segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Cidadãos do Universo*

Nesse último capítulo, Russel verificará qual o valor da filosofia e por que estudá-la. Ele inicia com a constatação de que, se há utilidade no estudo das ciências físicas, isso não ocorre no caso da filosofia já que seu valor diz respeito não somente ao estudo de coisas materiais, mas para os benefícios que traz para a mente.
Para Russell, a filosofia é um tipo de conhecimento que dá unidade ao todo das ciências examinando criticamente as bases de nossas convicções, preconceitos e crenças. Porém, diferentemente dos resultados obtidos pelas outras ciências, a filosofia não costuma apresentar resultados positivos, até porque quando um conhecimento, antes filosófico, se estabelece, ele passa para outra ciência, como no caso da astronomia, filosofia natural ou psicologia. Ficam, então, com a filosofia, questões sem resposta definitiva.
Por outro lado, Russell ressalta que a filosofia investiga questões especulativas não demonstráveis e controversas, mas de grande importância, como a natureza e finalidade do universo, mente e consciência, questões morais, etc. Embora filósofos sustentassem respostas e demonstrações para crenças religiosas, o estudo promovido por Russell nessas investigações demonstrou que não há provas filosóficas contundentes em tal conhecimento e não está aí o valor da filosofia.
Russell define o valor da filosofia na incerteza. O homem que desconhece a filosofia fica preso em seus preconceitos e nas verdades do seu tempo, acreditando que o mundo é definido e fechado. Então, o estudo filosófico levanta dúvidas nas questões mais banais nos lançando nas mais variadas possibilidades de como as coisas podem ou poderiam ser. Principalmente, a filosofia faz com que nos libertemos de nosso mundo de interesses privados e vontades instintivas em direção a um mundo maior e mais livre, escapando de nossa prisão cotidiana.
Para Russell, a contemplação filosófica (que nos permite escapar..) traz um alargamento do ser, do eu, para além do maniqueísmo e se baseando puramente em um conhecimento livre de amarras. Daí que não devemos nos prender em filosofias que tratam do universo para o homem, definindo-o como a medida das coisas e do conhecimento uma criação de e para nossa mente. Russell apregoa que é preciso romper nosso círculo doméstico de preconceitos em busca do não eu pois um intelecto livre se deixa levar pela verdadeira contemplação filosófica que busca um conhecimento abstrato e universal, superando a barreira do corpo, do eu, do aqui, agora.
Russell conclui ressaltando que uma mente que se eleva à contemplação filosófica é livre e imparcial e tal comportamento reflete em nossas ações e sentimentos como um propósito do todo. A mente que deseja a verdade, segundo ele, é a ação que deseja justiça e o sentimento do amor universal e não uma que parte de nosso julgamento e utilidade. Só assim nos tornamos cidadãos do universo. Finalizando o livro, vem sua citação:
Thus, to sum up our discussion of the value of philosophy; Philosophy is to be studied, not for the sake of any definite answers to its questions since no definite answers can, as a rule, be known to be true, but rather for the sake of the questions themselves; because these questions enlarge our conception of what is possible, enrich our intellectual imagination and diminish the dogmatic assurance which closes the mind against speculation; but above all because, through the greatness of the universe which philosophy contemplates, the mind also is rendered great, and becomes capable of that union with the universe which constitutes its highest good.



Bertrand Russell, Problems of Philosophy. THE VALUE OF PHILOSOPHY. Acessado em 15/8/2019: http://www.ditext.com/russell/rus15.html. Ver o seguinte fichamento e os anteriores:.https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2019/09/criticismo-filosofico-i.html.

domingo, 15 de setembro de 2019

Criticismo Filosófico [i]

A Ideia Absoluta de Hegel. Russell diz que é prática comum na filosofia o uso de um raciocínio metafísico a priori para tratar de dogmas da religião, universo, matéria, etc., que, porém, não sobreviveria a um escrutínio crítico. Para ele, o representante desse pensamento é Hegel, que estabelece que o todo é composto por partes fragmentárias incapazes de existirem sem o resto do mundo.  Nesse sentido, o filósofo, a partir de qualquer amostra de realidade pode ver o todo, como se cada pedaço fosse enganchado com o próximo e assim por diante. Russell diz que, de acordo com Hegel, essa incompletude aparece tanto no mundo das coisas quanto no dos pensamentos, composto por ideias enganchadas que, através da contradição, uma ideia se transforma em antítese para daí virar síntese que, ainda incompleta, inicia um novo ciclo e, sucessivamente, avança até a "Ideia Absoluta".[ii] Essa ideia absoluta descreve a realidade absoluta que seria o que Deus vê: uma unidade espiritual imutável, perfeita e eterna.
Os problemas com a Ideia Absoluta. Russell argumenta que, apesar de parecerem sublimes, ao serem investigados os argumentos são confusos. Hegel diz que o que é incompleto não subsiste por si só e depende de relações com outras coisas que fazem parte de sua natureza. Por natureza de uma coisa, Russell entende que seja “all the truths about the thing”. Se parece claro que a verdade que liga uma coisa à outra não subsiste se a outra coisa não subsiste, essa verdade não é parte da coisa, mas, segundo Hegel, é parte da natureza da coisa. Russell, então, enfatiza a confusão da natureza entre conhecimento de coisas e conhecimento de verdades. Se assumirmos que a natureza da coisa consiste nas verdades da coisa, deveríamos conhecer todas as relações da coisa com todo o universo, porém isso não é possível e ainda assim conhecemos a coisa, mesmo quando sua natureza não é completa. Conhecemos uma coisa por familiaridade até mesmo sem conhecer nenhuma proposição da coisa. Ou seja, conhecer uma coisa não requer conhecimento da natureza da coisa, conforme acima, embora esse conhecimento esteja envolvido no conhecimento de qualquer proposição da coisa[iii]. Russell diz que o fato de uma coisa ter relações não quer dizer que elas sejam logicamente necessárias já que não podemos deduzir suas relações, somente o faríamos depois de conhecê-las. Ou seja, não podemos provar que o universo forma um todo como queria Hegel, e o que se seguiria disso: a irrealidade do espaço, tempo, matéria, etc. O resultado é a inviabilidade de uma análise sistêmica e a filosofia segue a análise indutiva e científica.
Argumentação Metafísica. Segundo Russell, o trabalho metafísico se assentou em provar que as características do mundo eram autocontraditórias e por isso não reais. Porém, os modernos vão no sentido de mostrar que essas contradições eram ilusórias e que muito pouco pode ser provado a priori de considerações do que deve ser. Por exemplo, espaço e tempo parecem ser infinitos em extensão, por mais que tentemos não achamos um fim. Por menor que seja um espaço ou tempo sempre podemos dividi-los novamente e assim sucessivamente até o infinito. Porém, contra esses fatos aparentes, filósofos argumentaram que não haveriam coleções infinitas de coisas. Daí surge uma contradição entre a aparente natureza do espaço e do tempo e a suposta impossibilidade de coleções infinitas. Quando Kant enfatizou essa contradição deduzida da impossibilidade do tempo e do espaço declarados por ele subjetivos, os filósofos trataram tempo espaço como sendo aparentes e não fazendo parte do mundo real, como ele é.
Contribuição da Lógica. Porém o trabalho de matemáticos, principalmente Cantor, mostrou que a impossibilidade de coleções infinitas era um erro, invalidando uma das grandes construções metafísicas. Conforme Russell: "They are not in fact self-contradictory, but only contradictory of certain rather obstinate mental prejudices". Os matemáticos não só mostraram que o espaço como se supõe ser é possível, como também que outras formas de espaço são possíveis como a lógica pode mostrar. Por exemplo, alguns axiomas de Euclides que influenciaram filósofos retiraram sua aparente necessidade de nossa familiaridade com o espaço atual conhecido e não com alguma fundação lógica a priori. Imaginando mundos em que esses axiomas fossem falsos, os matemáticos criaram espaços diferentes do nosso e mesmo colocando em dúvida se nosso espaço é estritamente euclidiano. Até então a experiência descrevia uma possibilidade de espaço que a lógica mostrou impossível, agora a lógica mostra muitos espaços possíveis que a experiência apenas parcialmente decide entre eles. Russell abre o mundo para enormes possibilidades onde pouco é conhecido: "Thus, while our knowledge of what is has become less than it was formerly supposed to be, our knowledge of what may be is enormously increased". A lógica, então, torna-se a grande libertadora da imaginação apresentando inúmeras alternativas para a experiência decidir, quando possível, entre os mundos oferecidos.
Criticismo Filosófico. O conhecimento, não fica limitado à experiência atual, mas ao que podemos aprender da experiência, conforme o conhecimento por descrição, que não se prende a uma experiência direta. Nesse tipo de conhecimento, porém, precisamos de uma "conexão de universais" que nos permite inferir um objeto de um dado. É a conexão de universais que nos permite extrair dados-dos-sentidos de objetos físicos, ou seja, dá munição para a experiência, assim como da lei da causalidade para lei da gravitação. A lei de gravitação, segundo Russell, é uma combinação da experiência com um princípio a priori como o princípio de indução.[iv] O conhecimento filosófico é um tipo de conhecimento científico, a diferença é o criticismo que procura inconsistências nos conhecimentos científicos e da vida diária. Embora a investigação de Russell tenha refutado, criticamente, um sistema metafísico como não estando a altura da ciência, ao contrário, a crítica filosófica corrobora em muito o conhecimento empreendido pela humanidade. Porém, Russell impõe um certo limite na crítica já que um ceticismo absoluto (blank doubt) impede qualquer tipo de conhecimento tornando-se destrutivo. A essência da crítica, para Russell, é a dúvida metodológica cartesiana, analisando cada aspecto do conhecimento, como feito nessa investigação com os dados-dos-sentidos que pareciam indubitáveis e levaram a rejeitar uma semelhança direta com o objeto físico. A filosofia não rejeitaria um conhecimento impassível de objeção. O criticismo filosófico analisa cada parte aparente de conhecimento em seu mérito e retém o que se mostra ser de fato um conhecimento, admitido o erro proveniente da falibilidade humana. Ocorre que a filosofia reduz a chance desse erro tornando-o às vezes irrisório, mais do que isso não é prudente esperar.




[i] Bertrand Russell, Problems of Philosophy. THE LIMITS OF PHILOSOPHICAL KNOWLEDGE. Acessado em 18/7/2019: http://www.ditext.com/russell/rus14.html. Ver o seguinte fichamento e os anteriores: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2019/08/conhecimento-erro-e-opiniao-provavel.html.
[ii] Ideia absoluta que “has no incompleteness, no opposite, and no need of further development”.
[iii] Hence, (1) acquaintance with a thing does not logically involve a knowledge of its relations, and (2) a knowledge of some of its relations does not involve a knowledge of all of its relations nor a knowledge of its 'nature' in the above sense.
[iv] Thus our intuitive knowledge, which is the source of all our other knowledge of truths, is of two sorts: pure empirical knowledge, which tells us of the existence and some of the properties of particular things with which we are acquainted, and pure a priori knowledge, which gives us connexions between universals, and enables us to draw inferences from the particular facts given in empirical knowledge. Our derivative knowledge always depends upon some pure a priori knowledge and usually also depends upon some pure empirical knowledge.