domingo, 16 de abril de 2017

Ontogênese e sobrevivência: um continuum*

Onto: ser, gênese: geração. Então: geração do ser e sobrevivência. Ou seja, o ser é gerado, de algum modo e em algum momento, vive e morre. Depois que morre, fica algo, algo sobrevive? Ordinariamente podemos admitir que nós nascemos quando ocorre a fecundação do óvulo de mamãe pelo espermatozoide de papai. E que morremos quando coração e cérebro param de funcionar. Mas, houve em algum momento a concorrência de uma decisão para o nosso nascimento? Foi mera casualidade ou haveria de ser dessa forma? Sendo mera casualidade fica realmente difícil propor qualquer teleologia. Ainda mais importante: somos algo de nossos pais e antepassados? Há algo deles que sobrevive em nós? Poderíamos efetuar a leitura de ontogênese e sobrevivência na chave de um continuum; há uma plasticidade nas passagens, não há beirada, não há ruptura. E também a nossa vivência seria uma composição contínua, de algum modo se unificando em nosso ser.
 A relativização de conceitos limita sua análise, mas facilita a compreensão. Uma coisa é analisar a sobrevivência por ela mesma, ou o que é a ontogênese. Estaríamos em um campo vasto de possibilidades e não teríamos algo em que nos apoiar. Porém, é muito mais fácil compreender a ontogênese em relação à sobrevivência e vice-versa. Pelo que nos é possível entender nesse momento, ontogênese e sobrevivência apontam para um continuum. Tomar o continuum como método de análise significa que não há uma ontogênese estrito senso porque sempre há uma sobrevivência. A história deixa de apresentar divisões para ser vista de maneira plástica: da idade média para o renascimento costumes se mantêm, não surge um novo homem. Mais do que isso, o homem renascido resgata o antigo e o funde no medieval, obviamente acrescentando algo. O continuum descarta o começo e marca a trajetória, o traçado. O continuum revela que não há fim e não importa a casualidade, mas a sobrevivência.



* A partir do mote de Maurício Ramos: http://filosofia.fflch.usp.br/files/graduacao/progs_pdf/2017-1/FLF0441_1_2017.pdf

quarta-feira, 12 de abril de 2017

A dinâmica de forças que se opõe à luta de todos contra todos*

A teoria da representação política de Hobbes surge para legitimar a submissão ao estado. Na transição do feudalismo para o modernismo, as cidades passam do campo de disputa entre senhores para se unificarem em torno de um poder único. É o surgimento da soberania[1] capaz de unir o diverso, sejam territórios difusos, sejam poderes concorrentes (escolas, famílias, exército). Soberania que agrega o empírico e é o fundamento da república. O poder soberano instituído descola o poder do ocupante do poder, da pessoa física: se o corpo físico morre, o lugar é transmitido para um herdeiro ou eleito. Mas qual a legitimidade de tal poder?
O conceito de representação de Hobbes[2] vem do teatro para vigorar no sistema político até os nossos dias. No teatro, o ator representa uma peça escrita pelo autor. A pessoa do ator é um personagem (persona, per: através, sona: sons – o som passa através da máscara), já que as palavras não lhe pertencem, pois são produzidas pelo autor. Porém, se o autor é autoridade no que tange a suas palavras e ações, ele transfere seus direitos, seu mandato, para o ator que, então, o representa. Hobbes diferencia a pessoa em duas: pessoa natural é aquela que representa a si mesma; pessoal artificial representa outro. Mas, se a pessoa natural é uma, como pensar a unidade da pessoa artificial quando se trata de uma multidão?
Havendo uma multiplicidade de autoridades, elas só se unificam a partir do consentimento de cada uma; quando as diferenças são eliminadas surge a unidade do representante – o Leviatã. Porém, tal unificação depende da transferência da autoridade através do pacto ou contrato. Assim, o representado reconhece suas falas no representante, legitimando-o. A multidão se torna uma, se torna povo e é instituída como autora. Transferindo seu poder e autoridade para o representante, aparece o Leviatã que produz o povo, o representado. Diferentemente do teatro, onde o ator deve agir de acordo com o roteiro do autor, na criação do Leviatã, quando a multidão se transforma em povo, esse se vê ausente do palco da política. O Leviatã, deus mortal criado pelo homem, se separa do povo e, transcendente, se separa também do social. Porém, a caracterização política de Espinosa difere dessa. Vejamos.
* * * *
Ao ser questionado sobre a diferença de sua abordagem em relação à hobbesiana, Espinosa responde, na carta 50[3], que ele mantem o direito natural mostrando que, na transformação da multidão em povo, há algo que escapa. Para ele, há um instransferível e irrepresentado, um algo que passa do natural ao civil. O próprio Hobbes tocou nesse ponto ao colocar que há um dever de obediência, que o soberano pode prender, mas não pode pedir para não fugir, nem que o ferido use medicamento para se curar. Se, para Hobbes, esse poder de resistência foi tratado como um resquício, para Espinosa esse é um limite interno que torna impossível a multidão se transformar em povo. Há, para Hobbes, uma guerra de todos contra todos no estado de natureza mas, com a insurgência da pessoa artificial do Leviatã, aparece a possibilidade da paz, ou seja, o poder institui a paz. Se no estado de natureza cada um tem todo o direito do mundo, passando para o estado civil há a transferência de poderes para o governante. Entretanto, Espinosa argumenta que há um pouco do direito de natureza que permanece no estado civil, já que o homem não pode renunciar a ser humano. Esse direito natural teria sido relegado por Hobbes, operando na sua teoria política como um corte radical para o estado civil.
A oposição de Espinosa se dá a partir do argumento ontológico: “Reconhecer-me representado em outro é destruir-me”. Sabemos, pela Ética[4], que só há uma substância e somos seus modos finitos, assim como tudo o mais que se segue na natureza. Portanto, a potência real é a potência substancial expressa por cada modificação finita como potência finitizada. Possuímos um conatus[5]: o esforço de preservação do ser, resistência, ação; e o desejo de buscar o que nos é útil a cada momento, desejo como consciência desse conatus. Assim como a essência de Deus é a sua potência, a essência do homem é esse desejo, potência determinada da potência divina. Então, como poderia haver a transferência completa de cada um para o soberano? Seria a destruição do ser. Se a ontologia torna impossível, Espinosa argumenta que há transferência para construção de um poder comum, mas não completa.
O homem é guiado por esse desejo e há homens que lutam pela servidão assim como homens que lutam pela liberdade[6]. O desejo humano produz revolução e campo de concentração. Porém, essa dinâmica de forças colocada por Espinosa refuta o totalitarismo, já que não pode haver poder total, porque há algo que deve permanecer em cada um sem o qual esse um seria destruído. O representante tem que lutar por cada ato a todo instante, não há um contrato estabelecido. Se, para Hobbes, a política é estática, para Espinosa ela é dinâmica; se o tirano quer exorcizar o conflito, a leitura espinosana da política revela o conflito pelo poder e a vitalidade da vida social. O poder soberano não está dado, não é um lugar a ser ocupado, lugar descolado, poder transcendente. O poder de mando é visto por Espinosa como imperium[7] e pertencente à multidão. Para Hobbes, o imperium é o representante, para Espinosa o imperirum é o representado. Se há resistência do poder natural no civil, sua legitimidade se dá pela potência: se tenho força, tenho que peitar.




* Anotações de aula de Moderna IV, professor Homero Santiago, 23 de março de 2017.
[1] Conceito de soberania atribuído a Jean Bodin por Homero Santiago.
[2] Fica pendente um post sobre uma análise mais detalhada da representação contratualista de Hobbes.
[3] Célebre pela distinção traçada com Hobbes.
[4] Já tratada "en passant" nesse espaço: "Deus, ou seja, a Natureza".
[5] Conceito a ser mais desenvolvido.
[6] Precisamos entender melhor o que significa lutar pela servidão, mas pode ser que, perante tamanha ameaça ou violência, o desejo escolha a servidão. A elucidar.
[7] Conceito a ser mais desenvolvido.

sábado, 8 de abril de 2017

Incômodo*

O que te incomoda? O que me incomoda? É um problema pessoal, familiar, social? É físico? Ou metafísico? Há algo que te incomoda? Há algo que me incomoda. Precisamos de um problema, o grande problema. Há tantos problemas... Mas qual é “o” problema? Há algo mal resolvido, sempre. Não fazemos nada tão interessante, escutamos e vemos tantas coisas. Cremos nisso? No que cremos? Nosso problema é a crença? É a vida ou a morte? É Deus ou o Diabo? Se existe, ponhamos com maiúscula... Ou o incômodo é simplesmente e nada mais do que o trânsito ou nosso time de futebol que não ganha? A fofoca é um problema? Seria a miséria ou a má distribuição de renda que gera tanta desigualdade e violência? E aquelas festas familiares tediosas e com sorriso amarelo em todos os rostos? Haveria de ser as manifestações com todo mundo de amarelo? Ou de vermelho, sei lá.
O incômodo que buscamos (e só há vida se há incomodo, e só há vida se há incômodo que queremos superar) deveria ser aquele incômodo que “realmente” nos incomoda. Ou seja, um incômodo concreto. A nosso busca pelo incômodo, aqui, agora (nesse momento), visa o não incômodo, ou seja, a sua superação. Eleger o incômodo significa que, dentre tantos, buscamos algo extremamente importante e que deve ser resolvido. Haverá uma resposta para o incômodo e queremos achá-la. Portanto, a eleição do incômodo é o critério valioso. Não deve ser qualquer um, deve ser algo que nos marca e nos acompanha, lá, no subterrâneo. Algo latente, mas não manifesto, talvez mais imanente do que transcendente. O transcendente aceita muitas respostas e gera controvérsias, mas podemos concretizar o transcendente.
Pode ser que um dos maiores obstáculos na superação de um incômodo e, por isso, em sua eleição, seja nossa passividade. Todas as respostas já foram dadas. Basta procurar, não é preciso formular. Afinal, faz tempo que estamos aqui habitando esse planeta e não haveriam tantos problemas novos. E esse, definitivamente, é o ponto. Saber que há problemas, saber que há respostas e: saber que não é a nossa resposta!!! Aceitar as respostas, adaptar as respostas à nossa situação e mudarmos. Não o incômodo, mas a sua formulação. Mudamos a formulação do incômodo para achar uma resposta escondendo o verdadeiro incômodo e o colocando na vala de todos os incômodos indiscerníveis e seguir.
Estaríamos fadados a esse fim? Mudar a formulação dos nossos incômodos para que as respostas já dadas os resolvam? Parece que sim porque é assim que ocorre, é dessa maneira que sempre vimos as coisas. A ciência, entidade que comanda nosso progresso, a promessa, age assim: universaliza-se, acha-se uma lei, generaliza-se excluindo o particular. A lei da gravidade é a lei geral que vale para todos os corpos, até para os celestes!! Mas, além de tal utilidade e, claro, conforto, já que a lei da gravidade é um passo na longa escalada tecnológica que nos trouxe a esse grandioso tempo super-informatizado e digitalmente inteligente, essa fórmula responde ao meu incômodo ou será que eu que transmuto o meu incômodo aos incômodos dados e respondidos?
Está na hora de mudar o método. Partir do incômodo único e pessoal, singular. É o seu, o meu incômodo que precisa de resposta. É a sua, a minha investigação que vai proporcioná-la. Obviamente, interessa a resposta para incômodos similares e podemos usá-la, mas não como fórmulas prontas porque o incômodo é biográfico, está inscrito em nós. Está na hora de levantar da poltrona e ir para o palco. Mentes brilhantes deram respostas brilhantes e iluminaram a sociedade, mas quantas mentes brilhantes foram ofuscadas? Buscar o incômodo é a chave para buscar a resposta e sistematizar. Haja quantos sistemas houver, haja quantos incômodos forem necessários, todas as respostas devem ser publicadas e um dia podem ser lidas, pois estarão catalogadas na biblioteca de Babel.

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* Maurício Ramos e o método que busca o conceito genético. Formas em movimento: ontogênese e sobrevivência, 07 de abril de 2017.