Aqui
Schopenhauer escrutina a fundamentação da moral kantiana, apontando os
principais erros de Kant e desferindo golpes nos idealistas que o seguiram.
As
duas representações prediletas de Kant ou os dois principais erros
Schopenhauer
elege e critica as duas representações prediletas de Kant, o a priori em
oposição ao a posteriori e a hipóstase da razão como algo separado e
pertencente a seres racionais.
Se
o a priori foi uma importante descoberta que abalou a metafísica, o conceito se
extrapola ao ser aplicado a tudo, diga-se, à moral, pois sobre ele assentaria a
ética enquanto ciência pura cognoscível a priori, conforme a Fundamentação da Metafísica dos Costumes[1].
O a priori possibilita as proposições sintéticas a priori que, sendo meramente forma
e não conteúdo das ações, retiram qualquer necessidade da lei moral ser
demonstrada empiricamente como um fato da
consciência, seja experiência interna da natureza humana
(subjetiva), seja experiência externa no mundo (objetiva). A lei moral paira no
ar porque se origina de conceitos abstratos ligados pelo juízo que deveriam se
sobrepor às nossas paixões e nosso egoísmo.
Garantido
o a priori formal, a segunda
representação estabelece a primazia da razão[2] não só para os seres humanos, mas para todo ser racional. Mas que espécie de
ser é essa, ela seria constituída pelos “queridos anjinhos”? Não a conhecemos e
não podemos estabelecer leis para seres racionais abstratos. Se a Crítica da
Razão Pura tinha dado cabo dessa hipóstase da razão, a moral a reintroduz em
oposição ao sentimento e a natureza humana do que declara Schopenhauer que ela
é secundária e surge como fenômeno da
vontade – núcleo metafísico
indestrutível.
Schopenhauer
recupera o a priori para fundamentar
a vontade como sendo a moral, como sendo coisa em si. Nos conhecimentos
teóricos a priori pode ser estabelecido que as funções do nosso intelecto
estejam em acordo com a experiência, mas enquanto fenômenos que representam o
mundo, logo se pensa em um ser em si da realidade independente de nós. O
apriorismo levado para a moral, conforme mencionado, seria apenas fenômeno e
não coisa em si, o que estaria em contradição com o que Kant diz da moral
associada ao ser em si das coisas, que se daria a entender como vontade.
Nó
da questão
Se,
conforme argumenta Schopenhauer[3], há uma moral teológica de deveres e obrigações oculta na moral kantiana, lá
tais deverem são motivados pelo amor cristão e solidariedade, mas aqui o dever
funda-se em si, em seu conceito e a ação moral por dever é indiferente, fria e
ausente de amor. Cumprir por dever e não por inclinação, não se deixar levar
pelos afetos do coração que atrapalham as máximas: há que se submeter à razão
legisladora? Não, de acordo com Schopenhauer o que move esse coração duro é o
medo. Mesmo porque, ao seguir tal dever que é uma lei, uma máxima necessária,
não há garantias que ele se realize, segundo Schopenhauer[4]. Então
de onde viria essa necessidade absoluta? Este é o nó da questão: se não há
objeto para a necessidade da ação ela se fundaria então na moral teológica de
obediência, transformada por Kant em respeito à lei. Seria coerção?
A
lei moral
Classificada
como última pedra de toque da moral kantiana, qual é conteúdo da lei moral?
Schopenhauer distingue duas questões éticas: o princípio da ética, seu guia: o
quê e o fundamento da ética, sua razão: o porquê, tomadas uma pela outra pelos
filósofos para simplificar sua tarefa, a última uma difícil tarefa. O quê que
todos concordam é: “não faças mal a ninguém, mas antes ajuda a todos que
puderes!”, mas é o seu fundamento que é motivo da pergunta do concurso que
Schopenhauer procura responder. Então, investigando a lei moral kantiana do
dever, vê-se que ela seguiu o mesmo caminho aproximando princípio e fundamento.
Se o princípio é formal e baseado em proposições sintéticas a priori, como dele
se concretizam as leis concretas das ações dos homens?
Processo
de pensamento
A
fundamentação da moral em Kant, ao desdenhar das molas propulsoras da vontade que
é motivada empiricamente, se estabelece unicamente como um processo de
pensamento. Recusando o empírico, a lei toma a forma da legalidade (sua
validade) e a matéria, seu conteúdo, da universalidade (validade para todos). Ou
seja, o imperativo categórico e sua máxima é o resultado do processo de
pensamento de agir de acordo com que uma máxima se torne lei e valha para todos. Para
Schopenhauer, esse fato originário é impossível porque pressupõe que o homem tenha
uma ideia de procurar uma lei para a vontade e de querê-la por em prática. Mais
do que isso, que razão haveria para se buscar uma lei que limita nossas ações e
nosso querer? Então tal processo de pensamento não viria sozinho à nossa cabeça,
haveria um algo o motivando o que é contrário à lei moral de Kant, que é autônoma.
Além disso, que força teria meros conceitos abstratos para nos mover, sem fundamentação
empírica, sem conteúdo?
Os
erros dos kantianos
Para
eles Kant teria tomado o imperativo categórico como um fato originário da consciência
e daí como uma experiência interna antropológica. Mas, se a moral kantiana
fosse embasada em tal conteúdo empírico, nenhum concurso de moral seria
necessário, mas ela é uma dedução apriorística por meio de conceitos, meramente
formal. Então, em uma crítica à interpretação de Schiller que trata consciência
moral como um fato originário responsável pelas ações dos homens, ligando a consciência
moral à consciência humana, ele alega que a consciência não é um fato empírico.
Em uma crítica a Fichte que confere à razão prática uma faculdade especial, um
instinto de moralidade, Schopenhauer diz que a razão só é prática enquanto
realiza o processo de pensamento.
Segundo
Schopenhauer, o próprio Kant percebeu a inadmissibilidade da sua lei moral e recua
um pouco na Crítica da Razão Prática e na segunda edição da Crítica da Razão
Pura, o que pode ter induzido os deslizes da escola kantiana. Como Fichte que
funda a moralidade em uma intuição intelectual, há um fato ou atividade da consciência.
Mas o fático é o oposta da razão pura... Haveria, entre os kantianos, uma transferência
da imediatez da razão prática para a teórica, portinha aberta que Jacobi usou
para salvaguardar a demolida razão teórica e a razão passa a intuir o suprassensível,
transformando-a em uma razão mistificada. Pela crítica kantiana a razão demonstra
os conhecimentos suprassensíveis, mas não os intui como quis Jacobi. Se para Kant
a virtude provém do racional, Jacobi indevidamente aliou essa razão prática com
a razão teórica atribuindo a ela poderes de conhecer o suprassensível, trouxe
de volta a metafísica e nossa possibilidade conhecer o absoluto.
A
vontade de Schopenhauer
É
atacando a forma vazia da lei moral kantiana e a valorização da razão pelos
kantianos que Schopenhauer funda a sua ética baseada na vontade. Conforme
ressaltado, para Schopenhauer a fundação da moral kantiana é um raciocínio da razão
prática e carece de motivação moral, positiva ou real. Se não há uma busca por
uma ideia de moralidade, para Schopenhauer o que prevalece como lei de motivação
é o egoísmo, baseado em motivos empíricos. Para ele deve haver algo que motive
a vontade e ele tem que ser empírico e se impor a nós para superarmos nosso egoísmo.
A nossa ação é efetiva e deve ser basear em uma motivação moral efetiva e real
que empurre nossa vontade. A razão que Schopenhauer defende não é aquela
transformada pelos kantianos e que conhece o suprassensível, mas razão que
serve para um ser racional se comunicar com outro ser racional, por meio de
conceitos abstratos e não intuitivos. E essa razão que nos difere dos animais:
enquanto seus atos de vontade partem de motivos intuitivos e imediatos, para o
homem, além desse motivo, há outro que é abstrato, baseado nos conceitos, no
pensamento e extraído de experiências passadas aprendidas. A nossa razão, então,
é pouco mais avançada que a dos animais porque conhecemos as leis de
causalidade que, trabalhando com a sensação e a intuição, nos permite um
conhecimento do mundo em grau maior e nos faz guiar não somente pelo sensível,
mas pelo racional, embora isso não signifique retidão, porque podemos agir
seguindo máximas egoístas ou injustas.