segunda-feira, 25 de maio de 2020

O MITO DE DESCARTES[i]

Crítica de uma teoria dita oficial acerca da mente e seu lugar na natureza.

A Doutrina Oficial. Oriunda de Descartes, versa que somos um corpo que morre após a morte e uma mente que tende a subsistir. Os corpos são visíveis e sujeitos às leis mecânicas; as mentes são privadas. Segundo a doutrina oficial, pela consciência e introspecção temos conhecimento indubitável de boa parte dos episódios de nossa vida privada. Porém, a antítese exterior / interior é uma metáfora, haja visto a dificuldade de estímulos longínquos causarem respostas mentais[ii]. As transições efetivas entre os episódios da vida pública e privada não podem ser efetivadas nem por introspecção nem por experimentos e, assim, flutuam entre psicologia e fisiologia. Na base dessa representação, há uma existência física composta de matéria e uma existência mental temporal que ocorre na consciência. Os objetos materiais se relacionam mecanicamente no espaço, ao passo que a mente é seu próprio lugar, como um Robinson Crusoé fantasma. Pela doutrina oficial, ter-se-ia conhecimento indubitável do que se passa na mente, embora Freud tenha mostrado que existem estados mentais escondidos de nós[iii]. Além desses dados imediatos da consciência, haveria uma espécie de percepção interior que possibilitaria a observação da vida interior sem os enganos da percepção exterior. Já sobre outras mentes é possível tirar apenas inferências problemáticas, restando uma solidão absoluta para a alma e sendo o encontro um privilégio apenas corporal.

Corolário da Doutrina. Sabemos fazer comentários sobre mentes e comportamento alheios, mesmo que eventualmente incorretos e por isso filósofos construíram teorias sobre a natureza e o lugar das mentes. Mesmo sem ter certeza de qualquer laivo de verdade.

O Absurdo da Doutrina Oficial. Ryle classifica a teoria oficial como o dogma do “Fantasma na Máquina”. Ela é um erro em princípio, um category-mistake, um mito do filósofo. Erro de categoria demonstrando inabilidade no uso de conceitos, exemplo: em um jogo de críquete, o “espírito de equipe” é diferente de arremessar ou bater na bola, mas não é uma terceira coisa e sim o entusiasmo através do qual cada tarefa é realizada. Já o erro de categoria teórico não é um erro de conceito, mas situar o conceito em um tipo lógico a que ele não pertence. É daí que deriva a representação ryleana de uma pessoa como um fantasma escondido em uma máquina. Daí surgem duas unidades complexas distintas: o corpo humano e a mente humana.

A Origem do Erro de Categoria. Descartes sancionou a teoria de Galileu sobre a mecânica de todos os corpos, porém, afetado pela religião e moralidade, não concordou que a mente estaria aí inclusa, como o fez Hobbes[iv]. Então, haveria um conjunto de leis para descrever o funcionamento não espacial das mentes e outro para a mecânica dos corpos. As mentes seriam “coisas” diferente dos corpos e os processos mentes causas e efeitos não mecânicos, ou seja, uma hipótese para-mecânica. A dificuldade lógica era explicar a interação, por exemplo, de um processo mental (um desejo) causar movimentos espaciais (movimentos da língua). Aderindo à gramática da mecânica, o que se referia à mente era a negação do corpo, um vocabulário invertido: não existe no espaço, não é visto publicamente etc. O corpo humano era um motor governado por um motor interno invisível, inaudível, com leis desconhecidas, uma máquina fantasma! Ademais, surge o problema do livre-arbítrio. Como o mundo físico é determinista, a mente, como categoria semelhante se guiaria por um sistema determinista governado por leis não-mecânicas, ou seja, sujeitas ao destino prefixado. Eis o erro: se sabemos a diferença entre uma expressão racional e uma não racional, não pode dizer dos outros pois não conhecemos as causas imateriais das expressões. Nem a diferença entre um homem e um robô. De acordo com a teoria, não sabemos como o comportamento externo está relacionado com as capacidades e processos mentais, nem comparar nossas ações com as dos outros. A hipótese causal não contribui para a aplicação dos conceitos mentais. Ao invés de buscar por critérios de comportamento, Descartes salientou que não era um problema de mecânica, mas de uma contrapartida da mecânica. O dogma do Fantasma da Máquina assume que corpos e mentes pertencem à mesma categoria, permitindo proposições entre eles. Como no [absurdo] exemplo de Dickens: “Ela chegou em casa num mar de lágrimas e numa liteira[v].”, não faz sentido conjugar processos mentais com processos físicos, pois não se trata da mesma espécie de coisa.

Consequências do Erro. Mostrar que mente e matéria não são do mesmo tipo lógico, assim como “ela chegou em casa num mar de lágrimas” e “ela chegou em casa numa liteira” também não o são, significa acabar com a crença da oposição entre mente e matéria. Significa também que não é legítimo reduzir estados mentais a estados físicos e que Idealismo e Materialismo são respostas a uma pergunta inadequada. Nem que a existência de corpos e mentes indicam espécies diferentes de existência.

Nota Histórica. Por fim, duas notas:

1.      O mito não se deve exclusivamente a Descartes – ele estava de fato reelaborando doutrinas teológicas já predominantes como a Predestinação se transformando em Determinação.

2.      A utilização de mitos pode contribuir positivamente, como a substituição do mito para-político (analogia da mente com leis, obediência, rebeldia, etc.) pelo para-mecânico.



[i] O MITO DE DESCARTES. Adaptação de Osvaldo Pessoa Jr. São Paulo, 2011. Disponível em http://opessoa.fflch.usp.br/sites/opessoa.fflch.usp.br/files/Ryle-Mito-Descartes-2.pdf, acessado em 20 de maio de 2020.

[ii] “(...) encontramos teóricos especulando sobre o modo segundo o qual os estímulos, cujas fontes físicas se encontram a metros ou quilômetros de distância da pele da pessoa, podem dar origem a respostas mentais dentro de seu crânio (...)”

[iii] O inconsciente etc.

[iv] Lembrar Hobbes, conforme https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Hobbes, acesso em 25 de maio de 2020. “Em seus livros "Os elementos da lei" e "Leviatã", Hobbes torna evidente o uso da física e suas leis mecânicas como base para explicar fenômenos psíquicos e físicos, chegando até mesmo a comparar o homem com uma máquina, além de fazer analogia à mecânica do homem e à mecânica do relógio: "O que é o coração, senão uma mola; os nervos, senão outras tantas cordas; e as juntas senão outras tantas rodas; imprimindo movimento ao corpo inteiro, tal como foi projetado pelo Artífice?" Porém é apenas em seu livro "De Corpore" que Thomas Hobbes demonstra-nos de forma total e estruturada o conhecimento mecânico da natureza, conhecimento este que se mostra consolidado apenas em "Tractatus opticus".”

[v] Uma liteira é uma cadeira portátil, aberta ou fechada, suportada por duas varas laterais. Vide a imagem https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/3/3d/Museu_Nacional_dos_Coches_%285%29_-_Mar_2010.jpg/220px-Museu_Nacional_dos_Coches_%285%29_-_Mar_2010.jpg, acessada em 25 de maio de 2020.

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