quarta-feira, 12 de abril de 2017

A dinâmica de forças que se opõe à luta de todos contra todos*

A teoria da representação política de Hobbes surge para legitimar a submissão ao estado. Na transição do feudalismo para o modernismo, as cidades passam do campo de disputa entre senhores para se unificarem em torno de um poder único. É o surgimento da soberania[1] capaz de unir o diverso, sejam territórios difusos, sejam poderes concorrentes (escolas, famílias, exército). Soberania que agrega o empírico e é o fundamento da república. O poder soberano instituído descola o poder do ocupante do poder, da pessoa física: se o corpo físico morre, o lugar é transmitido para um herdeiro ou eleito. Mas qual a legitimidade de tal poder?
O conceito de representação de Hobbes[2] vem do teatro para vigorar no sistema político até os nossos dias. No teatro, o ator representa uma peça escrita pelo autor. A pessoa do ator é um personagem (persona, per: através, sona: sons – o som passa através da máscara), já que as palavras não lhe pertencem, pois são produzidas pelo autor. Porém, se o autor é autoridade no que tange a suas palavras e ações, ele transfere seus direitos, seu mandato, para o ator que, então, o representa. Hobbes diferencia a pessoa em duas: pessoa natural é aquela que representa a si mesma; pessoal artificial representa outro. Mas, se a pessoa natural é uma, como pensar a unidade da pessoa artificial quando se trata de uma multidão?
Havendo uma multiplicidade de autoridades, elas só se unificam a partir do consentimento de cada uma; quando as diferenças são eliminadas surge a unidade do representante – o Leviatã. Porém, tal unificação depende da transferência da autoridade através do pacto ou contrato. Assim, o representado reconhece suas falas no representante, legitimando-o. A multidão se torna uma, se torna povo e é instituída como autora. Transferindo seu poder e autoridade para o representante, aparece o Leviatã que produz o povo, o representado. Diferentemente do teatro, onde o ator deve agir de acordo com o roteiro do autor, na criação do Leviatã, quando a multidão se transforma em povo, esse se vê ausente do palco da política. O Leviatã, deus mortal criado pelo homem, se separa do povo e, transcendente, se separa também do social. Porém, a caracterização política de Espinosa difere dessa. Vejamos.
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Ao ser questionado sobre a diferença de sua abordagem em relação à hobbesiana, Espinosa responde, na carta 50[3], que ele mantem o direito natural mostrando que, na transformação da multidão em povo, há algo que escapa. Para ele, há um instransferível e irrepresentado, um algo que passa do natural ao civil. O próprio Hobbes tocou nesse ponto ao colocar que há um dever de obediência, que o soberano pode prender, mas não pode pedir para não fugir, nem que o ferido use medicamento para se curar. Se, para Hobbes, esse poder de resistência foi tratado como um resquício, para Espinosa esse é um limite interno que torna impossível a multidão se transformar em povo. Há, para Hobbes, uma guerra de todos contra todos no estado de natureza mas, com a insurgência da pessoa artificial do Leviatã, aparece a possibilidade da paz, ou seja, o poder institui a paz. Se no estado de natureza cada um tem todo o direito do mundo, passando para o estado civil há a transferência de poderes para o governante. Entretanto, Espinosa argumenta que há um pouco do direito de natureza que permanece no estado civil, já que o homem não pode renunciar a ser humano. Esse direito natural teria sido relegado por Hobbes, operando na sua teoria política como um corte radical para o estado civil.
A oposição de Espinosa se dá a partir do argumento ontológico: “Reconhecer-me representado em outro é destruir-me”. Sabemos, pela Ética[4], que só há uma substância e somos seus modos finitos, assim como tudo o mais que se segue na natureza. Portanto, a potência real é a potência substancial expressa por cada modificação finita como potência finitizada. Possuímos um conatus[5]: o esforço de preservação do ser, resistência, ação; e o desejo de buscar o que nos é útil a cada momento, desejo como consciência desse conatus. Assim como a essência de Deus é a sua potência, a essência do homem é esse desejo, potência determinada da potência divina. Então, como poderia haver a transferência completa de cada um para o soberano? Seria a destruição do ser. Se a ontologia torna impossível, Espinosa argumenta que há transferência para construção de um poder comum, mas não completa.
O homem é guiado por esse desejo e há homens que lutam pela servidão assim como homens que lutam pela liberdade[6]. O desejo humano produz revolução e campo de concentração. Porém, essa dinâmica de forças colocada por Espinosa refuta o totalitarismo, já que não pode haver poder total, porque há algo que deve permanecer em cada um sem o qual esse um seria destruído. O representante tem que lutar por cada ato a todo instante, não há um contrato estabelecido. Se, para Hobbes, a política é estática, para Espinosa ela é dinâmica; se o tirano quer exorcizar o conflito, a leitura espinosana da política revela o conflito pelo poder e a vitalidade da vida social. O poder soberano não está dado, não é um lugar a ser ocupado, lugar descolado, poder transcendente. O poder de mando é visto por Espinosa como imperium[7] e pertencente à multidão. Para Hobbes, o imperium é o representante, para Espinosa o imperirum é o representado. Se há resistência do poder natural no civil, sua legitimidade se dá pela potência: se tenho força, tenho que peitar.




* Anotações de aula de Moderna IV, professor Homero Santiago, 23 de março de 2017.
[1] Conceito de soberania atribuído a Jean Bodin por Homero Santiago.
[2] Fica pendente um post sobre uma análise mais detalhada da representação contratualista de Hobbes.
[3] Célebre pela distinção traçada com Hobbes.
[4] Já tratada "en passant" nesse espaço: "Deus, ou seja, a Natureza".
[5] Conceito a ser mais desenvolvido.
[6] Precisamos entender melhor o que significa lutar pela servidão, mas pode ser que, perante tamanha ameaça ou violência, o desejo escolha a servidão. A elucidar.
[7] Conceito a ser mais desenvolvido.

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