sábado, 10 de maio de 2025

Um pouco de estória

Versa que só há ficção entre a realidade e nós[i]

Vejamos que interessante a seguinte divisão.

Realidade objetiva. Essa é, “de fato”, a realidade do mundo, das coisas, como, por exemplo, pedras, árvores e astros. É uma realidade difícil de negar porque se apresenta a nossos olhos e seria por ela que a ciência deveria se guiar, na medida em que se funda em observações empíricas. Ocorre que nessa realidade há animais que possuem realidade subjetiva.

Realidade subjetiva. Essa é a realidade mais inatingível e duvidosa porque é uma realidade privada, fora do alcance de um terceiro. Um sentimento ou uma dor, por mais que possa ser expresso ou dito, não pode ser comprovado de maneira cabal, embora possa haver maneiras de medi-los, como um esfigmomanômetro ou tomógrafo. A realidade subjetiva é composta também de pensamentos e, acrescenta-se a isso, que parece haver uma mente ou uma consciência que cria uma subjetividade que permite a seu hospedeiro criar suas narrativas. Contudo, para fugir do solipsismo, em algum momento essa narrativa precisa ser contada para alguém que possa compartilhar dela e é aí que surge a terceira realidade.

Realidade intersubjetiva. É essa realidade que permite o constructo imaginário, até então de posse somente humana, e que funda a forma como pensamos e agimos. É nessa realidade que habitam as leis, os estados e toda e qualquer criação humana. Ora, se parece que a verdade reside na realidade objetiva é mediante uma realidade intersubjetiva aceita pelas realidades subjetivas que se vive e morre, seja ou não por causas naturais, e tudo isso é muito envolto em ficção.

Diagrama, Diagrama de Venn

três realidades sobrepostas difícies de enxergar, tanto separadas quanto seus limites

De posse disso, podemos concluir que, ainda que exista uma verdade sobre a realidade objetiva, jamais teremos acesso a ela porque ela é multifacetada, complexa e com várias camadas sobrepostas. Todas essas características são expressas de maneira intersubjetiva por um ponto de vista subjetivo que é limitado e por si só incapaz de descrevê-la integralmente por que ele mesmo está nela, por mais que a intersubjetividade possa ter um ideal de aperfeiçoamento coletivo. E seria uma petição de princípio uma descrição externa de um ponto de vista interno.

Nós, humanos, somos parte da realidade objetiva e não conseguimos nem mesmo nos compreendermos em nossa totalidade. Também não conseguimos compreender a totalidade do outro e de toda a realidade porque estamos inseridos nela. Além disso, nossas compreensões podem ser formuladas por uma linguagem, ela mesma parte da realidade intersubjetiva. E é pela linguagem que toda a realidade intersubjetividade é criada e mantida, por meio de estórias que, bem contadas, criam ficções irresistíveis, convincentes e que arrastam e arrasam multidões.



[i] Um breve texto a partir dos capítulos 1, 2 II de HARARI, Yuval Noah. Nexus: Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência Artificial. Tradução de Berilo Vargas e Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2024. 

quarta-feira, 7 de maio de 2025

O fim das certezas - prólogo

Passa por aspectos que pedem por uma nova racionalidade[i]

1. Dilema do determinismo. Prigogine inicia o prólogo citando o dilema do determinismo, termo cunhado por Willian James, que exprime a tensão no senso comum, ilustrada por Popper, entre uma série causal e a escolha livre. São questões que vemos bastante nesse espaço e falamos na última reflexão[ii]. Porém ele enfatiza a questão do tempo, que sentimos em nossa existência e que foi introduzido na física por Galileu e utilizada na dinâmica newtoniana e que depois Einstein afirmou ser uma ilusão.

2. Paradoxo do tempo. Esse é o ponto crucial para Prigogine, não há flecha do tempo na descrição fundamental da natureza, para muitos físicos, embora em outras áreas como biologia e ciências humanas, passado e futuro desempenhem papéis diferentes. Então, transportando o dilema do determinismo para o campo da ciência física, surge o paradoxo do tempo, que é o tratamento por ela de uma simetria atemporal.

3. Ruptura. De acordo com Prigogine, o paradoxo do tempo foi identificado por Ludwig Boltzmann[iii], no século XIX, ao propor ao modo darwiniano o tratamento dos fenômenos físicos em termos evolutivos e, assim, distinguir entre passado e futuro. Ele ressalta que a flecha do tempo era uma ameaça para aquela proposta newtoniana “ideal, objetiva e completa” e a nova física quântica, que a incorpora, também não deveria destruir o edifício construído sobre a física clássica.

4. Desenvolvimento da física. Nesse campo de disputa, autores buscam relegar a flecha do tempo à descrição humana da natureza, campo fenomenológico, mas Prigogine defende a revisão da noção do tempo tal qual foi formulada por Galileu, a partir do que ele chama de “desenvolvimento espetacular da física.”

5. Irreversibilidade. Esse desenvolvimento fez surgir processos de não equilíbrio com tempo unidirecional, que antes eram simples e acessíveis pelas leis da dinâmica, como os que ocorrem na radiação a laser e na formação de turbilhões, que ressignificam a irreversibilidade não mais tratando-a como mera aparência. Citando-o, podemos ver a que ponto chega a necessidade de os compreender: “Sem a coerência dos processos irreversíveis de não equilíbrio, o aparecimento da vida na Terra seria inconcebível.” (p. 12).

 6. Um novo sentido. Por outro lado, o surgimento de sistemas dinâmicos instáveis reverte a noção de estabilidade, como o caos que é usado desde a cosmologia até a economia e que impacta a formulação das leis fundamentais da física. Há então um novo sentido para uma física que era completa e trabalhava com os conceitos de certeza, previsibilidade e possibilidade retrodizer o passado.

7. Paradoxo quântico. Um problema que o paradoxo do tempo pode resolver, de acordo com Prigogine, é o do papel do observador na teoria quântica, relacionado com a redução da função de onda[iv]. Se era o observador que quebrava a simetria temporal, com a introdução da instabilidade naquela teoria, ele perde seu papel singular e traz a teoria para uma formulação realista, porém estatística.

8. O tempo preexistia ao universo? De posse das transformações na dinâmica clássica e física quântica, Prigogine enfatiza que agora estamos no campo das possibilidades e não mais certezas e leis, e isso pode colocar um novo olhar no evento primordial que a física chama de big bang e se ele instaurou o tempo.

9. Tempo eterno. Essas novas fronteiras do conhecimento, se podem ser espaço para especulações, abrem possibilidades conceituais e permitem conceber que o big bang é o ponto de partida do universo, mas não o do tempo. O universo é uma instabilidade produzida no meio do tempo e Prigogine afirma: “Nessa concepção, o tempo não tem início e provavelmente não tem fim!” (p. 13).

10. Aplicabilidade. Por outro lado, se podemos a flecha do tempo pode ser afirmada nas fronteiras da física, há a questão de tratar as leis da natureza no campo experimental como na física e química.

11. Nova racionalidade. Prigogine também mostra que essa questão é crucial para o pensamento ocidental e já vendo debatida desde a era pré-socrática. Trata-se de conflito entre, por um lado o saber objetivo e de outro o ideal humanista de liberdade e democracia. Como é possível a ética em um mundo determinista? É crucial sairmos desse dualismo que opõe os pares ciência / certeza e probabilidade / ignorância.

12. Apenas o começo. Ele ressalta que, se Hawking entende que estamos próximos do fim, de decifrar o pensamento de Deus, em seu livro Breve história do tempo, para ele é apenas o começo de uma nova ciência que foge da idealidade e abre espaço para a criatividade humana.

É essa evolução das ideias sobre a natureza que Prigogine pretende desbravar inclusive comentando que já há simulações feitas em computador para novas predições. A excursão por uma ciência em evolução.



[i] Resenha do prólogo de PRIGOGINE, Ilya. O Fim das Certezas: Tempo, Caos e as Leis da Natureza. 2. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2011.

[iii] Ludwig Eduard Boltzmann foi um físico austríaco, conhecido pelo seu trabalho no campo da termodinâmica estatística e considerado um dos fundadores da mecânica estatística. Foi defensor da teoria atómica, numa época em que ela ainda era bem controversa. https://pt.wikipedia.org/wiki/Ludwig_Boltzmann.

[iv] Uma explicação pode ser vista aqui: Superposição quântica, colapso da função de onda e combate à desinformação em física quântica. (https://www.youtube.com/watch?v=bQf5LugBy3Y) FÍSICA Prof. Daniel.

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Introdução ao livre-arbítrio

Aborda aspectos desse conceito tão complexo e multifacetado[i]

A questão da liberdade. Vitor Lima introduz o tema problematizando a questão da liberdade[ii], se agimos espontaneamente ou envoltos pela cultura e sociedade e que levanta reflexões existenciais, metafísicas e éticas. O livre-arbítrio, inicialmente, estaria ligado ao controle de nossas ações e se relacionando com a filosofia da mente, dependendo de cada teoria. Assim, a causalidade das ações pode ser livre (mente com natureza imaterial) ou determinada (mente física regulada por leis, possivelmente sem escolha). O desafio é explicar a liberdade dentro de um mundo físico, tema tratado no idealismo alemão, conforme lembra Lima, pelo escape da mente do mundo material rumo ao ideal, seja um “eu” ou o absoluto.

Liberdade e filosofia da mente. Entrando na filosofia da mente, para o dualismo a mente, sendo imaterial, não está sujeita a leis físicas, abrindo espaço para a vontade livre, mas trazendo problemas na explicação de como a mente se relaciona com o corpo, sendo coisas diferentes. Já o fisicalismo, postulando uma mente física, precisa responder se há liberdade. Se parece que as teorias físicalistas, mais populares atualmente, tem maior proximidade com a ciência, conforme ressalta Lima, ainda há falta de explicação. Outra teoria importante, o funcionalismo pode pleitear processos que sejam ou não determinísticos, independentemente do suporte material. Nessa visão de mente como software e dentro de um sistema arquitetural e com regras, há dificuldade em encontrar a liberdade. Por fim, o eliminativismo interpreta o livre-arbítrio como um conceito que pode ser redefinido, tratando-o como ilusão porque não usa os termos da psicologia popular.

Temas centrais. Entrando em questões centrais do livre-arbítrio, Lima contrasta liberdade de ação com autodeterminação, o valor de uma ação moral e sua responsabilização e implicações sobre qual a natureza da realidade e o sistema ético que a ela está atrelado.

Determinismo. Mas é o determinismo[iii] ponto de partida para Vitor Lima, conceituado como mundo regido por leis naturais e nada além disso, do ponto de vista metafísico, isto é, mesmo que algo nos pareça “surpreendente”, como que com uma causa outra qualquer, isso seria porque não conhecemos (do ponto de vista epistemológico) todas as variáveis que atuam sobre o mundo físico, se mantido esse enfoque determinista.

Determinismo e correlações. Vitor associa o determinismo ao princípio de razão suficiente[iv] (PRS) proposto por Leibniz, isto é, tudo o que existe tem uma razão suficiente que o causa, como uma explicação para as coisas serem como são, embora não restrito ao mundo físico, porque Deus entra na causa das razões como causa primeira, à maneira de Aristóteles ou Tomás. Então, o determinismo não busca a cadeia de causas, como o PRS. Vitor também distingue o determinismo do fatalismo, quando as coisas acontecem independentemente de uma ação, associado a algo sobrenatural: “aconteceu porque tinha que acontecer”. Por fim, o determinismo não se confunde com a previsibilidade, Vitor traz o exemplo do demônio de Laplace – uma entidade que tudo sabe e conhece todas as leis – ela poderia prever o futuro? Vitor ressalta que o determinismo independe se podemos ou não prever o futuro (e vice-versa), mesmo uma inteligência infinita teria dificuldade de lidar com a complexidade do caos.

Inserindo livre-arbítrio pela visão antiga-helenística. Voltando ao livre-arbítrio, Lima pontua que este é tema em debate e remete sua origem seja a Agostinho (origem na intenção) ou ao Epiteto (origem externa). Em Platão, há conceituação da razão como guia de instintos e desejos, trazendo harmonia interna e implicando liberdade. Em Aristóteles parece que há um conceito de vontade que parte de um processo de deliberação interna, mesmo que baseado em fatores externos, mas garantido autonomia. Aristóteles não se vale de princípios universais, como é o caso platônico, o estagirita presta atenção nas situações particulares, mas ambos alçam a razão ao patamar elevado na condução das ações. Os estoicos e epicuristas acreditam que tudo é corpóreo e sujeito a leis naturais, portanto deterministas. Vitor pontua que os estoicos eram compatibilistas por aceitarem o livre-arbítrio no sentido de que nossas ações dependem de nós. Os epicuristas entendiam que a natureza da realidade podia ter desvios, fugindo de um determinismo rígido.

O livre-arbítrio na filosofia medieval. Então Vitor traz Agostinho que, neoplatônico, tem sua visão teológica e cristã e, nessa abordagem, busca incluir a liberdade humana (livre-arbítrio) dentro de um mundo criado por um Deus onisciente. E é por aí que o mal tem espaço para agir, a partir de uma vontade má que, lá na frente, buscará a salvação divina. Filosoficamente falando, em Agostinho a vontade é autodeterminante e racional, não determinada por fatores externos e nem por outras faculdades internas, como pontua Vitor. Embora os desejos nos desestabilizem, a verdadeira liberdade deve buscar o Bem – ideia platônica reguladora de uma realidade ordenada, agora transformada em Deus (transubstanciada?). Então, a liberdade é, contra intuitivamente, obedecer a Deus e não se manter indeterminada[v].

Modernos e contemporâneos. Resumidamente, a questão moral permeia o livre-arbítrio porque sem ele não teríamos responsabilidades pelos nossos atos, ainda que ela remeta a Deus como norma de ação. Por outro lado, a descrição do mundo é primariamente fisicalista, cientificista e dificulta a explicação do livre-arbítrio, quando podemos lembrar do PRS como pilar da metafísica moderna. Mas o livre-arbítrio se situa entre agir de outra forma ou autodeterminadamente, conciliando com a responsabilidade moral. Já Espinosa é uma voz destoante nesse debate porque traz uma visão necessitarista – as coisas acontecem assim porque deveriam acontecer, retirando margem de liberdade e sendo um cético radical do livre-arbítrio. Como o Deus de Espinosa[vi] é a natureza, ele não delibera, não pune e nem recompensa. Porém, é exatamente por não esperarmos uma recompensa que a ação moral deve ser virtuosa em si mesma. Não devemos desejar nada além do que deve ser, mas orientar o que queremos para o que irá acontecer, ou seja, desejar o que já aconteceria, aceitando a realidade. Nas palavras de Vitor Lima: “liberdade não é livre-arbítrio, mas harmonização entre aquilo que acontece e aquilo que você quer que aconteça”, não lutar contra a “verdade das coisas”.[vii]



[i] Conforme a aula do canal INEF no YT: https://youtu.be/DxQS_1Bi8o8, usa como fontes SEP: Determinismo causal https://plato.stanford.edu/entries/determinism-causal/ e livre-arbítrio https://plato.stanford.edu/entries/freewill/.

[ii] Lembremos, foi o primeiro tópico explorado nesse espaço, quando especulávamos de modo bem iniciante sobre temas aleatórios: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2013/11/liberdade-liberdade-liberdade.html.

[iii] Interessante, no nosso Espaço, Liberdade aparece muito e determinismo muito pouco. Aqui on passant: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2024/11/revisitando-o-mito-cartesiano.html, mas associado livre-arbítrio e ao mito. De toda forma vamos precisar olhar o Prigogine – ele fala de caos e ali pode abordar o assunto, a ver. Claro, essa oposição é tema clássico, lembremos a terceira antinomia, por aqui bastante abordada.

[v] Vitor passa lateralmente por Aquino que concilia a visão aristotélica com a cristã e também mantem a primazia da razão sobre a vontade.

[vi] Conforme https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2017/02/deus-ou-seja-natureza1.html e o resumo da IA: O texto discute a filosofia de Espinosa, focando em sua caracterização de Deus e sua visão revolucionária.  Espinosa contesta a visão tradicional de Deus, argumentando que Deus, ou seja, a Natureza, é a única substância, eterna e livre, que causa a si mesma e a todas as coisas no universo.  Ele rejeita a ideia de um Deus pessoal, com intelecto e vontade, que cria o mundo por escolha, e em vez disso, propõe uma "ontologia do necessário", onde tudo é determinado pela natureza divina.  Essa despersonalização de Deus tem implicações políticas, libertando o campo político da imagem de governantes com poderes divinos.

[vii] Ao final da aula, três breves assuntos foram tratados, registremos: 1.) dignidade do herói, oriundo da tragédia, mas que enfatiza o caráter do herói a seguir princípios para além dos atos de coragem; 2.) amor fati, que se refere a amar o próprio destino, tema tratado pelo estoicismo e Nietzsche, lidar com as dificuldades da vida; 3.) por fim lembrar que a conceituação determinista de universa está mais associada a uma visão de mundo clássica, hoje há espaço para a probabilidade, por meio da física do século XX.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Superparticulares

Investiga se as formas platônicas podem ser consideradas universais ou particulares

Teoria das formas ou ideias. Sabemos que a teoria das formas, proposta por Platão, é uma das possibilidades de resolver o problema de Parmênides[i]. Há o mundo das formas onde habitam Beleza, Justiça, Igualdade, entre outras e há o mundo sensível, acessível a nós, onde as coisas são cópias das formas (ou ideias). Platão, no diálogo Parmênides, caracteriza a relação entre elas de “participação”, isto é, uma coisa bela participa da Beleza, mas não é o Belo[ii]. Porém, esse tipo de teoria levanta muitas questões que são abordadas por ele nesse diálogo, principalmente de ordem lógica. Algumas delas nós verificamos na dissertação da nota anterior, e uma pergunta: as formas platônicas poderiam ser consideradas universais ou particulares? Nesse ínterim, apontamos para um possível nominalismo em Platão, que pode assim ser caracterizado dadas as dificuldades que ele tem de lidar com as objeções[iii].

Definições. Lembremos que um particular é algo que nos é dado pela sensação enquanto um universal é compartilhado por muitos particulares, como uma qualidade daquele particular, por exemplo, ser belo. Se assumimos que essas qualidades são coisas elas mesmas particulares, temos uma posição nominalista, mas, por outro lado, considerando algumas dessas qualidades não como particulares, mas como universais, estamos em uma posição realista.

Crítica dos contrários. Uma das primeiras críticas apresentadas por Zenão, versa a respeito da pluralidade das coisas, resguardando o princípio parmenidiano de que “o ser é, e o não ser não é”. Ora, se uma coisa é justa, ela é semelhante à Justiça, mas dessemelhante à Injustiça, parecendo aí haver uma contradição lógica, isto é, a coisa participa do Semelhante e do Dessemelhante. Ou, é justa em um momento e injusta em outra, não se mantendo uma suposta semelhança.

Distinguindo semelhanças. Mas, não é o que acontece, conforme salienta Platão, porque temos de considerar coisas que são simplesmente semelhantes de coisas que são semelhantes, mas não simplesmente semelhantes. Há objetos que compartilham semelhanças em certas características, mas possuem diferenças em outras, ou seja, o segundo caso. A participação de uma coisa em uma Forma implica uma semelhança deficiente com essa Forma, enquanto a Forma perfeitamente se assemelha a si mesma.

Unidade da forma. As coisas "participam" de uma Forma de maneira imperfeita, enquanto a Forma em si possui uma qualidade de forma absoluta e as Formas em si não podem ser uma pluralidade; a Forma da Unidade é simplesmente Uma. Citemos: “Mas se alguém puder provar que o que é simplesmente a Unidade em si é muitos ou que a Pluralidade em si é uma, então começarei a ficar surpreso.” Para evitar a conclusão de Parmênides, Platão insiste que as Formas permanecem puras e sem contradições, enquanto os objetos do mundo sensível podem exibir semelhanças e diferenças simultaneamente.

Indivisibilidade das Formas. Segunda crítica. Ocorre que, quando uma forma participa de muitas coisas, ela parece se dividir e, para respeitar o princípio da "Discernibilidade de Não-Idênticos", ela deveria diferir de si, o que contradiz a ideia de que as Formas possuem um caráter único e indivisível. Mas, como só possuem uma característica, não deveriam ser discerníveis.

Metáfora da Vela. O argumento parmenidiano da metáfora da vela (ou lona) traz dificuldades. Podemos pensar que a vela grande cobre várias pessoas, mas aí ela estaria em vários ao mesmo tempo, ferindo o princípio da unidade. Podemos pensar, por outro lado, que cada pessoa é coberta por um pedaço da vela, mas isso fere o princípio da indivisibilidade. Ainda há a possibilidade de que cada pessoa fosse coberta por um pedaço diferente da vela, mas, nesse caso, como comparar cada pedaço da vela presente em cada pessoa?

Separação das formas. Brownstein argumenta que a necessidade de Platão responder aos argumentos de Parmênides o leva a uma posição nominalista. Para evitar que as Formas sejam divisíveis (o que violaria os princípios de Parmênides), Platão precisa separá-las do mundo sensível. Essa separação, no entanto, dificulta a explicação de como as coisas participam das Formas.

Particularização das formas. Brownstein sugere que Platão, ao priorizar a unidade das Formas, acaba sacrificando sua imanência nos objetos comuns. Isso implica que a Forma (círculo, por exemplo) não é necessariamente universal, e a distinção entre universal e particular se torna menos clara. Em vez de uma qualidade universal compartilhada, a participação em uma Forma se assemelha a uma atribuição de nome ou marca. Isso coloca a Forma em um nível superior, dotada de qualidades superparticulares, em vez de ser uma característica universal compartilhada pelos objetos.



[ii] Monstramos a relação de participação no segundo capítulo da dissertação https://drive.google.com/file/d/16_oIdJMEAtmrv-aATZiUSMe_7HsD-QvF/view?usp=drive_link - UNIVERSALS IN THE “THEORY OF FORMS” OR “THEORY OF IDEAS”, disciplina LÓGICA I, 1o Semestre de 2013 (FLF0258 - Rodrigo Bacellar). Não consideraremos agora a perspectiva de Russell que, utilizando um contexto linguístico, argumenta que as relações entre as coisas na linguagem podem levar a uma interpretação universalista da teoria das formas.

[iii] Assim pensa Brownstein que usamos como fonte: Donald Brownstein, Aspects of the Problem of Universals. Lawrence: University of Kansas Publications, Humanities Studies, 44, 1973, principalmente Capítulo IV: Platonismo e a Rejeição do Universal.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Qual é o lugar da IA na história?

Defende que a AI é uma tecnologia revolucionária, mas não é uma revolução tecnológica[i]

Basicamente, Carlota Perez pontua que, apesar de seu caráter revolucionário, a IA faz parte da revolução tecnológica em andamento e iniciada há 50 anos[ii]. Obviamente, a IA é fator chave, mas a revolução da tecnologia da informação e comunicação (TIC) começou com os microprocessadores[iii] em 1970 e se aprofundou com a internet, nos anos 90, estimulada pelo governo dos EUA.

Ponto chave que ela destaca é a capacidade que a TIC deve ter de gerar progresso social e ambiental, como aferido em outras revoluções. Ela cita seu livro Technological Revolutions and Financial Capital[iv], onde argumenta que períodos iniciais revolucionários são permeados por crises criativas destruidoras em todas as áreas econômicas, demandadas pelos mercados, e que possibilitam surgir novas tecnologias que eliminam empregos e demandas novas habilidades. Porém, passado o efeito inicial, as regulações devem surgir para orientar os ganhos sociais, mas é a forma dessas inovações que determina as decisões econômicas dos atores envolvidos (investidores, empresas, governos e famílias).

De acordo com Perez, o advento da computação tenta transformar a noção de mudança tecnológica como capaz de revolucionar, dado seu caráter inovador, seja a tecnologia verde ou criptomoedas. Mas, se há estágios de inovação, como os citados processadores e a globalização, ela afirma que “uma tecnologia revolucionária não é a mesma coisa que uma revolução tecnológica”[v], isto é, a inteligência artificial está dentro da revolução tecnológica vigente. Se a IA, assim como a internet das coisas IoT e a robótica, pode constituir um terceiro salto inovador, ainda depende dos anteriores (da internet, que depende dos chips). E ainda muito no campo da mecanização do trabalho mental, sem tantas mudanças na forma de trabalho manual que podem vir a ocorrer nesse paradigma de transformação digital.Parte superior do formulário

Paralelo histórico. Notadamente, para Perez, o ponto crucial é a mudança inovadora da base técnica, de materiais e infraestrutura, introduzindo novos insumos e fontes de energia, alavancando transporte e comunicação e reduzindo custos. Isso teria ocorrido em revoluções anteriores e capazes de transformar economias e sociedades, conforme ela cita: a Revolução Industrial (1770); a era do vapor e ferrovias (1830); a era do aço, eletricidade e engenharia pesada (1870); a era do petróleo, automóvel e produção em massa (1910); e a atual era das TIC, a partir da década de 1970. Mas não é o caso da inteligência artificial e ela usa alguns exemplos de comparação para mostrar que uma revolução tecnológica não se limita a tecnologia.

O que é uma revolução? Perez explica que uma revolução tecnológica traz mudanças governamentais e na sociedade, como a ascensão do populismo que acontece pela destruição criativa que comentamos, isto é, pela substituição de tecnologias. Ela ilustra o ponto de que uma inovação não é capaz de provocar o efeito do fascismo e comunismo que floresceram a partir da era da revolução das massas (linha de montagem, 1913 – Henry Ford) atingindo seu ápice no pós-guerra.

Há inovação dentro da revolução e Perez compara a IA com o plástico, introduzido na revolução que acabamos de comentar. Produtos petroquímicos, como poliestireno, náilon e borracha sintética impulsionaram usos industriais infinitos, assim como é o caso da IA penetrando em todos os setores, deslocando habilidades, mas não sendo em si a revolução, mas uma tecnológica revolucionária.  

Assim como o surgimento da eletricidade na era da engenharia pesada, capaz de deslocar a dependência do carvão e vapor ao conectar as máquinas diretamente na rede com grande impacto na produção. A iluminação fez parte da Belle Époque, nos teatros, hotéis e ruas da cidade, até chegar na casa de todas as pessoas, substituindo velas e lampiões a querosene. Entretanto, conforme Perez, “certamente parecia uma revolução”, mas dependia do aço e estava inserida nessa revolução, como as indústrias químicas e civil, por exemplo. Ou o caso da substituição do ferro pelo aço, que ela também aborda.

Uma revolução numa encruzilhada. Por fim, Perez pontua os problemas da revolução tecnológica atual e aponta diretrizes.

Continuando a análise, cada revolução tecnológica possibilita o surgimento de tecnologias revolucionárias, como a IA, hoje em dia, mas que se integram em um processo maior ou são precursoras de novos, como foi o caso da eletricidade e o aço, como foi o caso do computador, na TIC, até se tornar um aparato comum. Mas ela enfatiza que esse destaque da IA como revolucionária se dá pelo que já pudemos ver das tecnologias inovadoras que a TIC trouxe e que tornou alguns bilionários e certamente pode ser a base para uma eventual sexta revolução, possibilitando bio e nanotecnologias.

Contudo é fundamental gerenciar o processo de maturidade da TIC, já que podemos ver tecnologias se espraiando em direções imprevistas, trazendo resultados disfuncionais e mudanças climáticas irrefreáveis. Isso passa, segundo ela, por investimentos governamentais em tecnologias verdes, mas fundamentalmente uma fuga do capitalismo rentista que permita conectar o sistema financeiro às economias reais, ao invés de operar como um cassino global.

Ora, temos as tecnologias, mas nos falta a política, haja visto as incongruências que vemos hoje: má distribuição de renda, desastres climáticos, inovações desperdiçadas e crises migratórias. Se sombrio, o cenário ainda não é o da década de 1930 que moldou grandes transformações. Mas são as instituições que precisam guiar a TIC para um caminho de crescimento global sustentável, verde, digital e justo. E que inovações, como a IA, caminhem com investimentos corretos para a economia, sociedade e meio ambiente.

Finalizando, Perez ressalta que há um papel preponderante para a IA e inovações adjacentes, como robótica, computação quântica e genética, na construção de nosso futuro, mas isso passa pela conexão dos mercados com a economia real e desenvolvimento sustentável.

 

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[ii] Carlota Perez é professora do Instituto de Inovação e Propósito Público da University College London. https://carlotaperez.org/. Quem nos alertou sobre ela foi o professor Caetano C.R. Penna em https://youtu.be/F7-6f7r01SM, O plano de IA do Brasil – canal Paulo Gala/ Economia & Finanças.

[iii] Referência do texto: Microprocessors: the engines of the digital age - https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC5378251/.

[v] A revolutionary technology is not the same thing as a technological revolution.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

IA pela ótica filosófica

Uma introdução à inteligência artificial pelo enfoque da filosofia da mente[i]

Sobre a história, peguemos algumas datas: em 1956, a conferência de Dartmouth decreta o nascimento oficial da IA; em 1980 tem-se o auge dos sistemas especialistas que, em 1990 dão lugar a sistemas que aprendem com os dados e não são baseados em regras, como Deep Blue, campeão de xadrez. Por fim, em 2010, há a consolidação da IA baseada em Big Data, poder computacional e algoritmos aprimorados pela Deep Learning, até chegar na atual IA Generativa.

Caracterizando a IA, a partir de Russell e Norvig, ela teria como objetivos imitar o desempenho humano e buscar a racionalidade ideal, tendo por foco construir sistemas que agem e raciocinam. Então, há sistemas que agem como humanos, como o Teste de Turing, sistemas que pensam como humanos (série Westworld[ii]), sistemas que agem racionalmente, por exemplo, recomendando filmes e, por fim, aqueles que pensam racionalmente, no caso de diagnósticos de doenças.

Fundamentalmente, para eles, a IA se debruça sobre agentes inteligentes que percebem [por sensores] e agem [por atuadores]. Eles podem ser de reflexo simples, sem memória e com regras tipo “se, então”, como um robô aspirador de pó (sensores mapeiam o ambiente e atuadores agem em resposta). Um pouco mais elevados, agentes reflexos podem ter um modelo interno, como um carro autônomo, que usa o modelo para tomar decisões. Há agentes de aprendizagem que moldam o seu comportamento de acordo com a experiência, como, por exemplo, um sistema de recomendação de vídeos. Por fim, agentes comunicativos podem utilizar linguagem natural para conversar, como a Alexa[iii].

Também se pode abordar a IA levando em conta a lógica, isto é, sistemas especialistas que usam regras bem definidas para extraírem inferências lógicas, como um diagnóstico médico, mas que não lidam bem com ambiguidade ou variabilidade. Já uma IA não logística foca em aprender com os dados para tomar decisões, como é o caso das redes neurais, inspiradas no cérebro humano, utilizadas nas mais diversas áreas, como para realizar reconhecimento facial. Em seu resumo, Vitor também se refere ao uso de probabilidade ao invés de regras fixas, indicando tendências com bases nas informações atuais.

Encerrando a introdução, ele elenca algumas linhas de pesquisa, como as já conhecidas IA forte[iv], que atribui estados mentais às máquinas, como experiência subjetiva e consciência e a IA fraca, flexibilizando os sistemas para que ajam como se fossem inteligentes, se comportando de modo indistinguível ao nosso.

Vitor também elenca alguns autores[v], entre eles, Searle, trazendo o argumento do quarto chinês, onde o interlocutor não sabe chinês, apenas usa um manual e manipula símbolos, sem os compreender. A crítica fenomenológica de Dreyfus, pontuando que a inteligência humana não se baseia em manipular símbolos, mas na experiência corporal e imersão no mundo. Nicolelis entende que a IA não é nem inteligente e nem artificial, questionando a analogia entre mente e máquina, contrapondo inteligência orgânica e supostos sistemas inteligentes. Para ele, a mente opera de modo analógico[vi]. E a IA também não é artificial por depender muito dos humanos que a criam e mantém.

Dois autores que Vitor traz que pouco exploramos. Crawford, que enfatiza que a IA se ancora no mundo físico e relações sociais, depende do meio ambiente e trabalho humano mal remunerado. Para ela, a IA só identifica padrões, mas não entende o mundo e pode ser vista como um sistema de poder com impactos éticos e políticos. Em linha semelhante, Harari alerta para o risco da IA dizendo que ela não precisa ter consciência para ameaçar a humanidade. A IA pode explorar nossas fraquezas e altera a base simbólica da cultura. Somos mediados pela linguagem e é por ela que a IA pode criar uma realidade paralela, colocando a democracia em risco, dada a sua capacidade de se aprimorar.

São pontos interessantes para voltarmos ao tema, algumas coisas já vimos, outras são novidades que podemos explorar e aprofundar.



[i] Resumo das aulas introdutórias de Vitor Lima (https://www.youtube.com/watch?v=zHjo3whbSgs), que toma como referências SEP (https://plato.stanford.edu/entries/artificial-intelligence/); Kate Crawford: Atlas of Al; Dreyfus: What computers can't do e What computers still can't do; Harari com Nexus; Nicolelis e O verdadeiro criador de tudo. Depois Norvig e Russell: AIMA e Searle: Behavioral and Brain Sciences.

[ii] Westworld é um parque de diversões futurista que permite a seus visitantes viverem suas fantasias utilizando uma consciência artificial. Independentemente de quão ilícita a fantasia possa ser, não há consequências para os visitantes do parque. (resumo Google Search)

[iii] Falamos um pouco de PLN https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2022/01/introducao-ao-processamento-de.html, mas não seguimos adiante.

[v] Os 3 primeiros já tratamos em algumas oportunidades aqui no nosso espaço.

[vi] Cérebro não binário: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2020/12/informacao-godeliana-anti-ia.html.