sábado, 29 de maio de 2021

Sobre a relação imanente entre univocidade técnica e multiplicidade tecnológica

De como o sentido imanente da técnica (Ser unívoco) é campo de expressões tecnológicas (multiplicidades de entes). Essas últimas atingem o impensado, além da inovação.[i]

Craia pensa a técnica com o aparelho analítico deleuziano, já que ele não tem uma filosofia da técnica específica, principalmente do ponto de vista ontológico. A análise de Craia se baseia em “Diferença e Repetição” na medida em que Deleuze investiga o estatuto da diferença a partir de um conceito filosófico diferencial.

A ontologia da diferença. Os conceitos que norteiam a Ontologia da Diferença são: univocidade, imanência, expressão ontológica, questão filosófica, multiplicidade e “virtual-atual”.

Conforme Craia, a afirmação central é: “o Ser é unívoco e imanente à multiplicidade dos entes como diferença”. Destacando: se imanente não é fundamento transcendente e, também, unívoco não é um, pois não se diz em um único sentido, é acontecimento aberto que se dá nas coisas e na linguagem. Mas, o fenômeno é multiplicidade, fluxo de intensidade em que a própria Diferença é potência vazia de conteúdo.

De tudo isso, dá-se que: “o Ser não deve ser entendido nem como algo, nem como nada”. Daí que o estatuto da Diferença deve ser buscado na noção virtual-atual, sendo que o virtual não se opõe ao real, mas ao atual, ou seja, o processo de atualização, que em cada caso é singular e diferente, não é um movimento do tipo potência-ato ou possível-real, mas exatamente um devir dentro de dimensões reais.

A atualização do virtual se faz por diferença, mas os termos atuais não se assemelham à virtualidade que eles atualizam. Então, o sentido imanente de nosso campo de existência se diz como diferença; este é seu ser.

Um ajuste conceitual. Segundo Craia, nossa realidade tecnológica passa por quatro momentos: 1.) coletivo político: o surgimento de uma necessidade / demanda; 2.) momento epistemológico do design, projeto de artefato ou processo; 3.) momento econômico-capitalista da produção; 4.) momento social do uso. Mas, esse mundo tecnológico não se esgota na plexa tecnológica, posto que há a técnica com estatuto epistêmico mais vasto de nosso modo de ser, mas que apresenta um efeito imanente no universo tecnológico expressando multiplicidades num sentido unívoco.

Compreendemos mundo e realidade pela noção imanente da técnica, que nos permite reconhecer a tecnologia univocamente em suas múltiplas produções. Conforme Craia:

É porque se expressa na compreensão técnica do mundo, que o campo fenomenal do tecnológico faz sentido e pode ser pensado. Esse campo de sentido é o horizonte onde as explicações epistemológicas, éticas, políticas da tecnologia encontram sua possibilidade de expressão; cuidado, não seu funcionamento, mas seu campo de sentido imanente.

Multiplicidade e Tecnologia. A produção tecnológica se dá dentro de um campo normalizado que é mecânico, planejado e previsível, dentro de padrões; nesse campo está a inovação que é seu limite criativo, mas ainda controlado. Por outro lado, há uma produção diferencial e impensada; às vezes, à mercê de casos fortuitos, como o caso do micro-ondas que inicialmente seria um radar.

Entre o planejado e o impensado, o primeiro se dá dentro das ferramentas estabelecidas, que não abarcaria o fator disruptivo de difícil compreensão, às vezes até visto como erro. Então, há necessidade nova categoria que permita colocar no mesmo estatuto o planejado e o devir, uns como majoritários e molares, outros como linhas de fuga e moleculares. Isso com uma ontologia que permita agenciar a multiplicidade tecnológica seja estandardizada ou indesejada.

Craia aproxima tecnologia e multiplicidade, ambas em um processo aberto que se organiza e desorganiza, que sempre se renova.

Já aproximando a hiperprodução tecnológica ao virtual-atual é quando se pode pensar tanto os processos padronizados quanto os diferenciais sem regras preestabelecidas. E por esses conceitos talvez seja possível pensar outras expressões tecnológicas.

Univocidade e Técnica. O tecnológico expressa um aliquid que não é tecnológico e que no agenciamento sentido-acontecimento no campo semântico é unívoco. A univocidade se diz do ser em um sentido em relação à multiplicidade das diferenças e se pode pensar em novos modos não como aberrantes.

Isto é, pela multiplicidade pensa-se o ser tecnológico que no seu sentido unívoco é o técnico não homogêneo ou totalizante, mas ressonâncias na dinâmica do tecnológico. Então, há relação imanente entre ambas: a técnica é unívoca como sentido de nossa época expressada na multiplicidade dos entes tecnológicos.

É dessa forma que Craia nos traz a análise baseada no arcabouço deleuziano, entre a multiplicidade e o virtual da tecnologia e o sentido e acontecimento da noção de univocidade da técnica.



[i] Filosofia da Tecnologia. Seus autores e seus problemas. Organização de Jelson Oliveira e prefácio de Ivan Domingues, resultado da iniciativa do GT de Filosofia da Tecnologia da ANPOF. Caxias do Sul, RS: Educs, 2020. Conforme capítulo 6, Gilles Deleuze – Um pensamento sobre a técnica, por Eladio C. P. Craia.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Apropriação

O nosso erro é o que nos diferencia, a saber, nossa espécie. Nossa maior virtude é o nosso maior erro porque, sendo racionais, nós racionalizamos tudo e aí planejamos a nossa existência. Entretanto, “racionalizar tudo” é fazer um suco de resultados, digo, espremer tudo o que é possível para que se chegue a uma produção.

Falamos disso reiteradas vezes e, devido a isso, nos tornamos chatos. Mas é impossível dissociar, atualmente, qualquer ação de algo que não seja produção. A partir do momento em que nossa ação dependa de insumos naturais e, também, nossa existência, a extração dos mesmos e seu provável esgotamento não entram exatamente nas contas.

É isso e não é por isso que somos menos “humanos”. Ser humano é só ser um bicho mais escroto. Aquela barata, noves fora umas antenas e um barrigão, é ser que vive. Vivência sem pensar é vivência. Vivência pensando é subtração. Porque um ser irracional vive para o momento e nós, seres racionais, vivemos sempre subtraindo algo de alguém, qual seja, planejando.

Contudo, não chegaríamos até aqui sem essa índole. De posse da racionalidade erguemos um império: já fomos à lua, já há robôs em Marte. Estamos engatinhando. É tão promissor... É tão... Então, é sempre ir além, é ciência. É uma prova do que somos, de nosso potencial. Um potencial exatamente apropriador.

E nem tudo é negativo. A curiosidade parece ser inata a qualquer coisa que se mova, porque, movendo-se vai daqui para lá, de lá para cá, fuça, tenta. Então nós vamos seguindo procurando algo, e não só procurando per se, mas procurando e catalogando, planejando e procurando, procurando e produzindo. E, nos apropriando.

 

sábado, 15 de maio de 2021

Para uma educação técnica, que compreenda a evolução do objeto

De como o objeto técnico evolui e ganha forma tal como um objeto natural [i]

Simondon parte de uma divergência entre a cultura, que ignora as máquinas e se aliena, e o mundo tecnológico que aí vai a um tecnicismo imoderado. Ele caracteriza a oposição entre homem e máquina como consentimento e ignorância. Então, a filosofia deve tentar compreender a índole dos objetos técnicos e ele prega um ensino de iniciação à técnica que forme pessoas capazes de entender a natureza das máquinas.

O autor enumera três níveis no mundo técnico: 1.) elementar, otimismo do século XVIII quando o avanço não ameaça hábitos tradicionais; 2.) indivíduos (máquinas do século XIX), era da termodinâmica que mistura exaltação e temores; 3.) era da informação (século XX) que regula e estabiliza o mundo.

Objeto Técnico

Simondon aposta no estudo da gênese do ser técnico, associado à cultura técnica, em oposição ao estudo estático do saber técnico que capta a atualidade. O objeto técnico evolui do abstrato ao concreto, com partes soltas que se sintetizam, por exemplo, o motor a combustão que tem no motor atual um todo interligado.

Quando abstrato, o objeto apresenta problemas de adaptação entre as partes que, progredindo, vão se aperfeiçoando para se tornar um objeto coerente que já “não mais está em luta consigo mesmo”.

Os objetos técnicos evoluem por causas, amiúde econômicas e sociais, mas principalmente técnicas ou quando avanços em um objeto (avião) interferem em outro (automóvel) e, às vezes, passando por intervalos até que surja nova matéria-prima, por exemplo.

Se o objeto técnico é produzido artesanalmente e aí instável, quando concreto se sujeita à industrialização, quando sua produção já está associada ao conhecimento científico. Embora se conserve uma essência técnica nessa evolução: combustão interna – motor a gás – motor a diesel.

O objeto abstrato, por exigir intervenções humanas, é considerado artificial para Simondon, ao passo que o objeto concreto é evoluído e se aproxima do modo de existência dos objetos naturais[ii]. A artificialidade, para ele, não é uma rivalidade com a natureza, mas diz respeito à independência do objeto, como quando sai do laboratório para a fábrica. É a cultura técnica que mostra o esquema de funcionamento dos objetos.

Evolução da realidade técnica

Os objetos técnicos se direcionam por certa finalidade que deve se adaptar ao meio técnico-geográfico em que se inserem. Ocorre ocasionalmente a criação de um meio para esse objeto, que não é a humanização da natureza, mas uma naturalização do homem que inventa esse meio antecipadamente pela sua imaginação criadora.

A evolução técnica é análoga a de um ser vivo, mas por uma tecnicidade que vai além de forma e matéria e capacidade de uso. Ela é a essência do objeto, a concretização de seu esquema funcional. No artesão, a tecnicidade está no homem e recentemente passa para a máquina que faz com que o homem passe de indivíduo técnico para servente de máquinas.

Os modos de relação do homem com o objeto técnico

Simondon vincula o homem à técnica, por um lado, no que ele chama de estatuto de minoridade, do aprendiz que se torna artesão com saber técnico implícito e, por outro, na vida adulta livre, o homem (engenheiro) já tem consciência científica. Cindidas, na primeira o homem está integrado à natureza em sociedades fechadas (commodities). Na segunda, se guia pelo Enciclopedismo e o conhecimento racional universal. Para nosso autor, deveria haver uma simbiose entre elas, ou seja, se tornar adulto progressivamente, mas com uma formação universal.

Progresso, cultura e filosofia

Mais do que valorar a tecnologia, Simondon trata do progresso humano, entre aperfeiçoamento (p.ex., no século XVII) de utensílios e angústia (p.ex., no século XIX) frente às máquinas que poderiam nos substituir. Isso porque o homem se aliena por não entender a relação da máquina com o ser humano.

Esse problema só pode ser superado por uma cultura tecnológica na qual o homem se familiariza com os esquemas de funcionamento das máquinas. Como a relação humana com a natureza se dá pela tecnicidade então não basta usar os objetos, é preciso compreendê-los como “portadores de informação”, sua história, como resolveram problemas e como o homem foi estabelecendo uma relação prática com o mundo.



[i] Conforme Cupani, Alberto. Filosofia da tecnologia: um convite. 3. ed. - Florianópolis: Editora da UFSC, 2016. Capítulo 2: Estudos Clássicos: Gilberto Simondon.

[ii] Embora o ser vivo seja concreto ab initio e o objeto técnico nunca se complete.

terça-feira, 11 de maio de 2021

O projeto que transforma a realidade material

Trata de nossa capacidade de projetar, que é social, biológica e material [i]

Para Vieira, projeto não é só um conceito metafísico existencialista da constituição de si mesmo, mas o trabalho de transformação da realidade material visando um novo ser[ii]. Estar engendrado no plano do pensamento nos distingue dos animais irracionais pelas capacidades do sistema nervoso superior, seja por ideias comunicadas pela linguagem, seja na abstração que fazemos dos corpos com o projeto de modificá-los.

Nossa ação sobre a natureza nos diferencia pelo projetar que, mentalmente, percebe conexões entre as coisas que configuram um corpo ou artefato a ser fabricado de acordo com esse projeto. É o ato de intencional de criar o inexistente e povoar a realidade com novos produtos.

O animal irracional modifica-se para se adaptar ao mundo, já o ser humano, conscientemente e ativamente, transforma o mundo pela sua capacidade que evoluiu biologicamente. De fato, é um projeto vital que o homem leva à prática pela sua ação.

A análise filosófica de nossa capacidade de criação deve, segundo Vieira, partir de fundamentos biológicos e do exercício social. O projeto não é uma concepção subjetiva como movimento interior do espírito, mas objetivamente o homem se da um novo modo de ser.

Reiteradamente, Vieira critica aqui uma análise existencial e demonstra o salto qualitativo em nossa evolução, que nos agrega tais capacidades de projetar e, daí, já se dá o caráter técnico de toda a ação humana, visto que ligado a uma finalidade que o homem se propõe a cumprir. Isto é, supera-se um comportamento instintivo visando melhores maneiras de prover as necessidades de por meio do projeto. E o cérebro se desenvolve na tentativa de resolver a contradição entre o ser vivo e a natureza.



[i] VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. A faculdade de projetar. P. 54 e seguintes.

[ii] Lembremos de Sartre, intelectual que tratou teoricamente o conceito de projeto como nossa condição universal de existência, mas que também foi um homem engajado. 

sábado, 8 de maio de 2021

Primeiro se crê, depois se prova que há razão em crer

Dos percalços que ocorrem quando se tenta unir conhecimento e fé, mas que abrem caminho para a ciência moderna[i]

Grécia. Antes de procurar verdade e teoria nos mil anos de Idade Média, Vargas inicia com citação de Aristóteles postulando que o “fim de toda a teoria é a verdade”, aqui entendendo-se a lógica como instrumento da episteme que tem na physis[ii] uma natureza perene e certa.

Influência platônica. Com o advento do cristianismo, a realidade certa passa a depender de um Deus que a pode destruir e a teoria a Teologia com a lógica sendo a arte de revelar raciocínios corretos. Com a tradução da Bíblia ao latim por São Jerônimo em ~400, a lógica deve então demonstrar a Verdade da Revelação[iii]. Agostinho, nessa mesma época, iguala a busca da verdade à procura de Deus, um platônico: realidade inteligível, necessária, imóvel e eterna. Deus é um ser supremo e o mal vem do livre-arbítrio humano.

Alguns séculos depois, Santo Anselmo demonstra a existência de Deus como a maior coisa que se pode pensar e, do que decorre, existir. Em seu tratado sobre a verdade, ele a localiza no enunciado, isto é: “para ser verdadeiro o enunciado deve significar existir o que existe”. Se os sentidos enunciam o que podem, a verdade está no juízo da alma e, daí, oriundo da mente divina. Nesse sentido, tanto Santo Agostinho quanto Santo Anselmo seguem Platão, mas há um primado da fé na Verdade Revelada que subordina a razão.

Influência aristotélica. Porém, no século XII, sob a influência da lógica e da física aristotélica, passa-se a tentar demonstrar racionalmente os enunciados da fé. Para São Tomás, fundamentado na episteme theoretike, a Verdade Revelada está em acordo com a razão que demonstra proposições e refuta argumentos não válidos. Como mostrou, primeiro se crê, depois se prova que há razão em crer. Se, em Aristóteles, os primeiros princípios são evidentes em si, em São Tomás são artigos de fé revelados por Deus e a correlação entre teoria e verdade. Ele demonstra a verdade usando a lógica, mas no intelecto divino ela é eterna e resulta em muitas para o homem, que não é eterno.

Vargas cita ainda, no século XII, disputas envolvendo franciscanos e dominicanos como a querela dos universais (homem, cavalo, triângulo) que, sendo abstratos, só existiriam na mente de Deus ou seriam invenções humanas. Já o nominalismo defende a ideia que os universais são meras palavras e que a teoria é feita de enunciados universais, por isso não se pode fazer uma teoria do divino, além de qualquer conhecimento.

A ciência, então, não seria feita através de verdades oriundas da mente divina, mas de um experimentalismo e a apreensão de como a coisa ocorre na natureza. O franciscano Bacon (1214) tratava essa experiência como uma vivência do fenômeno quase mística até aceitando a alquimia. Já para o tomismo, os universais existem como reais na mente de Deus. Isso se dá na teologia como ciência teórica quando o intelecto se conforma com a coisa conhecida à semelhança como estão na mente divina.

Impossibilidade teológica. No século XIV, Occam (sic) fortalece o nominalismo como uma realidade de entes particulares, mas que são abrangidos pela experiência, tornando a Teologia impossível: o conhecimento de Deus só se daria por fé ou mística. A ciência se organiza pela lógica que verifica o que há de comum na realidade e dá rumo à ciência moderna, que prevalece a partir de Galileu. Citando Vargas:

“De então para cá as teorias são elaboradas a partir de conjecturas; depois desenvolvidas preferivelmente por deduções matemáticas e, finalmente, verificadas comparando-se uma conclusão particular da teoria, com experiência organizada e interpretada de acordo com a própria teoria; algo totalmente estranho às noções medievais de verdade”.



[i] Conforme Teoria e Verdade na Idade Média, Capítulo 5 de Vargas, M. (1994). Para uma filosofia da tecnologia. São Paulo: Alfa Omega.

[ii] Não custa lembrar, physis é a natureza, mas uma natureza animada e autônoma e episteme é a teoria, o conhecimento. Portanto, mais uma vez, um conhecimento em que não cabe dúvida.

[iii] Todas as iniciais em maiúscula são do autor.

domingo, 2 de maio de 2021

Sobre o útero máquina

Na luta pela hegemonia do planeta contra o homem, os vírus também podem nos beneficiar[i]

Rodrigues e Fernandes abordam técnicas para a gestação de fetos por máquinas que, apesar de ainda em evolução, estão sujeitas a questões éticas. Trata-se da ectogênese, a “gênese fora do ventre materno”, baseada em uma tecnologia útero-máquina. Há uma área celular inerente ao embrião capaz de ser usada como uma placenta primitiva com suas inúmeras funções.

Os autores defendem a posição de Canguilhem de equiparação organismo-máquina, iniciada com Descartes, e um modelo biológico que permita compreender os padrões evolutivos do ser humano. Especificamente, como a máquina se estabelece independentemente dos processos biológicos evolutivos naturais e o papel do retrovírus na evolução biológica de placenta.

Retrovírus na evolução biológica. Eles ressaltam que os vírus competem com o homem pelo domínio do planeta, com capacidades de plasticidade genética para evoluir em novas direções e interação genética e metabólica com as células infectadas.

Sua ação é intracelular, ele carrega seu genoma viral para dentro da célula hospedeira e, a partir do momento em que o homem deixou de ser nômade, os vírus passaram a ser transmitidos e mantidos nas populações.

As doenças virais datam das civilizações egípcias e greco-romanas; os retrovírus[ii] surgem como codificadores de moléculas de DNA. Aí há os retrovírus endógenos presentes no genoma de todos os vertebrados e que coevoluem com seus hospedeiros por milhões de anos, atuando com uma função vital no desenvolvimento da placenta.

Retrovírus e útero artificial. A técnica de PMA (Procriação Medicamente Assistida) possibilita diminuição do tempo de gestação intrauterina em incubadoras e busca reduzir sequelas aos prematuros. Mas é a placenta, como interface materno-fetal, que ainda não foi reproduzida no útero artificial em condições adequadas. Nesse sentido, a participação do retrovírus é essencial na evolução biológica da placenta, levando-se em conta que evoluem mais rapidamente e em escala de tempo menores, tratando-se de uma técnica de vida.

Georges Canguilhem e a vida como experiência maquínica. Então, através da visão de Canguilhem de que a técnica vai além do intelecto humano, sendo um fenômeno biológico universal, pode-se mostrar que o homem está em continuidade com a vida por meio da técnica. Mais ainda, que a vida não é indiferente quando um vírus atua beneficamente no organismo. As técnicas ocorrem por ocasiões que se dão na própria natureza e a vida se move pelo empirismo.



[i] Filosofia da Tecnologia. Seus autores e seus problemas. Organização de Jelson Oliveira e prefácio de Ivan Domingues, resultado da iniciativa do GT de Filosofia da Tecnologia da ANPOF. Caxias do Sul, RS: Educs, 2020. Conforme capítulo 5, Georges Canguilhem – A técnica entre o útero artificial e a influência virótica do retrovírus, por Marco Aurélio Martins Rodrigues e Maurício Fernandes.

[ii] Conforme https://www.infoescola.com/biologia/retrovirus, em 01/05/2021, os vírus são parasitas intracelulares obrigatórios, ou seja, eles precisam utilizar a maquinaria da célula hospedeira para sua replicação. Eles possuem um único tipo de material genético DNA ou RNA e isso os diferencia em Adenovírus, quando possuem o DNA, ou Retrovírus quando possuem RNA.

Os retrovírus foram os primeiros vírus a serem estudados em 1904, quando pesquisadores (estavam) procurando por bactérias como agentes infecciosos para leucemia em galinhas (...). Os retrovírus são um grupo de vírus de RNA que se replicam para produzir DNA a partir do RNA, usando uma enzima denominada transcriptase reversa. O DNA produzido é então incorporado ao genoma do hospedeiro.(...) 

Os retrovírus, assim como outros vírus, possuem a característica de produzir infecções latentes e persistentes, caracterizadas por longos períodos de incubação e crescimento lento das quantidades de vírus nas células infectadas, isso permite que eles permaneçam assintomáticos por um longo período até que a doença associada comece a apresentar os sintomas. 

Conforme Vírus - Estrutura e ciclos virais, acessado em 01/05/2021 no link https://educacao.uol.com.br/disciplinas/biologia/virus-estrutura-e-ciclos-virais.htm, um exemplo bastante conhecido de retrovírus é o HIV, causador da AIDS, que ataca os linfócitos T auxiliadores, células de nosso sistema imunológico. O DNA, produzido a partir do RNA viral, penetra no núcleo do linfócito e integra-se a um dos cromossomos (provírus); e, dessa forma, comanda a fabricação de novas moléculas de RNA viral e da enzima transcriptase reversa - e, portanto, a fabricação das proteínas dos capsídios e a origem de novos vírus. Os novos vírus formados são expelidos das células e podem infectar outras. 

Embora, em geral, os vírus sejam lembrados por serem causadores de doenças, é bom saber que eles têm sido usados em muitas das pesquisas em Biologia Molecular e Engenharia Genética. É o caso, por exemplo, de certos bacteriófagos, usados para introduzir em bactérias determinados genes para a produção, pelas bactérias recombinantes, de substâncias de interesse médico ou econômico.