Crítica de Dreyfus à abordagem representacional usada pela Inteligência Artificial em seu surgimento (década de 60). Baseia-se na filosofia heideggeriana que postula um tipo de existência não representacional do ser-no-mundo, que pode ensejar outra IA.
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Com
o pano de fundo de inserir Dreyfus na tradição fenomenológica, o artigo de
Gomes mostra como ele se utilizou de Heidegger para criticar a abordagem representacional
dos engenheiros do MIT no desenvolvimento da IA e também uma crítica à herança
cartesiana dualista, combatida por Heidegger pela noção de ser-no-mundo.
Heidegger e a negação
da representação. Gomes mostra como Dreyfus foi descartado
no laboratório de IA do MIT sob a direção de Marvin Minsky e depois retomado,
20 anos depois, em 1986, por Patrick Winston. No cerne do problema está a
abordagem representacional dos engenheiros e um projeto de mapear todas as
“características” do senso comum deixando de fora o próprio mundo. Então, um
robô que se orientasse pelo mundo seria mais bem sucedido.
Conforme
mostra Gomes, tendo como base a filosofia racionalista[ii], a
tese norteadora da IA era aproximar a cognição (cognitivismo) da computação a
partir da ideia de que a “percepção funciona como uma síntese de dados isolados
com predicados previamente estabelecidos que, em princípio, podem ser
transpostos para um sistema artificial como um computador” (grifo nosso). Entretanto,
Dreyfus se utiliza de Heidegger para conceituar uma intencionalidade ante
predicativa que entrelaça o ser com o mundo na significação e não uma
consciência que se isola pela via da representação. Dreyfus percebe que “os pesquisadores
estavam tendo dificuldades com o problema de representar o significado e a
relevância, um problema que Heidegger viu como implícito no entendimento de
Descartes do mundo como um conjunto de fatos sem sentido nos quais a mente
faria a valoração posteriormente.”.
Ao
tentar resolver o problema do conhecimento de senso comum [frame problem],
Minsky buscou armazenar a enormidade de fatos do mundo sem se dar conta que
mais valia a totalidade existencial. Ao limitar robôs a “micromundos”, de forma
a reduzir as possibilidades de análise, a base empírica de explicação do Dasein
ficava mais distante. Porém, duas décadas depois, Winston já se aproximava da noção
existencialista e os robôs de Rodney Brooks possuíam sensores que aprendiam com
o ambiente trazendo a questão corporal da cognição.
Pano de fundo. Diferentemente
da abordagem cognitivista de armazenamento da predicação dos objetos (função),
o Dasein é significado em cada contexto (ação). O corpo funciona de forma
irrefletida, não precisa representar para si, e há casos em que o conteúdo
intencional da consciência está voltado a outro Dasein (andar, passar a marcha
do carro, eu faço isso, mas penso naquilo, etc.). A cognição tem um aspecto não
representacional que é não predicável, ou seja, citando Dreyfus, “todo modo de
lidar com o mundo acontece em um pano de fundo que Heidegger chama de ser-no-mundo,
o qual não envolve nenhum tipo de representação”. Antes do cogito cartesiano
(da intencionalidade de ato), há o ser-no-mundo heideggeriano, não
representacional e mais básico onde ainda não há valor predicativo nem estado
de consciência.
O modelo neurodinâmico
de Freeman[iii].
O modelo de Freeman é o contraponto encontrado por Dreyfus para se opor ao
representacionismo cognitivista. Em suas pesquisas com coelhos, Freeman mostra
que os estímulos do ambiente atuam sugestionando o comportamento e criando uma
significação que se altera com o tempo. A soma das experiências cria reações
diversas a estímulos semelhantes ressaltando o papel valorativo do organismo na
apreensão do ambiente, algo que não cabe em um modelo interno representacional
do ambiente. O computador tem um modelo prefixado que não aprende com novas
informações, suas representações não dão conta do dinamismo e historicidade do
comportamento, que sempre se reconfigura globalmente a partir de novas
percepções do mundo. Programar assim a inteligência humana ainda requer um agente
corporificado capaz de ser-no-mundo, de acordo com Dreyfus.
A esfera ontológica do
Dasein[iv].
A ciência usa uma perspectiva ôntica, segundo Heidegger, para examinar os
objetos e sua composição física deixando de fora a ontologia, uma análise
fenomenológica do objeto. Mais do que um substrato material, o aspecto
ontológico do ser do Dasein traz o pano de fundo não representacional, e só
assim se torna inteligível para nós, mesmo antes do acesso à consciência. Para Heidegger
a redução da análise à res extensa
exclui a significação.
Da
mesma forma, como mostra Dreyfus, o cognitivismo que armazena regras e fatos
visando formalizar a representação deixa de fora a significância e não atinge o
que é relevante em cada situação. Como dito sobre os micromundos, em contextos
menores e dadas suas particularidades o cognitivismo funciona, como em carros auto
dirigíveis. Porém, para o comportamento humano há um background não
representacional de um ser-no-mundo que é inesgotável e dialético, difícil de
ser artificializado. O cognitivismo, em uma visão heideggeriana atualizou a
ontologia cartesiana em uma esfera ôntica que não é suficiente. Mas é a ontologia
do Dasein que desvela o fenômeno e a perspectiva não representacional.
* * * * *
A
res extensa é um recorte material do
real que não abarca o ser-no-mundo e, dessa maneira, uma representação do exterior
não traz consigo o aspecto da intencionalidade ante predicativa. Assim, a
ontologia do Dasein mostra que o acúmulo desenfreado de dados pode não conduzir
ao comportamento inteligente, como esperado pela IA.
[i]
HUBERT DREYFUS E O ANTICARTESIANISMO HEIDEGGERIANO. Rodrigo Benevides Barbosa
Gomes. Disponível em: http://revistas.marilia.unesp.br/index.php/kinesis/article/view/8070.
Acessado em 08 de junho de 2020. O Ser-aí ou o Ser-aí-no-mundo e Existência é a
tradução portuguesa do termo alemão Dasein,
muito usado no contexto filosófico como sinônimo para ser existente. Conforme https://pt.wikipedia.org/wiki/Ser-a%C3%AD,
acessado em 11 de junho de 2020.
[ii] Segundo Dreyfus, embora os
estudantes de IA dissessem resolver questões filosóficas seculares, seus sistemas
simbólicos físicos se baseavam nas representações mentais de Descartes, na tese
de Kant de que conceitos são regras, etc.
[iii] A abordagem neurodinâmica de
Freeman assemelha-se aos princípios da Gestalttheorie
que recusava a chamada hipótese de constância, na qual a resposta aos estímulos
funcionava como um padrão pré-estabelecido que não muda a partir dos diferentes
contextos e ações. Citando Freeman: “Não há representações fixadas, como há em
computadores; há apenas significações”. Gestalt é uma doutrina que defende que,
para se compreender as partes, é preciso, antes, compreender o todo. Conforme
Wikipédia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gestalt,
acessado em 10 de junho de 2020.
[iv] Em resumo: ôntico diz respeito aos entes em sua existência própria; ontológico diz respeito aos entes tomados como objetos de conhecimento. Como existem diferentes esferas ou regiões ônticas, existirão ontologias regionais que se ocupam com cada uma delas. Em ÔNTICO E ONTOLÓGICO - Filosofia, Ética e Cidadania, https://www.passeidireto.com/arquivo/4412471/ontico-e-ontologico, acessado em 11 de junho de 2020.
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