sábado, 24 de abril de 2021

Quando a técnica extrapola seu valor moral

Gehlen mostra o caminho da técnica que, em direção ao inorgânico, perde seu valor moral[i]

A técnica do inorgânico. A análise de Gehlen, seguindo as linhas de Kapp e McLuhan, parte da capacidade biológica humana de produzir instrumentos, da antropologia e do impacto da tecnologia na cultura. Para ele, o homem carece de órgãos e instintos especializados de adaptação ao ambiente e por isso deve transformar as condições naturais. Para agir, o ser humano se serve de princípios como a substituição e fortalecimento das capacidades biológicas por técnicas que são substitutivas, fortalecedoras e facilitadoras.

A técnica, como a nossa capacidade de transformar a natureza, faz parte da essência do homem e é esperta e improvável, como se pode ver, por exemplo, com a invenção da roda e do fogo. Entretanto, como alavanca de nossa cultura, ela substitui o orgânico pelo inorgânico, tanto nos materiais, quanto na energia que substitui a força humana e animal. Isso porque, salienta Gehlen pelo texto de Cupani, o inorgânico é mais fácil de conhecer racionalmente e experimentalmente, características da ciência moderna e da cosmovisão pragmático-positivista impulsionada pelo modo de produção capitalista.

Técnica sobrenatural. Gehlen também aborda a magia, tida como técnica sobrenatural, que foi usada durante milênios para imputar regularidade e estabilidade ao ambiente, seja intervindo na provocação de chuvas, fertilidade, entre outros. Dela se valiam as comunidades antes da ciência, funcionando como um autônomo animado, isto é, uma relação rítmica entre homem e cosmos, uma ressonância entre o homem e a natureza, o periodismo dos fenômenos no qual a ação humana se inseria e tentava intervir.

Então, magia e técnica visam facilitar a ação humana e evoluem em uma lei progressiva que passa pelo estágio da ferramenta, depois da máquina que dispensa energia humana, até o autômato, com processos autorregulados. Todavia, neste caminho evolutivo que culmina nos tecnólogos modernos, o trabalho é instintivo, posto que, dada a não especialização, o homem deve aumentar o controle sobre a natureza como lei de sua existência. E segue.

Cultura das máquinas. Tudo isso, aliado à produção capitalista e ao credo iluminista, leva à “cultura das máquinas” e a um intelectualismo, senão esoterismo, das ciências e das artes que fogem do naturalismo através de um experimentalismo sem metafisica. É uma experimentação incessante que se espalha pelas áreas chegando ao caráter transitório das produções artísticas, científicas e arquitetônicas e a indústria passa a viver a obsolescência das mercadorias. É o pensamento técnico e social moderno que se pauta em cinco “modos”: requerimento ou demanda total, efeitos preestabelecidos, mensuração padronizada, partes intercambiáveis e o princípio da concentração nos efeitos.

Efeitos da tecnologia. O resultado disso é prejudicial à nossa dimensão emotiva e moral que é substituída pela abstração e pela dificuldade de compreender a complexidade técnica que nos afasta do ambiente natural. Mas a atitude iluminista, que gerou essa cultura industrial, estava baseada em ingredientes como a bondade natural, o caminho racional para ser feliz ou a universalidade moral, que já não são mais endossados. Até a Revolução Industrial, nosso contato com o mundo orgânico trazia dependência das forças naturais. A partir dela, priorizamos o inorgânico que não suscita um padrão moral fazendo com que, no auge do século XX, tivéssemos perdido o senso de realidade e não fôssemos mais responsáveis pelo que fazemos. Assim, na visão de Gehlen, a técnica ultrapassa a magia na subjugação do natural, mas extrapolando qualquer norma moral traz consequências negativas para nossa alma. Contudo, como bom conservador, o autor não aponta soluções, segundo Cupani.



[i] Conforme Cupani, Alberto. Filosofia da tecnologia: um convite. 3. ed. - Florianópolis: Editora da UFSC, 2016. Capítulo 2: Estudos Clássicos: Arnold Gehlen. 

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Tecnologia, um dilema

Somos reféns do passado, contra isso não se pode lutar. A gente chega em um mundo constituído, seja com suas agruras ou benesses. Há uma herança entranhada no corpo e essa parte física, sendo o que nos constitui, é o essencial. E só.

Então, resumindo, se há escolha, ela é fictícia. Há um contexto de nascimento, cultural, de possibilidades. Aí embutidos, lançam-se os dados. Aposta-se um número e a roleta gira. Se eu tenho o zap, eu posso trucar logo de cara, ou posso segurar, mas posso morrer com ele. Aclarando: por mais que haja um pensamento original, um fragmento de lucidez, tudo isso é intrínseco a uma panaceia que apresenta forte ligação entre suas partes. É a pangeia que não ocorreu, porque o próprio mar é vida. E, assim, todos nós interligados, seguimos.

Isso posto, sorrateiramente e talvez sem que queiramos, há um dispositivo. Há uma miríade de coisas. É lamentável que, em pleno século XXI, por mais que proliferem danos de ordem pessoal, isso tudo não esteja disponível para todos. Mas não é sobre isso, exatamente, que queremos tratar. Sobre autonomia, falaremos.

O que passa é que a espécime se aperfeiçoa e, obviamente, porque disso depende sua existência. Mas é um engodo achar que tudo ocorre sem nenhuma determinação ou, enviesadamente, nos acharmos senhores do tempo. Não! O tempo não é nosso, se bem que o tempo é, sim, uma criação nossa. Mas foi feito para ordenar, organizar, intervalar. É só isso, no frigir dos ovos.

De todo o modo, aperfeiçoar não é, necessariamente, ir para frente. O siri não nos deixa mentir. Seria um falso dilema? No final da história, tudo é lixo. Tudo, tudo, tudo é lixo. Consumimos lixo, somos lixo. Mas não façamos disso uma bandeira, bandeiras aprisionam. A superfície é tudo, menos latente. Desce, desce aí, escava, pode escavar à vontade, que não tem nada. E a tecnologia? É só o espelho de Narciso, não mais.


segunda-feira, 19 de abril de 2021

Para uma filosofia da tecnologia autêntica

Entre o deslumbre e o pensamento historicista [i]

A transformação dos produtos somada à mudança da realidade vigente com base na estrutura econômica e política da sociedade, visa resolver contradições. A tecnologia avança com o desenvolvimento das forças produtivas cifradas no trabalho humano, não se tratando a técnica um substantivo abstrato do qual se contam histórias otimistas ou terrorísticas. É o processo histórico de produção que mostra a relação do homem com a natureza.

O progresso técnico gera uma consciência ingênua que deve ser corrigida pela dialética do processo histórico, pois o novo da técnica de hoje, embora distinto, é algo comum em outras épocas pregressas. Maravilhemo-nos, mas sem o feitiço de miraculosas criações. Entender a tecnologia é o equilíbrio entre o deslumbre e o pensamento historicista.

No surgimento das máquinas, seu significado foi analisado pelos pensadores para opor ou um papel nefasto ou como uma benção dos céus. É a máquina que para eles aparece para análise intelectiva. Passar da reflexão da máquina para a da técnica só ocorre e nosso tempo, adquirindo maior grau de generalidade, embora ambas não se separem metafisicamente pois conectadas dialeticamente.

Então, a compreensão da tecnologia começa pelo exame da máquina como meio de superar as dificuldades da realidade física. E seu processo de criação pelo homem tem suas origens em nossa capacidade de projetá-las.



[i] VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. “O ponto de partida para a compreensão da técnica e da influência da mecanização do trabalho – p. 49 e seguintes. 

terça-feira, 13 de abril de 2021

Causalidade, acaso e necessidade em Aristóteles

De uma causalidade que está sempre em causa e, nesse sentido, não é só um processo físico que acontece[i]

Vargas alerta que seu foco é no pensamento de Aristóteles e não na filosofia aristotélica, submetida a dois mil anos de interpretações. Há certas noções difíceis de serem admitidas, como a Doutrina das Quatro Causas do Livro II da Física. Sendo assim, ele sugere uma reinterpretação da noção de causa que deve ser entendida como julgamento, como quando um juiz julga uma causa (remetendo à aitia grega[ii]).

Aristóteles define os seres que são por natureza: animais, plantas, terra, fogo, água e ar. A natureza é um princípio e uma causa do movimento e repouso por essência. Nas coisas artificiais, feitas de material natural, a causalidade é por acidente já que essas coisas não têm em si mesmas o princípio e a causa da transformação (= movimento = kinesis)[iii].

A physis, que é a essência da natureza animada, no vulgar grego tratava da coisa que se move por “direito próprio” e regras de movimento “em causa” e há aí um sentido de ordenamento (daquela aitia).

Pois que a causalidade não somente provoca o movimento, como é a totalidade do processo físico seguido pela matéria e forma de cada ente que, não obstante seja movido, é orientado por um desejo próprio que busca ser bem sucedido, no sentido jurídico de dever ser bem sucedido.

Vargas ressalta que, para Aristóteles, o conhecimento se dá pelas causas, de todo o processo causal[iv];. Entretanto, o processo causal pode sofrer interferências, como o acaso e a sorte, que são causas acidentais e geram indeterminação no processo. E, independentemente das particularidades das causas, acaso e sorte, a questão que surge é se a natureza estaria sujeita a uma lei inexorável. Do que ele pontua que, dentro da mudança, algo permanece e revela-se uma dualidade.

Segundo Vargas, é da noção da natureza como animal que se dá a teoria das quatro causas; duas externas: eficiente e final e duas internas: material e formal. E, transformação e movimento (kinesis) estariam sujeitas a um julgamento causal (aitia) que poderia não ser obedecido e, ocasionalmente, não ter sua finalidade atingida.

Por fim, Vargas aborda a passagem da natureza de animal à máquina, na Idade Moderna, do que “sobraria” apenas a causa eficiente associada a seu motor e o acaso ao campo da probabilidade. A natureza transforma-se sem uma razão, mas regulada pela lógica matemática que reafirma aquele nexo inicial, mas que, depois, com a Mecânica Quântica traz de volta a indeterminação, reformulando a doutrina aristotélica da causalidade, acaso e necessidade.



[i] Conforme Causalidade, acaso e necessidade em Aristóteles, Capítulo 4 de Vargas, M. (1994). Para uma filosofia da tecnologia. São Paulo: Alfa Omega. II Fórum Interdisciplinar Caos, Acaso e Causalidade nas Ciências, Artes e Filosofia. Câmara de Estudos Avançados do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. Rio de Janeiro, 1993.

[ii] Conforme http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Aitia, em 14/04/2021: “Podemos distinguir no ente dois modos de o compreender perguntando por sua proveniência. Se o olhamos do ponto de vista da physis, e não há, no fundo, outro modo, podemos constatar que a própria physis age de uma maneira (e é isto a "causa", o agir, a aitia) dupla: no primeiro momento, todo sendo (ente) chega ao seu telos (realização) a partir de sua essência originária. Esta é a coisidade da coisa. O outro modo de agir da physis é aquele que produz um efeito sobre algo. Por exemplo, quando o Sol aquece a semente na Terra e a faz eclodir, quando o frio queima as folhas tenras da planta, quando o vento causa estragos nas casas. A causalidade como efeito de uma ação é apenas um modo derivado do causar originário, do causar enquanto essência do sendo (ente). Então a palavra grega aitia diz causa em sentido próprio e em sentido derivado. A palavra em grego, enquanto adjetivo aitios ou aition na função acusativo, diz como tal o ser devido a, o responsável por, ou seja, o culpável. A tradição retórico-sofística, porém, reduziu-a às relações causais pelas quais a toda causa corresponde um efeito. Para negar esta redução diz-se então que nem todo sendo depende de uma causa, isto é, não depende de uma relação causal dentro de um sistema de representação e de funcionalidade. Por exemplo, a obra de arte é sem funcionalidade, porque não está construída em cima de relações causais. Nesse sentido, o artista não é a causa da obra, porque não é devida a ele, mas à arte, ou seja, esta é a aitia da obra em sentido próprio. O artista só é a causa da obra em sentido derivado.”

[iii] Isso posto, naturais tem alma, artificiais são movidos por agente externo.

[iv] Já em sentido ontológico, como aparece no Livro V da Metafísica.

sábado, 10 de abril de 2021

Uma visão otimista da filosofia da tecnologia

Breve introdução ao pensamento de Mario Bunge[i]

Iniciemos com a definição de Bunge: “a tecnologia é o campo de conhecimento relativo ao desenho de artefatos e à planificação da sua realização, operação, ajustamento, manutenção e monitoramento, à luz do conhecimento científico”, ou seja, busca-se por uma base teórica e aperfeiçoamento.

 A ação técnica, ou tecnológica, produz tanto objetos quanto alterações em sistemas naturais ou sociais de maneira metódica e controlada. Para a técnica e a tecnologia os elementos naturais são vistos como “recursos” que, através de regras, se transformam em artefatos eficientes.

Diferente da técnica, a tecnologia se vale da ciência, mas também de criatividade e inovação. Conceituando a distinção (embora se superpondo): 1.) ciência pura, obtém saber pelo seu valor intrínseco, 2.) tecnologia, soluciona problemas práticos usando recursos científicos, 3.) ciência aplicada, zona intermediária, conhecimento com projeções práticas.

O conhecimento tecnológico transforma um conhecimento científico, uma lei, em enunciado condicional: se se fizer x, ocorrerá y. Também existem as teorias tecnológicas que podem ser substantivas ou operativas e o ciclo tecnológico: problema prático – projeto – protótipo – prova – correção do projeto ou reforma do problema.

Há distinção de tecnologia em hightech (conhecimento de ponta) e brandas (preservação do ambiente e recursos). Quanto ao artefato produzido, elas podem ser físicas, químicas, biológicas, psíquicas, de informação e sociais. Há também uma tecnologia geral, por exemplo, teoria geral dos sistemas e teoria da decisão.

Bunge destaca a importância das tecnologias de informação, que se valem da riqueza produzida pelo cérebro, mas que são supervalorizadas quando aproximam o computador do cérebro[ii]. Bunge é crítico da Inteligência Artificial e do computacionalismo pois, para ele, o computador nada cria, mas o homem.

Cupani salienta que Bunge se pauta pela clareza cartesiana e alinhamento à tradição iluminista, isto é, é um otimista, porém, se vê os excessos da tecnologia ele não foca neles. Além disso, a exaltação tecnológica racional pode distanciá-lo de uma ação ético-política como ocorre em Arendt e Habermas. Posição iluminista que, finaliza Cupani, deve ser superada criticamente.



[i] Filosofia da Tecnologia. Seus autores e seus problemas. Organização de Jelson Oliveira e prefácio de Ivan Domingues, resultado da iniciativa do GT de Filosofia da Tecnologia da ANPOF. Caxias do Sul, RS: Educs, 2020. Conforme capítulo 4, Uma filosofia exata da tecnologia – Mario Bunge, por Alberto Cupani.

[ii] Conforme ressalta Cupani, o acompanham, nessa crítica de Bunge, Dreyfus e Searle. Esse é o tema relativo à Inteligência Artificial, já noticiando por esse espaço. Também Nicolelis se opõe a ele: https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2020/12/informacao-godeliana-anti-ia.html. 

domingo, 4 de abril de 2021

Breve olhar de Heidegger sobre a técnica

Destacam-se algumas noções de Heidegger sobre a técnica[i]

Técnica Tradicional. Para Heidegger, o homem é menos dono da realidade do que imagina, apesar de ser o lugar onde seu Ser se manifesta. E a essência da técnica não é o técnico. As definições de meio para um fim ou do fazer humano, se instrumentais ou antropológicas, não permitem mostrar a diferença entre a técnica tradicional e a moderna.

Além da noção irrefletida de causa e efeito, Heidegger traz a noção aristotélica de causa como algo que é cúmplice da origem de uma coisa[ii]. A matéria, forma (eidos) e finalidade (telos) se comprometem na mão do forjador para que a coisa surja.

O produzir (poiesis) é um trazer à presença, algo que já ocorre na natureza (physis) em si mesma, mas o homem produz desde outro. Essa manifestação é aletheia, a verdade de algo que é revelado. Mas a técnica é um desabrigar produtor (poiesis) além do conhecimento revelador (episteme).

Técnica Moderna. A técnica moderna, diferente dessa descrição anterior de técnica tradicional de desabrigar, é um desafiar a natureza para que ela se manifeste como disponível ao homem (Bestand). Se antes havia um cuidar, por exemplo, quando o camponês semeava o solo que cresce, agora a natureza é “posta” (desafiada) para fornecer algo. Tudo quanto é focado pela técnica (ou seja, pela atitude técnica) se transforma em algo disponível-para (fins humanos)[iii].

Ocorre que o homem é convocado pela própria natureza a desafiá-la. Há uma imposição para que até o próprio homem fique disponível. A própria ciência tem uma atitude técnica e vê uma natureza passível de cálculo. Porém, se há algo como uma predestinação do homem à técnica, sua liberdade não está de todo suprimida e ele pode reagir ao perigo da técnica.

*   *   *   *   *

Cupani conclui dizendo que Heidegger vê a tecnologia dos prismas positivo e negativo. Para ele a tecnologia transcende nossa vontade, embora seja possível de algum modo resistir. Por um lado, ele mostra nossa atitude abusiva para como a natureza, por outro, uma autonomia tecnológica. Contudo, suas teses metafísicas e linguagem obscura dificultam a compreensão.



[i] Conforme Cupani, Alberto. Filosofia da tecnologia: um convite. 3. ed. - Florianópolis: Editora da UFSC, 2016. Capítulo 2: Estudos Clássicos: Martin Heidegger.

[ii] Em uma ocasião futura, Vargas vai explorar pontos da teoria aristotélica das quatro causas.

[iii] Aqui lembra Anders.

sábado, 3 de abril de 2021

A era tecnológica como ideologia

Sobre as artimanhas de um discurso enganador[i]

Da dominação. Segundo Vieira Pinto, a ideologia da era tecnológica é criada por meio de sofismas que convertem a obra técnica em valor moral, como se vivêssemos em uma época superior, das máquinas mais estupendas de todos os tempos. Porém, os benefícios são para as camadas superiores, que são santificadas.

É um jogo sofistico que consiste em pautar uma ruptura no processo histórico, mas isso é algo não original, pois ocorreu o mesmo pouco antes do fim do Império Romano, algo que parecia inconcebível. Se somos só nós que podemos dizer que vivemos na civilização tecnológica, o valor moral da técnica adjudica benemerência aos grupos dirigentes. Citando Vieira: “o laboratório de pesquisas, anexo à gigantesca fábrica, tem o mesmo significado ético da capelinha outrora obrigatoriamente erigida ao lado dos nossos engenhos rurais” (p. 42).

Há, também, uma falsa aplicação do conceito de totalidade movida pelo esplendor tecnológico de tomar a realidade em bloco para esconder assimetrias, sejam desigualdades nos setores da sociedade ou entre nações. A “era tecnológica” traz dois pilares: valor ético positivo e silenciar a consciência das massas e nações subdesenvolvidas “como se”[ii] todos tivéssemos privilégio de viver nessa era.

Entretanto, as criações significativas provêm dos grandes centros, o que não passa de uma lei biológica de seleção que exige concentração de recursos econômicos e intelectuais. Diante disso, os países subdesenvolvidos são um “séquito passivo em marcha lenta”, meros consumidores e/ou imitadores.

Vieira Pinto defende que a ideologia visa aumentar a espoliação. Os países ocidentais engendram o universo da técnica, mas fazem as nações pobres acreditarem que estão engrenadas na “era tecnológica”, esmo que por mãos alheias que as impedem de expandir.

Da retaliação. Isso posto, o papel dos filósofos nos países pobres é fundamental. Devem se colocar no papel de analfabetos que mais veem do que leem. É da apreensão do ser social de que fazem parte que aparece a consciência filosófica, como se fossem um analfabeto alfabetizado. Mas Vieira vê uma alienação cultural taxando os intelectuais subdesenvolvidos como tabelião de ideais, não passando de escreventes ao invés de escritores.

Visando não reduzir os problemas do progresso tecnológico aos aspectos técnicos desse domínio, a consciência virá da defesa de nossos recursos ora explorados. Além disso, de mostrar que a totalidade é feita de interesses antagônicos e de luta contra condição subalterna, contra errônea uniformização. Trata-se de uma totalidade de ordem objetiva: uma análise do processo histórico de categorias dialéticas. Se estamos em uma época extraordinária, ela não se da pelo seu caráter absoluto incomparável, mas no curso da história: há originalidade em toda criação de qualquer tempo e lugar, em um processo contínuo.

A filosofia deve dar conta da dualidade do presente que será negado no futuro, é o por vir e o desaparecer, entretanto observa-se na prática uma futurologia feita para preservar tais maravilhas tecnológicas e manter as estruturas, sem ver que o novo e inesperado surge.



[i] VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. A “era tecnológica” como ideologia - p 41 e seguintes.

[ii] Emprestei de Vaihinger.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

A matemática e a metafísica grega

De como a matemática inspirou a metafísica [i]

Século VI. De acordo com Vargas, metafísica e matemática surgiram simultaneamente na Grécia, no século VI a.C., embora a matemática já existisse no Egito/Mesopotâmia como uma sabedoria instintiva dos papiros egípcios e babilônicos, uma arte de cálculo e para resolver problemas.

Por outro lado, a matemática grega era baseada em proposições lógicas e, tanto ela como a filosofia jônica, eram saberes teóricos. Teoria que significava ver além das aparências, pelos olhos do espírito. É a episteme teoritike, que trata do que é perene e imutável, seja a arché, physis, ideia ou substância. Em uma ciência sobre o que é o estável da realidade, os objetos matemáticos (figuras, números) satisfazem essa crença.

Naquela época, havia um misticismo relacionado com a matemática que, absorta em uma atmosfera de mistério, tinha aulas secretas e a saudação do número 4 como sagrado. A ordem religiosa dos matemáticos acreditava na separação de corpo e alma e na reencarnação. Associada a ela surge uma metafisica com teoria da realidade radical, inspirada na harmonia numérica, musical e celestial.

Vargas cita ainda uma relação com o xamanismo, que trazia as aventuras de Orfeu, a religião de Dionísio, libertação da alma, possibilidade de ver o futuro e perfeição eterna. A physis perfeita e eterna subjacente às aparências do mundo permite o surgimento da teoria dos números e da raiz da realidade. Entretanto, se a união da geometria com a metafisica tem como base o que se disse, ela entra em crise com a descoberta dos irracionais, pois incomensuráveis.

Século V. Vargas, por conseguinte, salta 100 anos para abordar Eudoxo e a teoria das proporções. O século V é o das tragédias gregas, da Guerra do Peloponeso e das invasões persas. Também de avanços na geometria, com teoremas independentes sobre as propriedades exatas das figuras planas. E, dado isso, a criação do sistema lógico postulacional dedutivo com a apagoge, a dedução geométrica.

No século V, os pitagóricos convertem as proporções, figuras, linhas contínuas, isto é, ideias geométricas em números discretos. É a passagem das proporções harmoniosas à teoria dedutiva.

Século IV. Aqui, além de novos teoremas, aparece a filosofia de Platão e um modelo analítico, como na República, em que se pode “ver” imagens (figuras) como ideias (ex. diâmetro). Esquematizando o que Vargas nos traz.

Dianoia

Nous

Matemática: conhecimento dedutivo de imagens

Realidade: conhecimento intuitivo das ideias.

Ideias: entidades reais, perfeitas.

Inteligência discursiva

Nous: mundo do saber (ideias)

Então, a matemática inspira a metafísica e temos a transição do número (Pitágoras) para a ideia.

Por fim, Aristóteles. A marcha continua, Platão postula a perenidade indelével dos objetos da matemática. Theudio, precursor de Euclides, já tinha um tratado de Geometria, com entes geométricos geradores de princípios.

Aristóteles aprendeu os métodos analíticos, onde ideias contêm outras ideais, para usar na doutrina do ser, tendo a geometria como prolegômeno da metafisica. Dos postulados para as proposições, há inspiração metodológica.

Porém, uma vez erigida a metafísica, ela esclarece os princípios da geometria e ciências particulares. E o objeto platônico (eidos) é abstraído em uma forma aristotélica. Durante Aristóteles, foi sendo edificado um sistema postulacional à maneira dos Elementos de Euclides. Há dedução de um teorema a partir de princípios e a geração dos entes vivos a partir da semente.



[i] Conforme A matemática e a metafísica grega, Capítulo 3 de Vargas, M. (1994). Para uma filosofia da tecnologia. São Paulo: Alfa Omega.