A
teoria da representação política de Hobbes surge para legitimar a submissão ao
estado. Na transição do feudalismo para o modernismo, as cidades passam do
campo de disputa entre senhores para se unificarem em torno de um poder único.
É o surgimento da soberania[1] capaz de unir o diverso, sejam territórios difusos,
sejam poderes concorrentes (escolas, famílias, exército). Soberania que agrega o empírico e é o fundamento da república. O poder soberano instituído descola o poder do
ocupante do poder, da pessoa física: se o corpo físico morre, o lugar é
transmitido para um herdeiro ou eleito. Mas qual a legitimidade de tal poder?
O
conceito de representação de Hobbes[2] vem do teatro para vigorar no sistema
político até os nossos dias. No teatro, o ator representa uma peça escrita pelo
autor. A pessoa do ator é um personagem (persona, per: através, sona: sons – o
som passa através da máscara), já que as palavras não lhe pertencem, pois são
produzidas pelo autor. Porém, se o autor é autoridade no que tange a suas
palavras e ações, ele transfere seus direitos, seu mandato, para o ator que,
então, o representa. Hobbes diferencia a pessoa em duas: pessoa natural é
aquela que representa a si mesma; pessoal artificial representa outro. Mas, se
a pessoa natural é uma, como pensar a unidade da pessoa artificial quando se
trata de uma multidão?
Havendo
uma multiplicidade de autoridades, elas só se unificam a partir do
consentimento de cada uma; quando as diferenças são eliminadas surge a unidade
do representante – o Leviatã. Porém, tal unificação depende da transferência da
autoridade através do pacto ou contrato. Assim, o representado reconhece suas
falas no representante, legitimando-o. A multidão se torna uma, se torna povo e
é instituída como autora. Transferindo seu poder e autoridade para o
representante, aparece o Leviatã que produz o povo, o representado.
Diferentemente do teatro, onde o ator deve agir de acordo com o roteiro do autor,
na criação do Leviatã, quando a multidão se transforma em povo, esse se vê
ausente do palco da política. O Leviatã, deus mortal criado pelo homem, se
separa do povo e, transcendente, se separa também do social. Porém, a caracterização política de
Espinosa difere dessa. Vejamos.
* * * *
Ao
ser questionado sobre a diferença de sua abordagem em relação à hobbesiana, Espinosa
responde, na carta 50[3], que ele mantem o direito natural mostrando que, na transformação
da multidão em povo, há algo que escapa. Para ele, há um instransferível e
irrepresentado, um algo que passa do natural ao civil. O próprio Hobbes tocou
nesse ponto ao colocar que há um dever de obediência, que o soberano pode
prender, mas não pode pedir para não fugir, nem que o ferido use medicamento
para se curar. Se, para Hobbes, esse poder de resistência foi tratado como um resquício,
para Espinosa esse é um limite interno que torna impossível a multidão se
transformar em povo. Há, para Hobbes, uma guerra de todos contra todos no
estado de natureza mas, com a insurgência da pessoa artificial do Leviatã,
aparece a possibilidade da paz, ou seja, o poder institui a paz. Se no estado
de natureza cada um tem todo o direito do mundo, passando para o estado civil
há a transferência de poderes para o governante. Entretanto, Espinosa argumenta
que há um pouco do direito de natureza que permanece no estado civil, já que o
homem não pode renunciar a ser humano. Esse direito natural teria sido relegado por Hobbes, operando na sua teoria política como um
corte radical para o estado civil.
A
oposição de Espinosa se dá a partir do argumento ontológico: “Reconhecer-me
representado em outro é destruir-me”. Sabemos, pela Ética[4], que só há uma substância e somos seus modos finitos, assim
como tudo o mais que se segue na natureza. Portanto, a potência real é a potência
substancial expressa por cada modificação finita como potência finitizada. Possuímos
um conatus[5]: o esforço de preservação do
ser, resistência, ação; e o desejo de buscar o que nos é útil a cada momento,
desejo como consciência desse conatus.
Assim como a essência de Deus é a sua potência, a essência do homem é esse
desejo, potência determinada da potência divina. Então, como poderia haver a
transferência completa de cada um para o soberano? Seria a destruição do ser. Se
a ontologia torna impossível, Espinosa argumenta que há transferência para construção
de um poder comum, mas não completa.
O
homem é guiado por esse desejo e há homens que lutam pela servidão assim como
homens que lutam pela liberdade. O
desejo humano produz revolução e campo de concentração. Porém, essa dinâmica de
forças colocada por Espinosa refuta o totalitarismo, já que não pode haver poder total, porque há algo que deve permanecer em cada um sem o qual esse um seria destruído. O representante tem que lutar
por cada ato a todo instante, não há um contrato estabelecido. Se, para Hobbes, a
política é estática, para Espinosa ela é dinâmica; se o tirano quer exorcizar o
conflito, a leitura espinosana da política revela o conflito pelo poder e a
vitalidade da vida social. O poder soberano não está dado, não é um lugar a ser
ocupado, lugar descolado, poder transcendente. O poder de mando é visto por
Espinosa como imperium[7] e pertencente à multidão. Para Hobbes, o imperium é o
representante, para Espinosa o imperirum é o representado. Se há resistência do
poder natural no civil, sua legitimidade se dá pela potência: se tenho força,
tenho que peitar.