Apresenta esferas de dataficação da vida e suas relações com os bios aristotélico e a comunicação, área do autor[i]
Lemos mostra que a digitalização, que se inicia na segunda metade do século XX, é atualmente absorvida pela dataficação, ou seja, atividades como criar um website ou transformar um livro impresso em e-book estão, hoje, inseridas no Big Data e Machine Learning. Conforme ele diz: “é um processo de tradução da vida em dados digitais rastreáveis, quantificáveis, analisáveis, performativos”, que permite interferir nos mais diversos domínios.
Baseada no culto aos números, a dataficação
é impulsionada pelas redes sociais, computação em nuvem e os algoritmos, que
permitem a projeção de cenários, indo além de mera conversão do analógico em
digital. Trata-se de coletar, processar e tratar dados para realizar predições,
como, por exemplo, quando aquele livro digitalizado é lido, tem-se a geração de
dados sobre velocidade de leitura, destaque de citações, etc., no que Lemos caracteriza
de performatividade, isto é, com base no comportamento fazem-se inferências
e se geram recomendações. Então, os modelos algorítmicos surgem do processo
inicial de digitalização dos dados, seguido por sua performatividade.
Dataficação da vida social na sociedade de
plataformas. É pela fusão da dataficação com
plataformas que possuem infraestrutura para disponibilização de aplicativos,
tratamento do fluxo de dados e processamento algorítmico de inteligência de
dados que entramos na fase do capitalismo de dados ou de vigilância. A vida
social dataficada tem seus dados rastreados de forma generalizada se expandindo em todas as áreas, permitindo monitoramento de redes sociais, vigilância policial,
entre outras, centralizados na operação de cinco megaplataformas.
Essa plataformização da sociedade
se expressa na cultura dos aplicativos e visa, através de soluções inovadoras,
resolver qualquer problema cotidiano[ii] pelo engajamento de seus
usuários e integração com dispositivos como telefones, carros e
eletrodomésticos.
Dataficação da natureza.
Entretanto, para serem produzidos e operarem, dispositivos e infraestruturas
de datacenters requerem da natureza minério e energia agravando a crise climática
do Antropoceno por uma extração climática. É um ponto que Heidegger já havia levantado
sobre a técnica moderna de desafiar a natureza exigindo energia de ser extraída
e armazenada. Lemos fala da “Ge-stell”, esse dispositivo que a ciência usa para
tomar a natureza como reservatório e oriundo do paradigma de ciência moderna do
século XVII, quando o homem se vê mestre da natureza, isso se constituindo destino,
mas perigo, já que acompanhado de uma intervenção livre da natureza[iii].
Com a dataficação da vida, essa provocação
passa à tradução do mundo em dados digitais e mostrando que a computação de nuvem
traz consequências físicas na retirada de matéria e energia, além da produção
de lixo eletrônico[iv],
com implicações éticas e políticas planetárias.
Dataficação do conhecimento.
Depois de tratar das relações sociais e naturais, Lemos traz a dataficação como
produção de conhecimento na medida que é uma tradução digital do mundo e que permite
simular objetos e ações pela inteligência artificial (IA). É uma nova maneira
de gerir a vida do planeta de forma hegemônica que indica uma transparência perfeita.
Com o espalhamento em todas as áreas da ciência
pelo avanço de Big Data e IA, a dataficação marca uma virada epistemológica na
leitura do mundo, mas que vê a análise de máquina neutra e eficiente. Isso porque
os dados são coletados como se fossem brutos e os algoritmos como racionais,
levando a preocupações sobre métodos e procedimentos. O culto aos algoritmos
cria uma algocracia epistocrática (um poder tecnocrático na mão de
especialistas) que, edificada na suposta neutralidade algorítmica, permitiria
ler o grande livro da natureza, conforme Newton postulou no XVII.
Bios, comunicação e dataficação da vida.
Bem, aqui Lemos correlaciona a dataficação com os bios propostos por Aristóteles:
vida contemplativa, vida prazerosa e vida política, conjugado com o quarto bios
proposto por Muniz Sodré de vida midiatizada associada à tecnologia, que estaria
relacionado ao quarto bios aristotélico do comércio e, agora, associado ao
capital. Para Sodré, informa Lemos, com as tecnologias virtuais há uma nova
subjetividade associada a esse bios na esfera dos negócios e por meio da
técnica digital. Segundo Lemos, o motor desse quarto bios é a dataficação da
vida que corresponderia a uma midiatização profunda.
Entretanto, enfatiza Lemos, a dataficação
perpassa todos os bios, mas pelo modo da comunicação[v] e não se confundindo com a
mídia. Ele continua argumentando que a comunicação passa pelo sujeito humano,
sua existência e com uma característica eudaimônica e de mediação, de
construção de subjetividade e pelo diálogo. Ou seja, se não é um bios, constitui
os quatro bios na dataficação.
Por fim, Lemos alerta que novas pesquisas
devem procurar desvelar os processos de dataficação da vida que, para ele, se
destaca na comunicação, já que ela é transversal aos bios aristotélicos e não
só ao midiático. Isso se apercebe pelo marco da dataficação na cultura digital que, na trilha da digitalização, se dá nas áreas do conhecimento e sociabilidade,
sem deixar de fora a demanda por recursos naturais.
[i] Resenha de Dataficação da vida,
acesso: http://dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2021.2.39638, em 22/10/2021.
André Lemos, Ufba, Salvador, BA, 2021.
[ii] Não exaustivamente, por meio de Google
e Apple temos, entre outros: Waze, Uber, AirBnb, iFood, Zoom, Facebook,
Twitter, WhatsApp, Tinder, LinkedIn, YouTube, Instagram, Spotify, Netflix, Google
Home...
[iii] Aqui https://www.reflexoesdofilosofo.blog.br/2021/04/breve-olhar-de-heidegger-sobre-tecnica.html,
aspectos de Heidegger.
[iv] Lemos traz números alguns dos
quais destacamos: i) a produção de dispositivos e o uso da internet é
responsável por 3,7% das emissões de efeito estufa; ii) para movimentar a moeda
virtual BitCoin, são necessários 22 milhões de toneladas de emissões de CO2 por
ano, o que equivale a toda a pegada de carbono da Jordânia; iii) a energia
consumida pelos datacenters do Facebook, só para uso dos brasileiros, equivale
ao consumo de energia de mais de 15 mil residências no país pelo mesmo período;
iv) para a produção e a veiculação de Fake News no YouTube sobre o vazamento de
óleo no Nordeste brasileiro foram emitidos 1.42 MtCO2e (equivalentes ao
derramamento de 3,30 barris de petróleo).
[v] Bios theoretikos: conhecimento pelos
dados, bios apolautikos: subjetividades por meio das redes sociais e usos de
aplicativos, bios politikos: circulação da palavra nas redes sociais, bios
midiático: plataformização da sociedade como forma de uma midiatização
estrutural.