. No caso do termostato, o algoritmo é extremamente simples (...)”[ii]

Parece que a ideia é pensamento = processamento, e isso é muito simples e interessante. Tomemos nós: somos matéria que pensa, isto é, matéria que tem um cérebro que processa coisas. Assim como um pato ou uma abelha. E são os pensamentos que nos guiam na execução das coisas.

Agora tomemos um computador desligado sobre a mesa: ele ali parado é simplesmente matéria, um conjunto de chips, termoplástico e por aí vai. Mas um computador ligado ganha vida, ele processa coisas. Não é que algo emerja dele, uma consciência, por exemplo, mas o fato de processar algo o difere de quanto está desligado e parece que, assim, ele está pensando (hardware - software).

Ora há algo a mais do que quando está desligado. Claro, há energia, assim como nós precisamos do sol para fazer nosso organismo funcionar. O computador ligado processa algo, ele possui um algoritmo sofisticado. Já uma lâmpada, quando ligada, transforma energia. E assim por diante, para todos os aparatos que executam algoritmos, que processam informação, transformam energia.

Todos esses aparatos e todas as máquinas que fazem isso pensam, a seu modo. É esse “algo que acontece quando estão funcionando”. Assim como nós funcionamos enquanto estamos aqui ligados e pensamos. E esse modo de pensar é perfeitamente factível, tanto o modo em si quanto o argumento.

Entretanto, para os postulantes da IA forte o algoritmo que é executado em qualquer aparato é consciente em si, coisa que parece bem esquisita. Isto faria com que ele fosse independente da plataforma, o mesmo algoritmo sendo executado por um computador ou um cérebro seria consciente da mesma forma. Até mais do que isso, levaria a um dualismo algoritmo (coisa pensante) x plataforma (coisa material)[iii].



[i] Essa era a ideia básica da coisa, falamos um pouco em https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2020/01/a-consciencia-da-ginoidei.html.

[ii] Pg. 55. Penrose, Roger. A mente nova do imperador: Sobre computadores, mentes e as leis da física. Traduzido por Gabriel Cozzella. São Paulo: Editora Unesp, 2023.

[iii] Há argumentos interessantes como o quarto chinês de Searle que mostraria que o algoritmo, mesmo passando no teste de Turing, seria incapaz de ter “entendimento” ou, em oposição, argumento de Hofstadter mostrando que o cérebro de Einstein descrito em um livro seria consciente, embora não possamos saber de que forma. De qualquer modo, Searle acha que muita coisa funciona como um computador digital, conforme Penrose, embora defenda que intencionalidade (ter intenção de) e semântica (entender significados) somente no cérebro humano. 

sábado, 13 de julho de 2024

Qual é a regra?

Pretende mostrar uma abordagem de como se constrói uma regra[i]

Gostaríamos de tratar da questão das regras sob um enfoque wittgensteiniano[ii], na medida em que toma uma regra como algo indeterminado. Ora, regra é “aquilo que regula, dirige, rege”[iii]. Nesse sentido, regra é uma metadefinição, pois uma regra precisa ser explicitada. Uma regra é uma generalização e, nesse sentido, praticamente impossível de atender todos os casos e sujeita a interpretação, inicialmente.

Dizer que fulano entende uma regra é dizer que fulano aplica a regra satisfatoriamente até aquele momento, mas não que ele vai sempre aplicar a regra de acordo com o que cicrano poderia tolerar. É que fulano pode ter entendido uma regra (regra específica um: RE1) de um modo RF que, nos casos aplicados até o momento, converge com o que entende cicrano, pelo modo RC. Mas nada impede que haja alguma aplicação de RE1 por uma regra RF que seja incongruente com RC.

Fica a questão de saber se RE1 pode ser igual a RF ou RC ou se RE1 é uma utopia. E isso só se dá na prática. Porque não se pode saber o que queria fulano na aplicação número 127 da regra, isto é, RF127 pode não coadunar com uma interpretação RCx de cicrano. Mas, até a aplicação RF126, RF era igual a RE1 e igual a RC (x – 1), não se podendo determinar ao certo esse x, o que inviabilizaria totalmente qualquer comunicação baseada em regras interpretadas por fulano ou cicrano. Se esse é o caso, essa possibilidade deve ser rejeitada.

Antes de mais nada, por que isso ocorre? Sem dúvida, porque cada palavra ou sentença que compõe a regra pode ter mais de um significado. Se o significado não está atrelado a algo mostrável, que se possa dizer: “o significado dessa regra é aquilo”, tem-se esse problema. Uma palavra não tem ligação lógica com seu significado[iv].

Isso posto, a única garantia é a linguagem comum, partilhada, e não um suposto entendimento de regras, ainda mais regras ancoradas em um pensamento interno, em uma linguagem privada. Pois por ela, nem mesmo o próprio sujeito teria um critério que determinasse o uso da regra, já que uma identidade interna seria duvidosa. Como ter certeza de que a dor de barriga que sinto agora é exatamente igual à que senti semana passada? Cai por terra o papel normativo de uma regra e condena-se o uso de qualquer linguagem, mas ainda assim continuamos nos comunicando[v].

Estamos no campo do suposto paradoxo do cético, mas ele não abandona a prática porque sabe que a linguagem é algo que funciona. Antes de haver fatos que legitimem as intenções há condições para uso da linguagem, ou seja, mantém-se o problema cético e soluciona-se a questão de outra forma[vi]. Se não há condição de verdade para a regra (ceticismo), não há um referencial interno (estado psicológico, comportamento), há o referencial da comunidade. A via de normatividade da regra passa para o uso público da linguagem, quando a regra é usada reiterada vezes em um acordo, no jogo de linguagem e agindo em acordo com a regra. Assim o julgamento de aderência sai do privado para o público, vai para um padrão de uso[vii].

Mas o fato de eu não saber se a dor que sinto é a mesma faz com que possivelmente eu não tenha nenhum tipo de parâmetro de como proceder. Mas temos porque sabemos que uma dor em determinada região até uma escala presumivelmente suportável irá passar ou tomamos o remédio “X” que já tomamos outra vez para sua cura. A causa específica fica por conta do médico. Ainda assim, não há critério garantidor, a não ser experiências passadas que se valem da memória.

Aqui surge um ponto que Nara traz da análise de Kripke que é fundamental: concluímos que uma regra privada não tem critério porque ele seria um critério de si mesmo e, nesse caso, sempre aderente, mas não poderia ocorrer o mesmo com uma regra pública? A questão cética volta porque não haveria critérios finitos para estabelecimento da regra e ela poderia ser interpretada de diversas formas. O problema é que queremos justificar o uso de uma regra pelo próprio uso da regra. Mas é exatamente porque uma regra não é algo separado e sim dependente do uso que se faz necessário recorrer ao acordo público.

Fica a questão de se uma regra deve ter um referencial, do ponto de vista cético, ou se basta que seja algo do uso prático, contingente.

Entretanto, o ponto de vista de Wittgenstein não é o de aderir a teses fundantes, mas mostrar que a linguagem é um jogo e que requer treino para o entendimento. Não se comprova algo de maneira irredutível, mas dependemos de testes recorrentes e situações que tendam para um uso comum e esse uso é a regra, dentro de cada contexto. Mesmo a palavra regra pode ter um uso diferente nos vários jogos de linguagem, cabendo explicitação do seu significado em cada um deles. Regra, então, não é um conceito, já que não pode ter um limite estabelecido, mas uma função normativa naquele jogo em que ela se caracteriza, conforme Nara. E que permite justificar o uso de determinadas palavras em um jogo, recorrendo a frequência de uso e generalização. E essa justificação é contingente, porém, uma vez estabelecida a regra, não haverá margem para interpretação.



[i] Seguimos na primeira leitura de: FIGUEIREDO, N. M. Estudo sobre regras e linguagem privada. A divergência de interpretações sobre a noção de regra nas Investigações Filosóficas. 2009. Dissertação FFLCH/USP.

[ii] Kripkenstein.

[iii] Oxford Languages

[iv] Nara, pg. 49.

[v] Idem, pg. 51

[vi] Conforme Nara, sobre Kripke, não que ele faça uma exegese, mas comentários.

[vii] Interessante a colocação de Nara de quando Wittgenstein nega a linguagem privada ele nega o uso de seguir uma regra privadamente. 

terça-feira, 9 de julho de 2024

Nova-mente

Estamos as voltas com a mente novamente e justifica-se, pois, é tema disputado na filosofia contemporânea. Saber o que é uma mente e conhecer sua composição, se é algo puramente físico ou algo que emerge e, uma questão lateral, mas que ajuda na compreensão, se máquinas podem pensar são assuntos instigantes.

Retomamos o estudo da mente também compreendendo que as questões filosóficas são cíclicas, vão e voltam. Estamos iniciando a jornada pela mente nova do imperador[i], jornada esta que promete ser longa e abrangente. E o tema está em aberto já que Penrose argumenta que ainda não temos uma teoria sobre a mente, mas teremos. E ela situa-se entre uma física microscópica e uma macroscópica, assunto que para nós é inóspito, mas que vamos explorar um pouco. Ocorre que há muitas pontas soltas entre as teorias físicas e uma que seria complementar poderia esclarecer os mistérios sobre o funcionamento da mente.

Porém, uma coisa é certa e com ele concorda Nicolelis[ii]: a mente não pode ser reduzida a processos computacionais. Ora, essa teoria por si só refuta a inteligência artificial, já que seus defensores entendem que um grande processamento, uma enorme capacidade de “pensar” originaria uma mente, por si só. Mas a coisa não é simples e Penrose terá trabalho para nos apresentar seu ponto de vista, que passa pela física, matemática, biologia e filosofia, isto é, é uma teoria de mundo físico, oriunda de uma de nossas mais altivas mentes.

Ressalta-se, obviamente, que é tema dos mais complexos, inclusive porque uma mente pode se confundir com uma alma e despertar paixões religiosas, mas nos parece que passaremos ao largo dessas questões. Por fim, não se pode negar que a tecnologia anda junto com a ciência e pode ser ferramenta de elucidação. Se o livro de Penrose já está envelhecendo (data de 89), nos parece que sua argumentação vai arregimentar boa parte de nossa evolução e poderá lançar luz a temas caros para nós.



[i] Penrose, Roger. A mente nova do imperador: Sobre computadores, mentes e as leis da física. Traduzido por Gabriel Cozzella. São Paulo: Editora Unesp, 2023.

[ii] Alguma coisa aqui: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2020/12/informacao-godeliana-anti-ia.html. 

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Manga não é manga

Tenta abordar a distinção entre definição e descrição e como ela pode esclarecer problemas de linguagem[i]

Nós comentamos que “não podemos sentir a dor do outro”. Eu não posso sentir a sua dor de dentes. Ocorre que essa impossibilidade é lógica e tentaremos elucidar. E, para isso, voltaremos ao contexto.

Vejamos um exemplo: “manga não é manga”. Essa sentença faz todo o sentido se estivermos usando os termos para falar da vestimenta e da fruta. Mas se assumirmos a convenção de que a manga da camisa não é mais somente manga, mas “manga da camisa”, então “manga seria sempre manga”, isto é, a fruta.

Nós podemos notar, com esse caso, que uma sentença pode ser verdadeira ou falsa dependendo do contexto, mas isso porque estamos nos referindo a algo no mundo, estamos tratando de sentenças que descrevem fatos, “descritivas”.

Por outro lado, não dá para dizer que “ele caiu para cima”, pelo menos aqui na terra e em se tratando do contexto físico. Essa é uma definição, uma regra que não é verdadeira nem falsa. Dizer que “caiu para cima” é uma impossibilidade lógica, assim como dizer que a “bola não é bola”.

Há, em Wittgenstein, de acordo com Nara, essa impossibilidade lógica e é exatamente essa impossibilidade lógica que faz com que “eu não possa sentir a sua dor de dente”, porque partimos de uma regra de que há uma dor interna de cada um. Mas se essa regra é flexibilizada e você me diz que está sentindo aquele dor de “raspar o dente para retirar uma cárie”, então eu posso dizer que já senti essa dor e, então, nós sentimos a mesma dor.

Seria esse argumento, se bem eu entendi até agora, que versa contra a linguagem privada, ou uma dor não compartilhada, ou um ego intransponível que beira o solipsismo. Isso tudo é um problema de linguagem. Se fizermos a análise da linguagem, dos usos termos, veremos que muitos conceitos caem e a metafísica pode se esfarelar. Mas esse trabalho é árduo e complicado e nosso entendimento do problema ainda é igual ao de um bebezinho que aponta para as coisas.



[i] Essas últimas observações têm se baseado no “ESTUDO SOBRE REGRAS E LINGUAGEM PRIVADA”, de Nara Miranda de Figueiredo, conforme referido em https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2024/06/apontar-nao-e-nada.html. Os erros de compreensão são meus, pois ainda são notas muito embrionárias de quem está com pouco tempo. 

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Apontar não é nada

Menino, não aponta o dedo que é feio![i]

A gente normalmente está acostumado a apontar para alguma coisa quando se pergunta pelo significado de algo. Por exemplo, quando nos perguntamos sobre uma maçã, podemos apontar para a fruta e então podemos falar sobre ela. Isso é muito comum, os bebês desde cedo aprendem dessa forma, apontando, não é mesmo? (já imagino aquele dedinho para cima)

Na maior parte das vezes, então, falamos sobre coisas e aí fica óbvio que esse é um caminho natural e correto. Até mesma sobre nossos problemas, nós os nomeamos e falamos sobre ele, eles se tornam coisas tangíveis. A gente fala de uma coisa, mas a gente usa a linguagem para falar dessas coisas. Porque as coisas em si mesmas estão lá paradas, quietas. A cadeira está lá, eu posso até atribuir uma propriedade para cadeira e ainda assim ela está lá. E podemos usar frases para colocar a cadeira em movimento, como ao dizer que a cadeira está “gasta”. Aí passamos uma ideia de movimento atribuindo um estado à cadeira, ela era nova e com o tempo ficou velha.

Mas há ocasiões em que não conseguimos apontar para as coisas e aí passamos para uma seara de difícil comunicação. Eu posso falar que estou ansioso, mas eu não consigo apontar para uma ansiedade. O número um, onde está? Há muitos casos que fazem com que nós tenhamos que “significar” as coisas de outro modo, que não o apontar. Daí conclui-se que a significação não se coaduna com a referenciação e uma coisa que parecia banal sofre um salto e precisa de nova interpretação.

Além do mais, o apontamento é nominalismo porque a palavra maçã significa a fruta maçã. A palavra é uma etiqueta para a coisa. Mas não é o caso que o significado de maçã seja a sua correspondência com a fruta porque isso fura a regra para muitos outros casos. Em realidade o significado de maçã se dá pela forma pela qual usamos a palavra maçã na linguagem.

Primeiro, pelas regras gramaticais, quando temos o entendimento de que maçã é um substantivo ao qual atribuímos propriedades, como cor, tamanho, etc. Segundo, ao usarmos dentro de um contexto, vejamos. Se um russo chega agora aqui em casa e eu ofereço uma maçã, ele prontamente poderá usar seu dicionário bilingue para entender o que eu quis dizer. Mas se eu pergunto para ele se quer uma maçã do amor, isso poderá deixá-lo em pandarecos porque maçã do amor é muito entendível por muitos, mas não por todos, e esse é outro problema de linguagem.



[i] Trata de um problema de linguagem que me surgiu quando dando uma lida em “ESTUDO SOBRE REGRAS E LINGUAGEM PRIVADA”. Acesso em 22/06/2024 pelo link: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-02122009-093554/publico/NARA_MIRANDA_DE_FIGUEIREDO.pdf. 

sábado, 22 de junho de 2024

Um problema de linguagem

Uma primeira reflexão sobre a linguagem privada

Eu falo e você me ouve, mas entende? Ora, aparente sim, nos comunicamos e a vida segue. A gente vai conversando e se comunicando, a gente vai sobrevivendo. O problema é que não há garantias de que você entende o que eu falo e um dos pontos principais é a suposição de que há uma linguagem privada que você tem e outra que eu tenho.

É como se você precisasse inferir a partir do seu estoque de coisas mentais, de coisas aprendidas, o que eu digo. Esse tipo de pensamento traz a impressão de que cada um tem a sua caixinha de coisas guardadas que dão sentido ao mundo. Então eu digo algo do meu estoque que tem um significado para mim e você escuta e processa de acordo com o seu mundinho. Vida que segue.

Ocorre que essa linguagem privada é quimera. Você pode ter uma dor dente e essa dor de dente é sua. Não adianta você me dizer que dói demais, eu não sei o que é isso. Eu posso saber por uma expressão, por uma cara de dor ou por uma reclamação reiterada. Você não pode me comunicar a sua quantidade de dor de dente e não há uma regra para medir a sua dor dente. Ora, com a linguagem é o mesmo.

Não adianta você dizer que entende A ou B do que eu falo. E eu falo C. A, B e C são coisas mentais e privadas e não existe uma linguagem privada porque não existe linguagem de uma pessoa. Pode haver um discurso mental, aquele capetinha que fica no ouvido. Mas isso é seu, não me importa.

Pode haver, no mínimo, uma linguagem de dois, mesmo que seja um dialeto, mas é algo que vai se acordando. Linguagem é acordo, é para fora, não é para dentro. Não importa o que algo significa para você, importa o que você expressa e o que o outro pode entender, e isso é um problema básico de linguagem.

  

sábado, 8 de junho de 2024

Dogma... Pra quê?

Pseudo manifesto sobre o viver[i]

É notável o esforço filosófico e sua contribuição nas mais diversas áreas. A filosofia se desloca pelos temas e traz reflexão. Ocorre que, aparentemente, a filosofia é muita subjetiva e pouco colaborativa. Um fruto daqui é colhido ali, há o edifício, porém dentro dele, os imóveis são de um morador. Ora, não podemos imaginar que há uma irrupção do espírito absoluto em uma mente, então, há dogma. Por mais rebelde que uma filosofia possa ser, seu dono nela acredita fazendo com que uma digressão vire dogma. Contudo, podemos viver sem ele(s)?

Precisamos pesquisar se há uma teoria filosófica livre de dogmas. Teoria e dogma dificilmente andam separados. Mesmo uma teoria com base empírica revela leis sub-reptícias. E uma teoria “quer” se estabelecer sendo que, para isso, o dogma é seu aliado. Entretanto, vemos cristalinamente as mais pujantes teorias se esvaírem. Dia-após-dia. E aqui convém ressaltar um ponto fundamental: não queremos negar a utilidade de uma teoria, há teorias de enorme aplicação prática. Queremos negar seu produto: o dogma. Ou sua base.

Isso posto, há sentido em uma vida sem dogmas? A resposta não é simples e ela envolve não somente considerações teóricas, mas também os impactos no viver, no bem viver. E não parece que uma bandeira de vida possa ser destrutiva. Não aventamos um não dogmatismo ou antidogmatismo. Importa passar os dogmas em revista. Importa viver praticamente, respirar. Comer, dormir e acordar da melhor maneira dentro das possibilidades que, em constante mudança, se apresentam. MUDAR. Mudar é uma postura que leva o cãozinho dogma consigo. Ele cai na mudança. Ele morre? Não sabemos, mas tentaremos sobreviver.



[i] Escrito depois de umas e outras, dia primeiro de maio de 2024, às 00h18. 

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Me da o contexto

Nossas investigações se encontram em uma situação na qual há uma linguagem que é usada para nos comunicarmos, mas não sabemos ao certo o que é compreendido nas interações entre falantes e ouvintes. Na base dessa linguagem há termos que devem ser entendidos pelos envolvidos, isto é, há termos com significado e eles se combinam para formar frases e períodos maiores que expressam grandes pensamentos.

Porém, o fato de haver significado em um termo ou em expressões linguísticas não quer dizer que, para cada um deles, o significado é único ou que ele é interpretado da mesma forma pelos emissores e receptores, isto é, pelos participantes de uma conversa ou aqueles a ela associados.

Nós podemos, então, caracterizar uma conversa como um recorte de uso da linguagem por aqueles que estão a ela associados. A conversa se dá pela interação entre os associados e, fundamentalmente, por um contexto compartilhado, porque se não há esse contexto no qual todos se inserem, já se pode considerar que o elo interpretativo está quebrado.

Delimitando esses elementos principais: a conversa, o contexto e os associados, ao pensarmos em uma ordem de precedência entre eles já poderíamos contribuir com uma possibilidade de esclarecimento da viabilidade da comunicação no que tange à compreensão[i]. Mas, saber esses elementos são suficientes é ponto para verificação.

De toda forma, o significado é condição sine qua non para a compreensão, mas a mola mostra é saber até que ponto ele deve estar fixado. O significado pode se confundir como uma “entidade” que emerge da conversa, como se referindo a algo ou como basicamente uma coisa inerente à própria linguagem.

É aqui que nossa análise dá um salto: partirmos das condições pelas quais uma comunicação ocorre, que é a união de associados em torno de conversa que tem um contexto, para que possamos investigar de que modo a compreensão se dá, como o significado é entendido. E delimitamos os três caminhos citados acima.

De fato, não são três, mas dois caminhos: um que o significado é “algo”, outro que o significado se confunde com a própria linguagem, com as regras de uso da linguagem. Podemos chamar a primeira abordagem de metafísica por ter que tratar do algo, já a segunda é a abordagem gramatical de Wittgenstein, sendo que ela é fortemente dependente do contexto, mas muito dinâmica e, de acordo com Kripke, não garantidor.

Nós queremos fazer uma análise da linguagem que não caia em armadilhas metafísicas e concordar com Wittgenstein na análise dos usos da linguagem; o que algo significa é dado por seu uso e fortemente marcado pelo contexto. Ocorre que Kripke pontua que o contexto não pode garantir o uso porque, dada a variância do contexto, haveria uma “livre interpretação” do significado.

Aí haveria uma dificuldade de concordância e voltamos ao princípio. Embora essa flexibilidade não seja de todo ruim. Por outro lado, um mínimo de explicabilidade é importante para resolver as disputas, mesmo aquelas da vida ordinária.



[i] Sobre esses termos, em 19 de maio de 24 o ChatGPT-4o nos responde assim: “Comunicação é o processo de transmitir informações, ideias ou sentimentos entre pessoas. Compreensão é o entendimento ou a interpretação correta dessas informações, ideias ou sentimentos recebidos. Em resumo, comunicar é enviar uma mensagem; compreender é decodificar e entender essa mensagem.” 

domingo, 26 de maio de 2024

Dois pensamentos da Flig 2024

A Flig é muito mais do que direi aqui, mas não é o caso de falar sobre ela, vale mais ir e conferir.
Assim como em 2023, em 2024 estivemos mais presentes do que em outros anos e não faltam reflexões, mas dois pontos me chamaram a atenção, particularmente.
O primeiro é a respeito de uma velha frase que escutamos em ocasiões de monta, qual seja, "até que a morte nos separe". Ora, se parece despretensiosa, cala. Cala no peito de carrascos e ressoa nos feminicídios. Até que a morte nos separe é o salvo conduto que os débeis reprimem esperando o momento de ataque. Por menos frases rigorosas e deletérias como essa. Por mais amor e leveza.
O segundo ponto trata da perversidade. Criado em Guaratinguetá, aprendi desde cedo que certas moças eram perversas, ou "pervas", no sentido de serem assanhadas. E qual o problema delas? Nenhum, há problema com a mentalidade perversa e tacanha de uma cidade antiga. Aprendi errado, a perversidade é de quem julga e quem julga quer punir. Sim, há gente que quer vigiar e punir e esses são os perversos.
E é por coisas como essa que a Flig é fundamental: em uma cidade atrasada é um sinal de luz. Que tenha vida longa!

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Pelo fim das opiniões filosóficas

Tenta pôr um fim na opinião filosófica que é um fim em si mesma[i]

Opiniões filosóficas. A princípio uma opinião filosófica é uma opinião que visa “desmistificar” algo, isto é, visa esclarecer, porém o faz procurando mostrar a essência daquele algo. “Cogito ergo sum”, ou, “penso, logo existo” é todo o fundamento da filosofia cartesiana que parte da dúvida para negar o mundo exterior. Ora, esclarece que não se pode confiar nos sentidos, mas, por outro lado, mostra nossa essência mental. Uma outra opinião filosófica pode nos ajudar a entender que devemos fazer o bem, mas para isso ela se baseia em uma máxima universal que se funda na essência moral. Já postular que Deus é a natureza esclarece que ele não é transcendente posto que sua essência é imanente.

Leis. Isso tudo são usos de linguagem para fins filosóficos. Entretanto, são opiniões que, uma vez postas, ficam à mercê de argumentação contrária. Mas por que estamos falando de “opiniões”? Isso não seria rebaixar a nobre filosofia? De maneira alguma, isso seria colocá-la em lugar útil e promissor. Porque se tratássemos opiniões filosóficas como leis filosóficas, elas não seriam passíveis de contestação, mas leis, pelo seu próprio caráter, ou são imposições ou têm total comprovação empírica. Uma lei filosófica é um absurdo em si mesmo, se imposta. Se, ao contrário, é empírica, não é filosofia, mas ciência.

Uso filosófico da linguagem. Então, uma opinião filosófica é um uso filosófico da linguagem. Mas esse uso não é promissor porque ele está sempre buscando esconder uma essência travestida em esclarecimento. Por isso, denunciemos o uso filosófico da linguagem ou o uso da linguagem para fazer filosofia. O uso da linguagem para expressar opinião filosófica é um uso especulativo e estéril. É um uso que arrebanha intelectuais que se digladiam por detrás de livros e ideias provisórias, senão dogmáticas.

Terapia. Se não de se pode falar se deve calar? De maneira alguma e o próprio mestre depois ensinou: devemos falar e muito, mas denunciar esses usos, que não passam de confusões. Na vida cotidiana temos nossas opiniões e um conjunto de crenças que muitas vezes nos levam a uma vida angustiante. Enxergamos o mundo de tal forma que essa interpretação se mostra claramente equivocada, se analisada. São confusões que devem ser resolvidas por uma boa terapia com procedimentos e métodos terapêuticos que podem nos ser úteis tanto no dia a dia como em filosofia.

Uso inadequado da linguagem. É justamente essa visão de terapia filosófica que estamos tentando entender da proposta wittgensteiniana. Conforme Plínio: “... as investigações filosóficas (...) nos farão reconhecer que o suposto conhecimento filosófico é apenas um produto de um uso inadequado da linguagem”.[ii] Não parece claro e cristalino? Só há conhecimento (sic. opinião) filosófico porque fazemos um uso inadequado da linguagem. Se queremos usar a linguagem para o seu fim adequado, não devemos usá-la para fazer filosofia. Mas não devemos fazer filosofia? Devemos! Mas como uma atividade de denúncia do uso inadequado da linguagem e de esclarecimento do uso correto da linguagem, mas um uso que não se mostre dogmático.

Pragmática. Um uso terapêutico no campo filosófico é um uso que não deve ser dogmático, já que visa elucidá-lo. Mas um uso terapêutico pode acabar pode ter teses positivas e cuja proteção se poderia dar pela pragmática, conforme o projeto de Arley Moreno[iii] e seu compromisso com “teses filosóficas não dogmáticas” e que enfoca a gramática dos usos das palavras sem formular hipóteses sobre sua justificação e sem afirmar nada sobre o que é, mas sobre o que é possível ser.

É um campo a ser explorado.



[i] Essa é uma tentativa de manifesto baseada em terapia e ceticismo a partir dos textos que temos lido e que, em geral, resenhamos nesse blog. Coisas que temos olhado: FILOSOFIA E TERAPIA EM WITTGENSTEIN, de João Carlos Salles Pires da Silva e WITTGENSTEIN E O PIRRONISMO: SOBRE A NATUREZA DA FILOSOFIA de Plínio Junqueira Smith.

[ii] Analytica, volume 1, número 1, 1993, pg 160.

[iii] Analytica, volume 9, número 2, 2005, pg 104.