terça-feira, 15 de março de 2016

Essência verde e amarela

Encontros festivos têm sido realizados esporadicamente pelo país e têm sido mais populosos principalmente em algumas capitais. Não os chamo de protestos ou manifestações devido ao caráter aparentemente pacífico que é veiculado pela mídia que os cobre (ou encobre). Em um protesto normalmente a polícia está intervindo porque um protesto ataca frontalmente a ordem estabelecida, nele as pessoas tendem a serem enérgicas e agressivas, elas entoam gritos contundentes que vêm das suas entranhas indicando a rudeza da causa defendida e que algo definitivamente precisa mudar. O clima em um protesto costuma ser tenso, as pessoas se expõe, elas têm medo, mas têm brios e estão se colocando em uma situação de risco.
Normalmente... Mas não é o que temos visto nesses encontros de domingo. Lá as pessoas têm demonstrado felicidade e, por ser em um fim de semana, costumeiramente por sorte ensolarado e quente, nos parecem relaxadas. Não há cânticos ou gritos de guerra, há meramente cartazes e elas usam roupas e adereços verde e amarelo. As pessoas são bonitas e estão bem arrumadas. Nesses protestos as famílias têm comparecido, vemos muitas crianças e idosos, todos juntos a passear pelas ruas repletas de semelhantes. Sim, são semelhantes, mas o que os une?
Procurando nos cartazes, vemos que divergem bastante. Muitos contra a corrupção [dos políticos], a favor do impedimento da presidente ou da prisão do Lula, e mesmo pedindo que se investigue a oposição (PSDB). Muitos deles são de cunho irreverente (gozador), mas escondem muita violência, preconceito e machismo por trás de dizeres "engraçados". Na realidade, nosso país é o país da piada, senão que são uns 90% das mensagens que circulam nas redes sociais. Enfim, somos felizes. Outros cartazes apoiam a polícia, os juízes e o exército; vemos muitas demonstrações de afeto para com os militares que por lá estão [e aparecem nas fotos como bibelôs]. Mas, se há diversidade de pedidos, se não há uma pauta única, o que os une?
Vemos não propostas. Quase sempre estão solicitando a ação de terceiros: "Fora Dilma!" - não sou eu que vou pô-la para fora. Ei, você aí, faz isso para mim? Vemos "pixulecos" do Lula com roupa de presidiário e isso chega a ser fetichista e sem nenhum sentido. Parece que as pessoas não têm objetos mais interessantes para comprar ou pendurar no carro. Vemos pedidos reativos nem sempre convergentes. Então, o que os une?
É o verde e amarelo da intolerância. Se não for de verde e amarelo não pode, se for de vermelho apanha, vai preso. Sim, o verde e amarelo dá um ar festivo, mas ele é imposto, inconscientemente (ou não). As pessoas estão querendo o seu país de volta, a sua nação, abstratamente. Eu não quero algo concreto, que eu tenha que construir, eu só quero o meu país de volta. Todos de verde e amarelo, o verde e amarelo reacionário, conservador. Voltemos ao verde e amarelo!!!  Assim, todos somos iguais enquanto estamos ali, passeando em uma tarde de domingo ensolarada com os amigos. Ali não há diferença, estou seguro de verde e amarelo com minha família. Ninguém pode fazer nada contra mim porque sou patriota. Mando prender, prejulgo; não me importo com o diverso, o diferente, quero ver pessoas felizes e fantasiadas de verde e amarelo. Eu estampo um verde e amarelo que por si só significa algo, significa que estou protestando, não para que algo seja atingido no futuro, mas para que algo volte a ser como era antes. Essa é a essência do verde e amarelo que une os encontros festivos de domingo.

domingo, 13 de março de 2016

Prefácio da Segunda Edição*

Metafísica tateante
§1. Podemos verificar se os conhecimentos pertencentes ao domínio da razão caminham na via segura da ciência pelos resultados alcançados, ou se são mero tacteio.
§2. A lógica atingiu a via segura da ciência desde Aristóteles e conhece seus limites, embora alguns modernos tenham tentado alargá-los acrescentado capítulos de psicologia, metafísica e antropologia. A lógica apenas trata das regras formais de todo pensamento.
§3. A lógica é propedêutica, antecâmara das ciências, pois abstrai os objetos do conhecimento e deles se preocupa com a lógica de os julgar, já que a aquisição reside nas ciências.
§4. Nas ciências, o conhecimento de razão é a priori e se refere aos objetos como: conhecimento teórico - pela determinação do objeto e seu conceito; conhecimento prático - realizando o objeto. É a parte pura da razão que determina totalmente a priori o seu objeto.
§5. Os dois conhecimentos teóricos da razão que determinam a priori o seu objeto são: a matemática - totalmente pura; a física - parcialmente pura, não só razão.
§6. A matemática também entrou na via segura da ciências desde os tempos gregos, mesmo tendo antes se mantido tateante por muito tempo, mas o fez por uma revolução que indicou o caminho a seguir. Tal foi o da demonstração geométrica que constrói conceitos, não de acordo com o que se vê na figura, mas que, para conhecer suas propriedades, descobriu que deveria por nela o que fosse consequência necessária do seu conceito e, assim, os conheceria a priori.
§7. A física demorou mais tempo, mas também se encontrou por uma revolução súbita no modo de pensar. Ela é fundada em princípios empíricos.
§8. Os físicos compreenderam que a razão só entende aquilo que produz segundo seus planos, que ela tem princípios que determinam seus juízos de acordo com leis constantes. A razão deve ir ao encontro da natureza com seus princípios e a experimentação por eles imaginada para interrogá-la e ser ensinada, então a física procura na natureza o que a razão nela pôs.
§9. A metafísica, enquanto conhecimento especulativo da razão mediante conceitos[1] e acima da experiência, ainda não achou o caminho seguro da ciência, permanecendo em um terreiro de luta sem vencedores. Tendo a pretensão de conhecer a priori leis comuns que a experiência confirma, sente-se embaraçada.

Caminho seguro para a metafísica
§10. Mas, podemos confiar na razão se elas nos ludibria no ponto mais importante do desejo de saber? Haveria como encontrar o caminho seguro da  ciência?
§11. Para tal, à maneira da física e da matemática, se deveria alterar o método da metafísica para a possibilidade de um conhecimento a priori dos objetos. Como Copérnico fez, se na metafísica admitia-se que o nosso conhecimento se regulava pelos objetos, agora deve-se tentar fazer com que os objetos se regulem pelo nosso conhecimento, para que a razão saia do seu embaraço. Isso em dois níveis: que os objetos dos sentidos se guiem pela nossa intuição e que a experiência pela qual conheço os objetos se regule pelos conceitos que me permite representá-los. E só conheço a experiência, antes dos objetos porque as suas regras estão pressupostas em mim pelo meu entendimento. Portanto, penso objetos, mas só conheço a priori das coisas o que nelas ponho[2].
§12. A metafísica na via segura da ciência dá um resultado positivo: explica-se conceitos a priori, objetos que a eles se regulam e leis que fundamentam a natureza, porém nos ensina a não ultrapassar os limites da experiência. Se o incondicionado nos leva a querer transpor os limites da experiência, devemos procurá-lo não nas coisas enquanto fenômenos [que se regulam pelo nosso modo de representação], mas nas coisas na medida que não as conhecemos, como coisas em si[3]. Uma vez negada a razão especulativa, se verificará se é possível um conceito racional transcendente do incondicionado pelo nosso conhecimento a priori, mas só no que diz respeito à razão prática.
§13. A alteração do método da metafísica pela crítica da razão especulativa não só a delimita mas também descreve sua estrutura interna. Porque a razão escolhe os objetos para os pensar de diversos modos e também as formas como se lhe coloca os problemas. No conhecimento a priori o que está no objeto vem do sujeito, como razão pura há uma unidade, um corpo organizado da razão. E assim, a metafísica abrange totalmente o campo de seus conhecimentos, determinados pela própria crítica.
§14. Então, a primeira utilidade da crítica é negativa, de limitar a razão especulativa ao campo da experiência. Mas se a razão especulativa estende a tudo os limites da sensibilidade, nada sobraria para a razão prática, que é a razão pura no uso da moral sem interferência da razão especulativa, e daí a utilidade se torna positiva. Então só conhecemos objetos da experiência pela intuição (cuja condição é espaço e tempo) que corresponde aos nossos conceitos, ou seja a razão especulativa se limita aos fenômenos. Entretanto posso pensar os objetos[4] como coisas em si, sem os conhecer, senão haveria aparência "sem haver algo que aparecesse". Sem a distinção fornecida pela crítica, somente pensaríamos as coisas como coisas em geral e não poderíamos, por exemplo, pensar a alma como determinada e livre ao mesmo tempo, o que acarretaria contradição. Pela crítica, considero a alma sujeita às leis da natureza enquanto fenômeno e livre enquanto coisa em si. Porém, como não conheço alma e liberdade, a limitação se dá aos conceitos do puro entendimento, entretanto posso pensá-los, pois a representação deles não acarreta contradição. Caso contrário, a liberdade e com ela a moralidade (e Deus, e alma...) ficariam presas ao mecanismo da natureza. Suprime-se o saber (recusa-se a razão especulativa em suas pretensões injustas a intuições transcendentes) encontrando a crença, tornando-se incrédulo o dogmatismo na metafísica. Usar a razão prática, então, é não reportar certas ideias à experiência, porque aí as converteríamos em fenômenos. Então, uma metafísica sistemática significa, por um lado, se orientar pela crítica na via segura da ciência, não perdendo tempo com um dogmatismo que distrai a razão das ciências sólidas; por outro lado, põe-se fim às objeções à moral e religião demonstrando a ignorância dos adversários de maneira socrática. Se há metafisica, há dialética, mas essa não deve perpetuar erros.
§15. A metafísica e sua subtil especulação não é acessível ao público – esse se mantém em seus interesses[5]. Mas quando a escola ousa fazer especulações, ela deve ser limitada pela crítica. Então a perda da razão especulativa é no monopólio das escolas e algumas de suas doutrinas controversas, como materialismo, fatalismo, ateísmo, incredulidade, passando por fanatismo e superstição até chegar ao idealismo e ceticismo, que levam os metafísicos a se embrenharem em pretensões arrogantes e poderiam causar escândalo se viessem ao grande público que delas nunca soube.
§16. O estabelecimento de uma metafísica sólida deve seguir o método dogmático de Wolff, que define conceitos, demonstra e extrai consequências e está apto a colocar a filosofia na via segura da ciência e não transformá-la em filodoxia, certeza em opinião. Mas esse filósofo dogmático estava preso a uma maneira dogmática de pensar e a crítica agora vem para limpar esse terreno dogmático que usa princípios inadvertidamente, sem saber como os alcançou; a crítica vem prevenir a razão de sua própria capacidade, mas permitindo o desenvolvimento escolástico, dogmático e sistemático da metafísica.
§17. Sobre o motivo da segunda edição é o de aclarar dificuldades e obscuridades, já que a natureza da razão especulativa é um todo organizado, há uma igualdade de resultados de cada parte para o todo ou da totalidade da razão pura para cada parte e qualquer contradição pequena poderia acarretar uma mudança não só no sistema, mas na razão humana em geral[6]. Muito embora se tratando de um discurso livre (e não matemático), ao se tratar de pontos isolados podem surgir aparentes contradições que contrastadas com o conjunto geral da obra são resolvidas.
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* Crítica da Razão Pura. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010.
[1] Diferente da matemática que aplica os conceitos à intuição.
[2] Como na física, os elementos da razão pura devem ser confirmados ou refutados pela experiência. Então, as proposições da razão pura, seus conceitos e princípios a priori, devem considerar os objetos a partir de pontos de vista diferentes: como objetos dos sentidos ou como objetos que são apenas pensados.
[3] A análise divide o conhecimento puro a priori em dois elementos: fenômeno e coisa em si. A dialética os reúne de acordo com a ideia do incondicionado e mostra que a distinção é verdadeira.
[4] Desde que o conceito seja um pensamento possível, mesmo sem validade objetiva, em acordo com as fontes práticas e não teóricas.
[5] Para o senso comum basta que: a. saiba que tudo não se realiza nessa vida (que é muito pouco tempo...), não há necessidade de se falar na simplicidade da substância; b. saiba dos deveres que se opõem às inclinações, não há necessidade de se falar de necessidade prática subjetiva e objetiva; c. saiba que o autor do mundo se manifesta na ordem, beleza e providência; sem necessidade de se falar em contingência do mundo e necessidade e um primeiro motor.
[6] Ressalta-se uma nova refutação do idealismo psicológico que admite as coisas externas como crença, podendo-se demonstrar rigorosamente a realidade objetiva de uma intuição externa. Trata-se da consciência de minha existência no tempo. Se o fundamento da minha existência é uma representação, é representação de algo em mim ou exterior a mim? Se só tenho consciência da representação ficaria indeciso, mas como tenho consciência da minha existência no tempo, então não se trata somente de representação, mas de representação ligada a algo que permanece (sentido, não imaginação). Existe, sim, uma consciência interna da minha existência na representação eu sou, mas uma intuição que determina minha existência não é intelectual, mas sensível porque ligada a algo que permanece e não sou eu. É o exterior que determina a minha existência, porque me dá uma representação permanente e mutável distinta de tudo o que sou.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Forma e substância - um ensaio aristotélico meio kantiano*

Forma: está em algo.
Substância: é algo (mas pode estar em algo).
E matéria, é algo ou está em algo? À primeira vista é algo, é uma matéria - é palatável. A forma é palatável? Não parece, parece a essência.
Mas a matéria está em algo porque algo palatável não é algo definido (nesse caso, porque poderia ser) e nem que pode ser conhecido, é um resto, apenas. Um substrato material. Então, a matéria é a potência da forma que é ato. Mas matéria só é potência em algo, assim como a forma só é ato em algo, porque uma forma não palatável é vento, um susto.

A forma, existe sozinha? Não, é vento, desmancha no ar**. Ou só existe forma? ( essa ideia é muito fenomênica...)
A substância, existe sem forma? Não, aí é matéria. Então a substância parece ser somente o composto... Mas o composto se decompõe, porque é composto. Um substância não deveria nunca ser potência e ato ao mesmo tempo, mas sempre potência querendo ser ato e ato sendo potência. Mas não no mesmo tempo e nem no mesmo espaço. Por isso, se decompondo...

Parece que forma e substância se embricam enquanto existem. Mas uma substância, de fato existe?
A forma é existente em substância, ou seja, é significada pela substância, mais temporalmente que espacialmente.
A substância existente tem forma, é determinada pela forma, se predica da forma.
Portanto, de novo, a forma é [significada], a substância está [agora como forma].

Ontologia: Existe (é) pela forma - individua. (só sujeito)
Epistemologia: Conheço-o pela forma - universaliza. (sujeito-objeto)
"Se você existe pela sua forma (é único materialmente), eu te conheço pela sua forma (abstratamente)"

O concreto e o logos, separados. Ou é concreto ou é logos. A forma é concreto e/ou logos? A substância é concreto e/ou logos? Parece que a substância é concreto e a forma é logos. Mas como conheço a substância?

Não-particular: geral. Abstração? Síntese?
Comum: em muitos. Participação, concretude? Análise?

Em que o não-particular é diferente do comum?

Não-particular é o universal;  particular está de acordo com a teoria da forma imanente. Contra Platão, a forma existe em substâncias particulares.

A forma específica é comum a muitas substâncias particulares. Contradição!!! Platão ou não Platão?
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* James H. Lesher. Sobre forma, substância e universais em Aristóteles: um dilema. In: Sobre a metafísica de Aristóteles: textos selecionados - coordenação de Marco Zingano. Editora Odysseus, São Paulo, 2009.
** Marx disse o inverso: "o que é sólido desmancha no ar" e Aristóteles, o que dirá? Talvez não dirá que a forma desmancha no ar, segundo Zingano.

domingo, 6 de março de 2016

Crítica da Razão Pura - Prefácio da Tradução Portuguesa*

Confidencia Kant que trabalhava em estudo sobre os limites da sensibilidade e da razão, buscando o segredo da metafísica até então não revelado e as bases em que se funda a representação, a nossa relação com o objeto. A crítica trataria apenas da consciência, tanto teórica quanto prática, simplesmente intelectual. E Kant pretendeu colocar a filosofia, que vinha de opiniões antagônicas, na via segura da ciência, como a lógica e a matemática consolidadas desde os gregos e a física se estabelecendo com Newton.
Descartes fundou o cogito a partir do qual se deduziriam todas as verdades, mas causado externamente por Deus. O discurso cartesiano usou do método matemático e da ciência da proporção, que passando por Leibniz e Wolff desembocou na perfeição racionalista. Então Hume afasta a noção de substância para propor um sujeito psicológico que faz associações de representações sensíveis. Saindo da razão suficiente para o hábito humiano a causalidade se reduz ao sujeito psicológico e criticando o eu, a substância e a existência, o ceticismo cria a noção de fenômeno (puro conteúdo da consciência) como objeto formal do conhecimento. Seriam elas, a filosofia dogmática onde cada sistema impõe verdades metafísicas e a filosofia cética que suprime a metafísica. Kant, então, funda a filosofia crítica que visava investigar o que o entendimento e a razão podem conhecer, independentemente da experiência. Se é da natureza humana buscar uma metafísica e conhecer a coisa em si, primeiro precisaremos delimitar o conhecimento puro, a priori, que garanta a universalidade do saber.
Assim como a nova ciência da natureza questiona a natureza, força-a a dar respostas e não permanece em uma atitude passiva de contemplação, Kant, pela revolução copernicana na filosofia pretende também fazer com que possamos nos guiar pela nossa natureza ante o objeto. Além de um saber a posteriori dado pela experiência, haveria um saber a priori que é a estrutura do próprio sujeito que torna possível aquela experiência. O conhecimento, por um lado, é extraído da experiência traduzindo-se em juízos sintéticos (particulares e contingentes) e juízos analíticos que são análises de conceitos que já temos das coisas, da própria noção do sujeito e são a priori. Mas o a priori deve se voltar para o sujeito e as faculdades que possibilitam o conhecimento das coisas. O estudo do modo de conhecer os objetos, que é um modo a priori, é a filosofia transcendental. Nem experiência, nem análise, é conhecimento sintético a priori. A síntese vem da faculdade espontânea do entendimento e da sensibilidade que é intuitiva e permite acesso imediato aos dados. O objeto indeterminado da intuição é o fenômeno, dado como matéria a posteriori e como forma a priori, seja no nível da sensibilidade que fornece a representação, seja nível do entendimento que faz a síntese unificadora das representações do objeto. Então, compreendemos as coisas como aparecem, como fenômenos, mas a coisa não conhecida, que não aparece, podemos apenas pensá-la - é o conceito de númeno.
Sensibilidade. Possui espaço e tempo como formas a priori, não como conceitos, mas como intuições. São as formas originárias da experiência, formas cognitivas para construção da geometria (espaço) e da álgebra (tempo) e fundam os juízos sintéticos a priori. A Estética Transcendental trata do espaço que é realidade empírica [externa] - sem experiência o espaço não é nada; também trata do tempo que é condição interna para o pensar - o sujeito pensa a coisa em si sem espaço. Então, a construção de conceitos matemáticos (e físicos) são a partir das formas a priori da sensibilidade, mas as qualidades sensíveis são dadas pelas sensações.
Entendimento. Na Analítica Transcendental (primeira parte da Lógica Transcendental),  estudam-se os conceitos a priori que se unificam no ato de julgar. As categorias** permitem a síntese dos dados da intuição em um objeto e são formadas por um esquema pela imaginação, que permite associar o inteligível (categoria) ao sensível (fenômeno). As categorias fundam os juízos sintéticos a priori da física, já que todo conhecimento do real é sintético, mas limitados na sensibilidade por um uso imanente e não transcendente. E por isso a coisa em si é incognoscível, porque não temos uma intuição intelectual, embora ela seja suposta com fonte das impressões, que são enquadradas pelas formas a priori, espaço e tempo, da intuição sensível em fenômenos, inteligíveis pelas categorias, tornado-os objetos. A filosofia funda a ciência objetiva, mas a limita ao mundo fenomênico. E a metafísica?
RazãoNa Dialética Transcendental (segunda parte da Lógica Transcendental),  estuda-se o raciocínio, ato próprio da razão que liga os juízos em uma maior unidade possível. Subindo de condição em condição (já que os conhecimentos do entendimento são condicionados) se dirige ao incondicionado ou absoluto e busca-se a unidade total. O conceito próprio da razão é a ideia que não apresenta objeto nenhum nos sentidos e são três: alma, mundo e Deus***. Delas não temos conhecimento objetivo porque são transcendentes.
Se somente há conhecimentos a priori em matemática e física, a metafísica dogmática é impugnada, mas a razão pura admite outra metafísica, uma imanente, idealista temperada com o realismo das coisas em si. É o idealismo transcendental que distingue fenômeno e coisa em si. A coisa em si não é causa do fenômeno, mas condição da idealização dele, enquanto doadora de dados hiléticos. Entretanto, não podemos conhecê-la, já que não temos uma intuição não-sensível e não acessamos o mundo da transcendência. A especulação da razão no uso transcendental diz respeito a três objetos: a liberdade da vontade, a imortalidade da alma e a existência de Deus. A coisa como fenômeno se submete às leis naturais, mas como coisa em si está subordinada a uma causalidade inteligível, a liberdade. Essa causalidade livre parte do homem e não está no campo do conhecimento (aqui salvam-se as ciências positivas), mas na razão prática que vai fundamentar a metafísica moral, e aí se pode falar da realidade da alma e de Deus (aqui salva-se o teísmo tradicional). Se Kant balançou entre idealismo absoluto e realismo com coisas em si, o movimento idealista que se segue traz a tona a intuição intelectual, eliminando a coisa em si e destacando o sujeito. O saber, então, é atribuído ao pensamento absoluto ou razão. Já a limitação neokantiana se volta para a Analítica transcendental compreendida como teoria da ciência. Até Heidegger que procura uma aprioridade fora do sujeito, será uma facticidade que é um funcionalismo, uma exegese do universal.
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* Alexandre Morujão. In: Crítica da Razão Pura - Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010.
** Não são propriedades das coisas como em Aristóteles, mas formas lógicas, funções do entendimento para unificar sujeito e predicado em um juízo, reduzindo as percepções à unidade de um objeto.
*** Ideia de alma: unidade absoluta do sujeito pensante (na metafísica wolffiana objeto da psicologia racional - aqui o cogito nada pode dizer a respeito da natureza da alma que não é objeto da intuição, ele apenas garante a unidade do conhecimento); ideia de mundo: unidade absoluta da experiência externa (na metafísica wolffiana objeto da cosmologia racional - ao falar do mundo cai-se nas antinomias, o uso dogmático da razão leva a uma ilusão transcendental que deve ser combatida por uma atitude crítica, evitando o convite ao ceticismo); ideia de Deus: unidade absoluta de todos os objetos do pensamento (na metafísica wolffiana objeto da teologia racional - nesse caso, as provas da existência de Deus transcendem os limites da experiência, a realidade objetiva do conceito de Deus não pode ser provada nem refutada).

A primeira doutrina da substância: a substância segundo Aristóteles*

O conceito de substância é uma conclusão metafísica e se refere a existência de uma realidade, surgindo como resposta a um problema. Mansion argumenta que a noção nasceu com Aristóteles [1]. O termo como usamos remete ao latim substantia do grego ουσια e também essentia (ειναι). Platão usou o termo associado a ειναι, como realidade, existência, essência, o que é uma coisa. Em oposição ao fluxo das coisas mutáveis, de um vir a ser, Platão buscava o ser, realidade verdadeira e estável, parte constitutiva daquilo que é. Aristóteles muda a abordagem se orientando a uma espécie de seres, um gênero de ser primeiro e mais importante de todos. No Tratado das Categorias, que faz parte do Organon, da Lógica, o Filósofo define a substância na tábua das categorias das coisas: ela é a primeira e a segunda categorias; depois vêm os acidentes: qualidade, quantidade, relação, ação, paixão, lugar, tempo, posição e posse. Mas, deixemos o tratamento dado nesse texto para o fim, devido às controvérsias que suscita.

A realidade da substância e a predicação: sujeito último da atribuição
O conceito de substância vem para resolver a antinomia do Um e do Múltiplo, tentando conciliar Heráclito e Parmênides. Na Metafísica, "o ser é tomado em várias acepções", mas com relação a um único termo: a substância. É o ser no sentido primeiro e fundamental. De quatro maneiras se classificam as acepções do ser: o que convém acidentalmente a um objeto; o que um objeto é em si [2]; o verdadeiro se contrapondo ao falso; a potência e o ato. Existem muitas naturezas contidas no real e elas se referem ao ser por si, segundo as formas da predicação. Mas uma realidade tem muitos predicados que são as categorias - as classes dos predicados das coisas. Então, os predicados dos juízos não se unem no sujeito da mesma maneira: existem distintos modos [3]. Importa das categorias destacar a categoria primeira, a substância, que "é o que não se diz de outro sujeito, mas ao qual se referem os outros predicados". O que se atribui a outro sujeito é acidente. Distinguem-se substância e acidente porque as demonstrações não podem ir ao infinito, há sempre um sujeito último e um predicado último. Para Aristóteles, o ato de atribuir deve ser feito em sentido estrito para ser ciência (p.ex., "Este homem é branco.") nas quais o predicado é referido a seu substrato natural. Uma atribuição por acidente seria: "Esta coisa branca é um homem." - aqui acontece ao homem ser branco. No primeiro caso, a atribuição é essencial (τι εστι), p.ex., "Sócrates é homem" exprime o que o sujeito é, significa a substância. Já os acidentes são ditos de um sujeito diferente deles, p.ex., "Sócrates é branco" é uma qualidade que afeta Sócrates, os acidentes determinam o sujeito. Mas a substância não é um termo impredicável porque ela é a primeira classe de predicados. Na verdade, a ουσια é uma realidade (nela mesma, nem sujeito nem objeto) e não um termo lógico. Ela é em si, ao se atribuir a outro é o τι εστι, a categoria da essência, o quid est de um sujeito.

Substância separada e subsistente
Mas, substância e essência são termos sinônimos? Na Metafísica, Livro Ζ, Aristóteles define a substância como ser em sentido absoluto, fundamental. Observando as teorias da substância dos filósofos anteriores, ele extrai quatro sentidos principais, dois dos quais ele não considera substância: o universal (καθολου) e gênero (γενος) - porque atribuídos a vários. Um terceiro sentido é o sujeito (υποκειμενον) que parece ser a substância. Porém, dizer que substância é o que não se diz de um sujeito pode aproximá-la da matéria, que seria o verdadeiro sujeito da atribuição, um substrato material indeterminado. Entretanto, pelo Livro Δ, faltam à matéria duas características para ser substância: τοδε τι e χωριστον. Χωριστον é o que não pode existir separado, p.ex., a matéria [que precisa da forma] e as categorias secundárias; χωριστον remete ao composto matéria e forma. Τοδε τι é algo determinado, essa coisa (não necessariamente um indivíduo) e por isso a matéria não é algo determinado, ou o é em potência; enfim, τοδε τι significa subsistência e convém somente à primeira categoria. Há uma nova definição de substância: um ser determinado, capaz de existir só. A primeira definição levou a um impasse associando a substância primeira à matéria, mas υποκειμενον só é substância se for determinada, e o substrato material não pode ser visto como sujeito último da atribuição, ele o é apenas potencialmente, não determinadamente.

Quididade
Por outro lado, o sujeito último da atribuição é uma essência que é atribuída por identidade. Trataremos então do quarto sentido analisado por Aristóteles, conforme Mansion: a quididade (το τι ην ειναι). Só a substância tem uma verdadeira quididade, os acidentes a tem em sentido secundário. Para Platão, a essência das coisas sensíveis estava na Ideia, ou seja, fora das coisas. Aristóteles discordou deste ponto porque assim a essência das coisas não era imanente a elas e não explicaria a realidade delas. Para o Estagirita deveria haver identidade entre a substância e sua essência e em sentido absoluto, já que nos acidentes não há. P.ex., em "Este homem é branco" o ser do branco não é homem e a quididade do branco é a brancura. E mais, a definição de um acidente implica sempre a substância, por que ele só em si por outro. Assim, a doutrina da substância a define a partir de quatro características que se imbricam: o sujeito, o ser separado, o determinado e a essência, embora Aristóteles destaque mais a primeira definição de sujeito último de atribuição, conforme defende Mansion.

Tratado das Categorias
Em 26/06/2016: trecho a seguir alterado, retira-se o tachado e acrescenta-se o parágrafo seguinte.
Por fim, Mansion, trata de um dilema que contesta a autenticidade do Tratado das Categorias, abordando uma confusão envolvendo os conceitos de substancialidade e individualidade naquela obra. Ali, há uma substância primeira individual, que não é nem aquilo que é afirmado de um sujeito nem aquilo que está em um sujeito (tal cavalo, tal homem). Há também a substância segunda que seria as espécies, o universal, que pode ser dito de um sujeito. Já os acidentes são aquilo que estão em um sujeito. P.ex., acidente individual: "Essa brancura que está no corpo"; acidente universal: "A ciência que está na alma". Haveria, nesse tratado, uma qualificação de concreto e abstrato se confundido com a diferenciação de substância (não se diz de um sujeito) e acidente (está em um sujeito), confusão que dificilmente poderia ser atribuída a Aristóteles.
Sobre o Tratado das Categorias, Mansion considera um "ensaio de principiante" (sendo de Aristóteles, mas ela acena para o ensaio ser de um discípulo dele). Clarifiquemos: à luz da Metafísica, substância é o sujeito último da atribuição que podemos qualificar pela asserção: "o que não se diz de um sujeito". Porém, nas Categorias, a substância primeira é "o que não se diz de um sujeito" mas também "o que não está em um sujeito" e a substância segunda é "o que pode se dizer de um sujeito" mas também "o que não está em um sujeito", do que se conclui que o traço fundamental de substância é o de "não estar em um sujeito". Mansion considera essa definição de substância mais vaga, em detrimento à da Metafísica e que seria usada nas Categorias em oposição aos acidentes que estão em um sujeito. Por outro lado, a qualificação "não se diz de um sujeito" extraída da Metafísica teria dois sentidos a serem aplicados em contextos diferentes: 1) no plano da lógica, "não se dizer de um sujeito" caracteriza o particular em oposição ao universal que se diz de um sujeito; 2) ontologicamente, não se dizer de um sujeito é o traço que diferencia substância de acidente. Ou seja, a substancialidade (ponto 2) seria em algum contexto individualidade (ponto 1) e, "tal confusão", não poderia ser atribuída a Aristóteles [4]. Além disso, Mansion também mostra certa curiosidade de algumas colocações da "doutrina da substância" no Tratado das Categorias: 1) os diferentes gêneros de ser, nas Categorias, seriam termos sem ligação, enquanto na Metafísica há sempre um juízo ligado à substância, uma atribuição e 2) haveriam dois tipos (graus) de ser: substância primeira e segunda, distinção só presente nas Categorias.
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* MANSION, S. A primeira doutrina da substância: a substância segundo Aristóteles – in Sobre a Metafísica de Aristóteles: textos selecionados - coordenação de Marco Zingano – São Paulo: Editora Odysseus, 2009.
[1] Aparece na MetafísicaCategorias e Segundos Analíticos.
[2] Possui tal natureza, se divide conforme categorias.
[3] Sócrates é homem; Sócrates é branco; Sócrates está em Atenas.
[4] Individualidade: "μή εν υποκειμενου ειναι"; substancialidade: "μή καθ' υποκειμένου λέγεσθαι".

sexta-feira, 4 de março de 2016

Dá para desatar o nó do mundo?*

De acordo com Schopenhauer, o “nó do mundo” seria o problema mente/corpo (que é estudado pela Filosofia da Mente).  Mas, a mente é distinta do corpo? O dualismo afirma que sim: os estados mentais [conscientes] são distintos dos estados físicos; o materialismo aproxima mente e cérebro reduzindo os estados mentais a estados materiais. Os estados mentais são sentimentos, crenças, sensações e emoções conscientes; os estados materiais os processos físicos cerebrais, o comportamento, a condição física do corpo e órgãos.
Para os dualistas, se somos conscientes dos estados mentais, eles não parecem ser “meramente” estados cerebrais ou físicos. Isso se dá mais pelo conhecimento que temos dos estados materiais e de como eles deveriam ser do que de como seriam realmente os estados não materiais. Historicamente, o dualismo foi pensado por Descartes como a divisão do homem em duas substâncias separadas: a mente com seus estados mentais e o corpo com seus estados físicos (assim parece pensar Foster**). Nessa linha, há uma versão de dualismo mais recente (de Frank Jackson e David Chalmers) que defende que há somente uma substância, mas com um atributo (ou propriedade) mental, espiritual e outro material ou físico (na versão mais antiga, existiria a possibilidade de sobrevivência após a morte do corpo).
Não há consenso no dualismo, também, no que se refere a possíveis relações causais entre a mente e o corpo. Para o senso comum haveria o interacionismo entre mente e corpo: causação de estados mentais por estados materiais e vice-versa. Por exemplo, sinto frio (corpo) e penso em vestir uma blusa (mente); acredito que vai chover (mente) e apanho um guarda-chuva (corpo). Aqui permanece a questão de explicar como coisas materiais interagem com coisas imateriais. Discordando do senso comum, para o epifenomenalismo (versão mais popular de dualismo atualmente), há apenas uma direção de causação, do material para o mental, já que, de outra forma, seria difícil explicar estados materiais não somente a partir de estados materiais. Há ainda o paralelismo, que defende que não há relação causal entre os estados, mas eles ocorrem em paralelo sendo preestabelecidos ou harmonizados por Deus.
Já o materialismo reduz mente e estados mentais ao corpo e seus estados materiais (se é que haveria mente...). O behaviorismo lógico da metade do século passado defendeu que os estados mentais seriam “apenas” comportamentos ou disposições corporais (p.ex. estar com dor é tomar remédio). Entretanto, parece muito implausível negar a existência de estados mentais conscientes ou que eles não influam no comportamento. Para a teoria da identidade, os processos mentais são processos neurofisiológicos do cérebro. Independentemente das dificuldades de caracterizar estados mentais (que seria o caso do behaviorismo lógico que chamaria de vulgar o conteúdo dos conceitos de estados mentais) ou mesmo experimentá-los, independentemente da noção de cérebro, a identidade dos estados é uma descoberta empírica. Mas como ficam os conteúdos dos conceitos dos estados mentais, se não envolvem estados cerebrais? Há um conceito independente da coisa...
Uma terceira visão materialista é o funcionalismo que, como a teoria da identidade, trata o conteúdo ou natureza dos estados mentais de forma neutra em relação a dualismo ou materialismo, entretanto acrescentando que são certos estados cerebrais que realizam os estados mentais. Para ela os estados mentais são estados funcionais que tem papeis causais. Aqui tudo é causal: a) uma experiência sensorial externa produz uma entrada que gera um estado mental, b) que interage com outros estados mentais, c) gerando uma saída comportamental externa. Não importa caracterizar o estado mental, mas verificar o seu papel. As teorias postas, optando pela última como sendo a mais simples, restaria explicar porque os estados neurofisiológicos parecem ser estados mentais [conscientes], por um lado sendo intencionais, como estados mentais sobre ou representando algo, como a mente compreende o mundo; por outro lado, os seus aspectos qualitativos, um caráter experiencial distintivo, um sentimento diferente do material.
Estados mentais intencionais. Fodor*** aproxima os estados mentais aos estados funcionais de um computador, mas Searle argumenta que o computador manipula símbolos e jamais daria conta da intencionalidade dos estados mentais. O pensamento humano teria um significado intrínseco e o computador manipularia símbolos sem significado, enquanto Fodor insiste na possibilidade do computador ter pensamentos com conteúdo.
Consciência qualitativa. E o caráter qualitativo da experiência individual? Seria possível conhecê-lo pela descrição material ou funcional de seus estados, seria possível descrever esse caráter de algum outro animal? Transformar estados mentais em estados físicos é negar esse caráter. Por outro lado, poderíamos tentar resolver as dificuldades do dualismo, buscando uma teoria de leis psicofísicas explicando a relação entre mente e corpo.
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* Mentes e Corpos. In: FILOSOFIA – Textos fundamentais comentados. BONJOUR, L e BAKER, A. Universidade de Washington.
** John Foster (1941-) é professor da Universidade de Oxford. Ele tem escrito vastamente sobre metafísica e epistemologia, assim como sobre filosofia da religião e filosofia da mente.
*** Jerry Alan Fodor (n. em 1935) é um filósofo e cientista cognitivo americano. In: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jerry_Fodor.