sábado, 28 de março de 2020

Não tem ninguém na rua


Não tem ninguém na rua?
Eu olho pela janela, nada!
Está frio, venta, um aqui, outro ali.
Não tem carro, ninguém vai e ninguém vem.
Ninguém?

Tem sim.
É você que não vê.
Você só vê o que quer e não vê porque não crê.
Só crê em você.
Só quer.

Mas tem algo que você não vê,
Tem.
Tem muita coisa.
Tem coisa grande e pequena,
Não tem?

Tem gente que você não vê.
Mas hoje tem pouco...
Quando tem muito, você não vê.
E hoje, o que você vê?

Você não vê,
Você não acredita.
Tem um bicho ali, na esquina.
Na esquina, na janela.
Na minha casa e na casa dela.

É o que mais tem.
O que você não quer.
Mas você só quer.
Você só o quer, não tem ninguém?

quinta-feira, 26 de março de 2020

Terraplanismo

A partir de 2013 começou um processo de radicalização de um tipo de opinião a favor de “direitos individuais” que traz a reboque um empreendedorismo cego aliado ao cerceamento do debate. Eleito o inimigo, naquele momento coisa simples, fácil e óbvia, sedimenta-se o caminho rumo à negação da ciência, apego ao Deus provedor das igrejas e um movimento direitista sutil que se apropria das mídias sociais para alienar a maioria da população.
Eleito o novo messias em 2018, o resultado não é somente robôs virtuais que fazem disparos em massa a serviço do gabinete do ódio ou do gado que se vê empoderado no líder, mas toda uma inteligência coletiva degradada. O povo se perdeu, a classe média quer migalhas. Essa camada sempre semi-favorecida, mas nunca abandonada, sempre flutuando por cima dos que carregam o piano, tal classe, sim, trabalhadora também, emburreceu.
É triste e tenho dó deles. Tenho dó porque estão além das possibilidades. Repulsam a crítica. Criam mitos brucutus e artificiais. Há tanto debate na esquerda, nos blogs sujos, na academia. Há, também, eventualmente, erros, ideologia. Mas as sobras que são jogadas para essa camada que (benza deus!) agradecem, é um filme monocromático. Vide Jornal Nacional e o desfile de economistas coxinhas, um monólogo chato e sonolento. Não há diversidade.
Será que eles (classe média) merecem? Ou será que não fomos capazes de formar uma sociedade mais emancipada? O discurso raso, o viver utilitário (trabalho-resultado), o mercado, enfim, tudo isso germina nossa sociedade hipócrita e mesquinha. Mas, eu tenho dó porque eles acham que assim são felizes. E, certamente, não é soberba de minha parte pois sei que só estamos aqui para usufruir enquanto for possível e enquanto deixarem. Depois disso é só o pó.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Critérios de Mesmidade[i]

Claudio Costa trata do que ele chama mesmidade, que é o conceito de identidade pessoal que faz com que uma pessoa seja a mesma ao longo do tempo, ou seja, sua identidade numérica. Isso definido, Costa busca critérios para essa identidade pessoal, que são abordados por teorias físicas e psicológicas, as primeiras se atendo à continuidade corporal ou cerebral, as segundas na manutenção de traços de caráter, recordações pessoais, etc.
Critérios físicos. Costa coloca em dúvida a permanência corporal, já que um corpo morto não é mais uma pessoa. Sobre a permanência do cérebro[ii], Costa se pergunta se seria um critério mais decisivo que o corpo.  Não necessariamente, pois se pensarmos em um cérebro mantido em formol ou o de alguém em coma, não se pode considerar que a continuidade do cérebro é exatamente o critério para identidade pessoal.
Teletransporte. Um experimento mental citado por Costa é o de Derek Parfit que trata do teletransporte de uma pessoa da Terra para Marte, em que não haveria continuidade corporal, mas que o filósofo considera ser a mesma pessoa. Peter Unger pensa diferente, dizendo que a pessoa original não existe mais, restando apenas uma réplica. Se, talvez a continuidade física substantiva não seja imprescindível, Costa mostra que ao menos uma conexão física causal deve ser necessária para relacionar a pessoa, o que seria verdadeiro no caso do teletransporte. Porém, se o teletransporte produzisse 5 cópias, por exemplo, não seria possível dizer que se trata da mesma pessoa (como no caso da ameba: 1 vira 2 que vira 4, etc.). Enfim, citando Robert Nozick, Costa conclui que ”a identidade é possível quando a continuidade física substantiva ou causal é unilinear”.
Critérios psicológicos. O ponto crucial, que Costa atribui a Locke, é o da memória pessoal, ou seja, sei que sou eu até onde vão minhas lembranças sobre mim. Contudo, Costa ressalta que o caso de alguém que perca sua memória, porém guarde traços psicológicos pode facilmente mostrar ser a mesma pessoa. E ilustra com o caso do motorista de Lady Di que perdeu a memória no acidente, embora saibamos que se trata dele mesmo e podemos até informa-lo disso. Assim como o critério da continuidade corporal [objetiva], a permanência da memória pessoal [subjetiva] não é critério suficiente para a identidade pessoal.
Por fim, Costa cita alguns casos onde a memória pessoal não seria relevante, quando, por exemplo, em um teletransporte a memória de Arafat fosse trocada com a de Sharon, isso não os faria perder sua identidade pessoal, porém provavelmente causaria algum desconforto. Muito embora, acrescenta Costa, a memória pessoal deveria ser confirmada por outra pessoa para que de fato pudéssemos comprovar que se trata da mesma pessoa, ou seja, ela seria um pressuposto epistêmico.
Critérios mistos. Costa então propõe uma regra P baseada nos dois grupos anteriores: A e B. Define-se:
Grupo A (critérios físicos):
1.      Continuidade física substantiva
2.      Conexão física causal
Grupo B (critérios mentais):
1.      Persistência da personalidade e caráter
2.      Persistência da memória proposicional e de habilidades
E a Regra P: uma pessoa pode ser considerada a mesma quando ao menos um critério de cada grupo estiver sendo suficientemente satisfeito.
A regra é maximizada quando temos todos os critérios aceitos e se degrada aos casos que quase não sabemos decidir. Ou seja, conclui ele, não há uma condição objetiva para analisar a questão da identidade pessoal.



[i] COSTA, CLAUDIO. Filosofia da Mente, p. 38 e ss. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Passo-a-passo; 52)
[ii] Que teria prioridade sobre o corpo, conforme o exemplo de Sydney Shoemaker da pessoa chamada Brownson.

domingo, 8 de março de 2020

Emergentismo

Pegamos um recorte pequeno de El-Hani & Queiroz[i], para definir a emergência como a criação de novas propriedades que são emergentes, ou seja, são de um nível superior e se relacionam a uma microestrutura de um sistema. Eles afirmam que uma teoria fisicalista emergente deve se comprometer com o naturalismo, em oposição a entidades sobrenaturais e o monismo[ii] físico: todas as entidades são constituídas de partes físicas[iii] e seguem leis físicas.
Conforme Pessoa[iv], “quando a matéria adquire um certo grau de complexidade, aparecem propriedades genuinamente novas, que não estão presentes em cada uma das partes separadas do todo[v]. George Henry Lewes, ao tratar da emergência, cita o caso da água: “não sabemos como a Água emerge do Oxigênio e Hidrogênio. O fato da emergência nós conhecemos; e podemos estar seguros de que o que emerge é a expressão de suas condições”.
Cabe ainda citar, conforme Pessoa, o cientista inglês Conwy Lloyd Morgan, que usou a emergência no campo da teoria da evolução biológica tratando do desenvolvimento advindo de mudanças mecanicistas, que ocorrem continuamente na evolução, mas também de efeitos emergentes que surgem no nível da vida, fora do ornamento físico mecanicista. E Charlie Dunbar Broad como o filósofo que mais trabalhou a ideia de emergência na Filosofia da Mente, que permite conciliar materialismo com não reducionismo.
Já o neurocientista Roger Sperry concebeu que os fenômenos mentais não estariam no nível neuronal, mas em uma camada acima, holista, que culminaria com a tese da causação descendente, onde a consciência poderia controlar o cérebro[vi]. Nesse ponto, Pessoa lembra Jaegwon Kim, já que para ele o universo físico teria um “fechamento causal” e não haveria espaço para uma relação causal de natureza mental.



[i]  Conforme "Modos de irredutibilidade das propriedades emergentes", de Charbel Niño El-Hani & João Queiroz, 2005. URL: http://www.scielo.br/pdf/ss/v3n1/a01v3n1.pdf, acesso em 08/03/2020.
[ii] Conforme Wikipédia: “Em geral, é o nome dado às teorias filosóficas que defendem a unidade da realidade como um todo (em metafísica) ou a existência de um único tipo de substância ontológica, como a identidade entre mente e corpo (em filosofia da mente) por oposição ao dualismo ou ao pluralismo, à afirmação de realidades separadas.”. Endereço https://pt.wikipedia.org/wiki/Monismo, acessado em 08/03/2020.
[iii] Geralmente podemos dizer que o constituinte fundamental da matéria é o elétron, numa simplificação do Modelo Padrão, embora se sabendo que pode se chegar a infinitos níveis de descendência e que estamos sob ameaça da teoria das cordas.
[iv] Pessoa: http://opessoa.fflch.usp.br/sites/opessoa.fflch.usp.br/files/TCFC3-16-Cap03.pdf.
[v] Argumentação de Jaegwon Kim.

terça-feira, 3 de março de 2020

Uma consciência, uma dificuldade

Até onde se sabe nós, humanos, somos os únicos seres que conhecemos que são autoconscientes. Por exemplo, o cachorro tem consciência, sente fome, frio e fica feliz. O cachorro tem as suas armas na luta pela sobrevivência. Porém, parece que ele não sabe que sabe disso. Ou talvez saiba, em uma escala bem menor do que a nossa. Já dos homens se diz que são animais racionais e tal afirmação aponta para a primazia da razão que vem calcada na consciência reflexiva
O homo sapiens, que é o que somos, tem 350 mil anos[i] e seu cérebro desenvolvido remete à casa de milhares de anos. Uma bela evolução! Ou seria o cérebro (e seu produto ou sua cara metade a consciência) contra evolutivo? Bem, vejamos. A consciência não foi [ainda] definida, explicada quer seja pela ciência quer seja pela filosofia e mantem-se misteriosa. Desde Kant e sua terceira antinomia vemos o conflito da consciência com a natureza[ii]. Diríamos que o que há de mais antinatural é a consciência!
Falemos sobre a marca da morte. Vivemos sentindo a marca do tempo e buscando nossa conservação, mas não é só isso (já diria Rousseau[iii]). O cachorro também busca a sua conservação (foge quando há perigo, briga por comida, etc.), mas, provavelmente, só “lembra” que está em risco nesses momentos. Nós, humanos, podemos passar todo o tempo de nossa vida pensando na morte (nossa, dos entes queridos, etc.) ou mesmo forjar perigos fictícios que possam nos levar a uma morte nada iminente.
Mais do que isso, ao mesmo que nos conservamos destruímos o planeta e os outros animais. Seria essa mente evoluída a responsável pela provável eliminação dela própria? A consciência (a mente, o cérebro, a alma, enfim..) se choca com o mundo, não entende o mundo. Ela é feita de outro material. Na dúvida, conforme Camus, o suicídio é uma saída (nada racional!). Pois essa consciência é a primeira dificuldade no estudo da Filosofia da Mente.


[i] Conforme https://pt.wikipedia.org/wiki/Humano, acesso em 03 de março de 2020.
[ii] Na verdade trata-se do conflito da liberdade com a natureza, mas aqui tomamos liberdade por consciência, conforme já explorado em: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2016/06/um-caminho-para-liberdade-em-kant.html. “Kant separa a causalidade da natureza e a causalidade da liberdade, essa como faculdade de seus agentes, dos homens, ou seja, uma causa fora da série. Essa liberdade é uma liberdade transcendental, é uma ideia da razão que não vem da experiência.” Vê-se aqui a liberdade fora da natureza. Mais do que isso essa liberdade não passa de uma ideia!
[iii] Aqui remetemos ao ensaio de Rousseau que parte de um estado fictício da humanidade em que o homem tinha um amor-de-si que se transforma em amor próprio, na medida em que o homem se socializa e quando surgem as paixões e os males da sociedade.