O conceito de substância é uma
conclusão metafísica e se refere a existência de uma realidade, surgindo como
resposta a um problema. Mansion argumenta que a noção nasceu com Aristóteles [1]. O termo como usamos remete ao latim substantia do
grego ουσια e também essentia (ειναι). Platão
usou o termo associado a ειναι, como realidade, existência,
essência, o que é uma coisa. Em oposição ao fluxo das coisas mutáveis, de um
vir a ser, Platão buscava o ser, realidade verdadeira e estável, parte
constitutiva daquilo que é. Aristóteles muda a abordagem se orientando a uma
espécie de seres, um gênero de ser primeiro e mais importante de todos. No
Tratado das Categorias, que faz parte do Organon, da Lógica, o Filósofo define a substância na tábua das categorias das coisas: ela é a primeira e a segunda
categorias; depois vêm os acidentes: qualidade, quantidade, relação, ação,
paixão, lugar, tempo, posição e posse. Mas, deixemos o tratamento dado nesse
texto para o fim, devido às controvérsias que suscita.
A realidade da substância e a
predicação: sujeito último da atribuição
O conceito de substância vem para resolver a
antinomia do Um e do Múltiplo, tentando conciliar Heráclito e Parmênides. Na
Metafísica, "o ser é tomado em várias acepções", mas com relação a um
único termo: a substância. É o ser no sentido primeiro e fundamental. De quatro
maneiras se classificam as acepções do ser: o que convém acidentalmente a um
objeto; o que um objeto é em si [2]; o verdadeiro
se contrapondo ao falso; a potência e o ato. Existem muitas naturezas contidas no
real e elas se referem ao ser por si, segundo as formas da predicação. Mas uma
realidade tem muitos predicados que são as categorias - as classes dos predicados
das coisas. Então, os predicados dos juízos não se unem no sujeito da mesma
maneira: existem distintos modos [3]. Importa das
categorias destacar a categoria primeira, a substância, que "é o que
não se diz de outro sujeito, mas ao qual se referem os outros predicados".
O que se atribui a outro sujeito é acidente. Distinguem-se substância e acidente
porque as demonstrações não podem ir ao infinito, há sempre um sujeito último e
um predicado último. Para Aristóteles, o ato de atribuir deve ser feito em
sentido estrito para ser ciência (p.ex., "Este homem é branco.") nas quais o
predicado é referido a seu substrato natural. Uma atribuição por acidente
seria: "Esta coisa branca é um homem." - aqui acontece ao homem ser branco. No
primeiro caso, a atribuição é essencial (τι εστι), p.ex., "Sócrates é homem" exprime o que o sujeito é, significa a substância. Já os acidentes são ditos de
um sujeito diferente deles, p.ex., "Sócrates é branco" é uma qualidade que afeta
Sócrates, os acidentes determinam o sujeito. Mas a substância não é um termo
impredicável porque ela é a primeira classe de predicados. Na verdade, a ουσια é uma
realidade (nela mesma, nem sujeito nem objeto) e não um termo lógico. Ela é em
si, ao se atribuir a outro é o τι εστι, a categoria da essência, o quid est de um sujeito.
Substância separada e
subsistente
Mas, substância e essência são termos sinônimos?
Na Metafísica, Livro Ζ, Aristóteles define a substância como ser em
sentido absoluto, fundamental. Observando as teorias da substância dos
filósofos anteriores, ele extrai quatro sentidos principais, dois dos quais ele
não considera substância: o universal (καθολου) e gênero (γενος)
- porque atribuídos a vários. Um terceiro sentido é o sujeito (υποκειμενον)
que parece ser a substância. Porém, dizer que substância é o que não se diz de um
sujeito pode aproximá-la da matéria, que seria o verdadeiro sujeito da
atribuição, um substrato material indeterminado. Entretanto, pelo Livro Δ, faltam à matéria duas características para ser substância: τοδε τι
e χωριστον. Χωριστον é o que não pode existir separado, p.ex., a
matéria [que precisa da forma] e as categorias secundárias; χωριστον remete ao
composto matéria e forma. Τοδε τι é algo determinado, essa coisa (não
necessariamente um indivíduo) e por isso a matéria não é algo determinado, ou o
é em potência; enfim, τοδε τι significa subsistência e convém somente
à primeira categoria. Há uma nova definição de substância: um ser determinado,
capaz de existir só. A primeira definição levou a um impasse associando a
substância primeira à matéria, mas υποκειμενον só é substância se for determinada, e
o substrato material não pode ser visto como sujeito último da atribuição, ele
o é apenas potencialmente, não determinadamente.
Quididade
Por outro lado, o sujeito último da
atribuição é uma essência que é atribuída por identidade. Trataremos então do
quarto sentido analisado por Aristóteles, conforme Mansion: a quididade (το τι ην ειναι). Só a substância tem
uma verdadeira quididade, os acidentes a tem em sentido secundário. Para
Platão, a essência das coisas sensíveis estava na Ideia, ou seja, fora das
coisas. Aristóteles discordou deste ponto porque assim a essência das coisas
não era imanente a elas e não explicaria a realidade delas. Para o Estagirita deveria haver identidade entre a substância e sua essência e em sentido
absoluto, já que nos acidentes não há. P.ex., em "Este homem é branco" o ser do
branco não é homem e a quididade do branco é a brancura. E mais, a definição de
um acidente implica sempre a substância, por que ele só em si por outro. Assim,
a doutrina da substância a define a partir de quatro características que se
imbricam: o sujeito, o ser separado, o determinado e a essência, embora Aristóteles destaque
mais a primeira definição de sujeito último de atribuição, conforme defende Mansion.
Tratado das Categorias
Em 26/06/2016: trecho a seguir alterado, retira-se o tachado e acrescenta-se o parágrafo seguinte.
Em 26/06/2016: trecho a seguir alterado, retira-se o tachado e acrescenta-se o parágrafo seguinte.
Sobre o Tratado das Categorias, Mansion considera um "ensaio de principiante" (sendo de Aristóteles, mas ela acena para o ensaio ser de um discípulo dele). Clarifiquemos: à luz da Metafísica, substância é o sujeito último da atribuição que podemos qualificar pela asserção: "o que não se diz de um sujeito". Porém, nas Categorias, a substância primeira é "o que não se diz de um sujeito" mas também "o que não está em um sujeito" e a substância segunda é "o que pode se dizer de um sujeito" mas também "o que não está em um sujeito", do que se conclui que o traço fundamental de substância é o de "não estar em um sujeito". Mansion considera essa definição de substância mais vaga, em detrimento à da Metafísica e que seria usada nas Categorias em oposição aos acidentes que estão em um sujeito. Por outro lado, a qualificação "não se diz de um sujeito" extraída da Metafísica teria dois sentidos a serem aplicados em contextos diferentes: 1) no plano da lógica, "não se dizer de um sujeito" caracteriza o particular em oposição ao universal que se diz de um sujeito; 2) ontologicamente, não se dizer de um sujeito é o traço que diferencia substância de acidente. Ou seja, a substancialidade (ponto 2) seria em algum contexto individualidade (ponto 1) e, "tal confusão", não poderia ser atribuída a Aristóteles [4]. Além disso, Mansion também mostra certa curiosidade de algumas colocações da "doutrina da substância" no Tratado das Categorias: 1) os diferentes gêneros de ser, nas Categorias, seriam termos sem ligação, enquanto na Metafísica há sempre um juízo ligado à substância, uma atribuição e 2) haveriam dois tipos (graus) de ser: substância primeira e segunda, distinção só presente nas Categorias.
______
* MANSION, S. A primeira doutrina da
substância: a substância segundo Aristóteles – in Sobre a Metafísica de
Aristóteles: textos selecionados - coordenação de Marco Zingano – São Paulo:
Editora Odysseus, 2009.
[1] Aparece na Metafísica, Categorias e Segundos
Analíticos.
[2] Possui tal natureza, se divide
conforme categorias.
[3] Sócrates é homem; Sócrates é branco;
Sócrates está em Atenas.
[4] Individualidade: "μή εν υποκειμενου ειναι"; substancialidade: "μή καθ' υποκειμένου λέγεσθαι".
Nenhum comentário:
Postar um comentário