domingo, 26 de abril de 2015

Investigação fenomenológica: as condições subjetivas do conhecimento em circunstâncias ideais*

Ao conclamar os filósofos para o movimento fenomenológico, Husserl constatava o estado de imperfeição teórica das ciências porque, apesar dos resultados técnicos por elas apresentados, faltaria clareza acerca dos seus fundamentos, acerca dos fundamentos sobre os quais a ciência operaria. Assim, seria preciso explicitar os pressupostos que legitimariam os conhecimentos científicos fundamentados: quais seriam esses pressupostos, seu alcance e sentido. Husserl, então, defenderia um projeto de fundamentação das ciências como explicitação dos pressupostos teóricos que garantiriam a cientificidade do conhecimento, de modo que fosse possível evidenciá-los, clarificá-los, elucidá-los. De acordo com ele, haveriam dois tipos de pressupostos, de condições que garantiriam a legitimidade do conhecimento:
·         Condições objetivas: seriam restrições conceituais, formas de inferência e sistematização de teses, formas das teorias possíveis e estariam sob o domínio da lógica, domínio formal de leis e princípios que visavam o respeito às regras e evitariam contradições.
·         Condições subjetivas: seriam as restrições ao conhecimento referentes às capacidades de atestação da validade lógica, capacidades que permitiriam distinguir entre bons e maus raciocínios e reconheceriam com evidência as condições formais válidas.
Nesse projeto haveria uma divisão do trabalho entre matemáticos e filósofos. Com os primeiros ficaria a tarefa da lógica pura, que visava fundamentar as ciências do ponto de vista objetivo, tornando explícitos os pressupostos lógico-conceituais a que toda teoria científica deveria se submeter. Com os segundos ficaria a tarefa da fenomenologia, que visava fundamentar as ciências do ponto de vista subjetivo, tornando explícitas as possibilidades e os limites do sujeito cognoscente.
As condições subjetivas que deveriam ser investigadas pela fenomenologia não envolveriam circunstâncias empíricas, factuais, de vida subjetiva, mas deveria ser investigada a subjetividade em geral, o modo natural das essências. Interessaria explicitar a essência da subjetividade, os aspectos estruturais que definem, a priori, o que é uma subjetividade cognoscente em geral, distinguindo o noético: o geral, a ideia, do psicológico: instâncias do noético, casos da ideia. A fenomenologia até poderia partir de casos empíricos, mas através deles deveria buscar o invariante, o que permanece, a essência. No plano psicológico, poderiam ser observadas situações reais que o sujeito percebe, o caso singular seria o ponto de partida no rumo do factual para o essencial. A essência seria a espécie, a unidade de vários casos: de um lado estaria o ente ideal, idêntico e de outro o real, temporal, as circunstâncias. Assim, a idealidade seria exemplificada em caos reais.
Para apreender a essência do sujeito seria necessário isolar as suas capacidades noéticas. A abstração da experiência empírica permitiria observar o invariante, separando o eu corporal empírico se isolaria a consciência, a unidade das vivências psíquicas, o eu fenomenológico. De um lado o eu empírico, o corpo físico, do outro o eu fenomenológico, o espiritual, psíquico, a sua essência. A fenomenologia estaria muito associada à psicologia, haveria apenas uma diferença de grau, essa última empírica e a primeira descritiva, investigando as características essências da experiência psíquica de modo isolado do contato empírico corporal com o mundo: um tipo de psicologia eidético-descritiva.
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* notas de aula de História da Filosofia Contemporânea, prof. Marcus Sacrini.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Movimento Fenomenológico*

O movimento fenomenológico surge a partir de um chamado que Husserl fez para um trabalho coletivo dos filósofos, recuperando a ideia original de filosofia como ciência englobante e rigorosa. Ela deveria se basear no critério geral de cientificidade, qual seja: o reconhecimento intersubjetivo mínimo da validade de certos conteúdos teóricos e procedimentos metodológicos. Partindo de uma base consensual com métodos lógicos que pudessem ser reconstruídos, sua validade se daria por um acordo entre os pesquisadores e teria como consequência, a partir daquela base consensual, uma progressão colaborativa.
Quando a Filosofia segue o gênio, ela cria sistemas que são produzidos por uma só pessoa, sistemas quase religiosos que tendem a se isolar. De outra forma, o movimento fenomenológico deveria ser um chamado para as novas gerações, movimento colaborativo que desse ênfase em contribuições parciais para a construção interminável de um saber válido, em um trabalho cumulativo. Essa deveria ser a direção da filosofia, não como princípio, mas como um fim, um telos. E a fenomenologia cumpre esse critério porque tem como pressuposto a inesgotabilidade da experiência.
Sua metodologia parte da redução eidética (eidos – essência) para a redução fenomenológica transcendental. Concepção à época extremamente nova e radical, a fenomenologia seria um método para tratar um núcleo de problemas transcendentais. Em sentido kantiano, a fenomenologia transcendental não se preocupa com os atributos sensíveis dos objetos, não descreve o mundo, mas o modo de acesso a eles. Voltando-se para as capacidades subjetivas, em detrimento do que a experiência nos dá, é a condição de possibilidade (a crítica) que é objeto de estudo: a constituição dos modos de acesso de apreender fenômenos, suspendendo o mundo, o dado real, a experiência. Assim, o núcleo dos problemas são as condições subjetivas de possibilidade do conhecimento e da experiência em geral e o método, a redução fenomenológica, é a suspensão da vigência do ser das coisas para tornar visível como constituímos o seu sentido a partir do aparecer fenomenal. A intuição permitiria mostrar como a experiência é possível através das condições que devem ser preenchidas para se atribuir ser às coisas.
A fenomenologia permitiria reduzir o ser ao fenômeno, suspendendo a objetividade do mundo. Seria possível explicitar o pressuposto do conhecimento objetivo através dos modos estruturais subjetivos de como é possível este conhecimento. Eis a radicalidade: suspender o ser pelo aparecer. Mas a redução não foi muito bem compreendida em sua época: Husserl propõe um programa de pesquisa fenomenológico, mas há resistência em relação a seus princípios básicos. Uma delas: Sartre.

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* notas de aula de História da Filosofia Contemporânea, prof. Marcus Sacrini.

sábado, 18 de abril de 2015

Bicho Homem

    O ser que escreve essas linhas está estudando a fenomenologia de Husserl e a leitura que Sartre faz de tal filosofia. Embora o ser que escreve essas linhas às vezes pense que não tem capital cultural suficiente para entender de Filosofia (nem no geral, nem especificamente), ele sabe que tem o direito de escrever o que bem lhe der na telha, inclusive sobre Filosofia.
    Ele, mal esclarecendo isso, tem a impressão de que, se a consciência é vazia conforme Sartre procura demonstrar no seu "A transcendência do ego", o Homem é mais Bicho do que Homem, no que ele esclarece: o Homem é mais Animal do que Racional. Se o fluxo da consciência expulsa o ego para o mundo, fazendo dele ser transcendente, ele coloca a consciência irrefletida como principal polo de imanência. Nesse sentido, ele entende que essa tese dele faz com que cada ato factual coloque a consciência em uma relação imediata com o mundo, guiada pelo mundo naquele momento. Objetivamente, o ser que escreve essas linhas entende que o ser-no-mundo dele, aquele da situação, é mesmo, de fato, existencial. Mas ele admite que, nesse ponto, está fugindo do contexto e da evolução do pensamento sartreano que ainda não abordava o existencialismo. De qualquer forma, ele reforça que o fato, (a essência...),o mundo, etc., se revela ao ser de forma intensa, instantânea e inexorável, contra a consciência, atingindo-a. E atinge muito mais um animal que um racional.
    E ele acrescenta que, com a visada atual de uma consciência reflexiva que tem como objeto a consciência refletida, que foi irrefletida, mas que agora tem a ela um EU agregado, muito mais do que antes, o Homem é mais Animal do que Racional, porque primeiro um animal visa o mundo (na consciência irrefletida) e depois visa a si mesmo (na consciência reflexiva), tornando-se racional. Ou seja, ele acredita que o Homem é muito mais Animal que Racional, porque se não há EU na consciência irrefletida (ou seja, há EU no mundo) e o EU só se verifica na consciência reflexiva, esse EU é passado. Esse EU é um objeto anterior, com muito menos força que aquele EU da consciência irrefletida, que é transcendente. Esse EU nem mesmo é transcendente, ele é inventado. Quando isso acontece, ele pensa que o EU atual depende do EU que passou e que é inventado. Por isso, o EU atual se guia pelas experiências do EU passado e, agora, conhecido. Essa reflexão da consciência coloca a consciência irrefletida em defasagem com o EU reflexivo, ela fica à frente dele e muito determinada pelas experiências dele. Portanto, ela está sempre um passo a frente dele. O ego transcendental está sempre a frente do ego inventado. O ego transcendental é a primeira pessoa do sujeito, mas totalmente atrelada ao mundo, como ele procurou mostrar no segundo parágrafo dessa reflexão. O EU que surge como agente já passou e o EU atual se fia nas experiências do ego inventado, por isso, muito mais determinado, mais dependente das experiências dele. Por isso, ele acredita (não eu que sou irrefletido, mas ele que é refletido na consciência reflexiva) que, nesse contexto de reflexão, o Homem é muito mais Animal que Racional.
    Isso posto, o ser que escreve essas linhas entende que deve estudar mais a fenomenologia de Husserl e a leitura que Sartre faz dela, para tentar elucidar esse mistério. Por exemplo, em um outro viés, atribuindo muita liberdade quando a consciência irrefletida age na situação, sem reflexão.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Resenha das Orientações Curriculares para o Ensino Médio, ano 2006.

Conhecimentos de Filosofia

Documento proposto pelo Ministério de Educação para orientar a prática docente referente ao Ensino Médio e propor estratégias didáticas, além da abordagem da relação ensino-aprendizagem. Fruto da reflexão e do estudo de diversos atores da área de educação, em caráter multidisciplinar, o documento serve como guia curricular que ajude na organização do trabalho pedagógico. Essa resenha cobre os aspectos referentes aos conhecimentos de Filosofia, passando pela sua identidade, os objetivos da filosofia no Ensino Médio, seus conhecimentos, habilidades, conteúdo e metodologia.
Apesar da Filosofia ainda não ser obrigatória naquele momento, o documento aspirava a ela esse caráter em virtude de problemas de teor filosófico estar presentes nas pautas da sociedade, sejam referentes à ciência, tecnologia, ética e política, entre outros. A longa ausência da Filosofia no Ensino Médio, que ficou restrita a um conteúdo transversal, provoca um hiato de consolidação da disciplina, desde a formação de professores a procedimentos pedagógicos e recursos materiais e sem que seja refletido seu papel formador e específico direcionado a esse nível de escolaridade. Revisando os PCN anteriores, evitam-se nesse documento imposições doutrinárias ao mesmo tempo em que deixa o professor livre para defender suas posições e orientação filosófica, obviamente sem sufocar os alunos. Orientando-se por um novo quadro institucional da disciplina em que os cursos de graduação e os profissionais habilitados são submetidos à avaliação institucional que não distingue bacharelado e licenciatura, além da portaria da licenciatura com elevadas horas curriculares, o documento sintetiza os mais variados aspectos que tangem ao ensino de filosofia no Ensino Médio.
Identidade da Filosofia. O documento inicia com o questionamento a cerca da natureza da Filosofia para correlacioná-la com o exercício da cidadania. Buscando fazer uma “limpeza de terreno”, explicita-se que não há uma filosofia, mas uma multiplicidade de perspectivas e possibilidades e um pensar filosófico – esse sim deve ser unívoco. Assim, o agente que filosofa, parte de uma orientação filosófica com a qual ele se identifica, na qual ele acredita que é aquela que produz bons resultados e é aderente às suas convicções. A Filosofia é a ciência do questionamento e da reflexão. Nesse sentido, é uma ciência que não é tradicional, como as ciências tradicionais que se orientam pelos objetos exteriores, mas visa analisar a forma como os objetos nos são dados. Como pensamos os objetos, seja em seu sentido lógico, crítico, como condição de conhecimento, seja a visão que temos dos objetos, que pode ser uma visão parcial e, então, voltada para uma crítica social e ideológica. Porém, conforme regula a legislação, a Filosofia não deve se restringir à cidadania, porque essa orientação é geral para o Ensino Médio como um todo em suas disciplinas. A filosofia não se restringe ao papel crítico e humano, mas, enquanto possibilidade de criação de conceitos, de capacidades intelectuais de fala, leitura e escrita, articulando a compreensão de textos e a reflexão racional e embasada sobre temas contemporâneos com sua rica história que se confunde com a própria Filosofia, com a própria história do pensamento.
Objetivos da Filosofia no Ensino Médio. Com um foco diferenciado, a Filosofia deve se ater menos ao ensino de conteúdos do que à capacidade de aquisição de conhecimentos, de modo que o aluno aprenda a refletir sobre si e as informações que lhes são oferecidas, assim formando um conhecimento mais duradouro, rico e diversificado. Aliado ao conhecimento intelectual a Filosofia também se vale da formação crítica e não somente técnica, que possibilita aquisição de competências comunicativas e argumentativas e que aponta em direção à emancipação e autonomia do sujeito.
Competências e habilidades em Filosofia. Defende-se, não uma competência que prepare para o mercado de trabalho, mas competências que permitam analisar um problema sobre diferentes aspectos ou mesmo fazer uma aprofundamento das questões que o problema levanta. Associada novamente à cidadania no que diz respeito às competências comunicativas e cívicas, “é a contribuição mais importante da Filosofia: fazer o estudante aceder a uma competência discursivo-filosófica” (OCN 2006, p. 30). Qual seja: capacidade racional de argumentação para concordar ou não com pontos de vistas que permitam uma autonomia e exercício da cidadania, aliada à capacidade de reflexão. E, valendo-se da tradição, que o aluno se aposse de conteúdos provenientes da história da filosofia, pois, sem ela, não se filosofa.
Conteúdos de Filosofia. O documento propõe uma lista de temas que perpassa a história da filosofia, de acordo com o currículo mínimo de um curso de graduação. A proposta é trabalhar o conceito ao invés de um amontoado de ideias a serem decoradas, ao modo do saber enciclopédico.
Metodologia. Usar o texto histórico e trabalhá-lo sob uma perspectiva filosófica, evitando-se cair na doutrinação e promovendo o embasamento e o método de investigação filosófica. Nesse contexto, valoriza-se o professor formado em filosofia que dê conta da especificidade do seu conteúdo histórico e seja capaz de confrontá-lo com temas atuais, para promover a reflexão dos alunos que estão no nível médio do ensino. Dessa forma, a Filosofia pode atuar ativamente na formação do jovem e conversar com as demais disciplinas, recuperando a sua excelência e importância no Ensino Médio.

sábado, 11 de abril de 2015

Infinito

Eu costumo dizer que há mais pensamentos que estrelas no céu. Se hoje somos 6, 7 bilhões de pessoas no planeta, todos pensando o tempo todo, fica fácil imaginar o resultado da conta. Claro que não podemos menosprezar o big bang - imaginamos o universo ainda em expansão, mas as grandezas vão por aí, para essa casa de aproximação.

Dessa quantidade, quantos bons pensamentos existem? Quantos originais, radicais, criativos? O mundo é uma máquina de produção de conhecimento, tanto conhecimento sobre coisas exteriores, quanto pensamentos puros, conhecimentos em si, sem objetos. Para cada ideia que temos, impossível imaginar quantas divergências, quantos pontos de vista diferentes pode haver. Aí está a beleza, não somos o último "bis da caixinha", apesar de sermos únicos, cada um de nós. Cada um é formado por uma combinação exorbitante de átomos, moléculas, neurônios, cromossomos que são vivos e estão em constante mutação.

Essa riqueza tem que ser possível para todos, ou melhor, tem que ser acessível para todos. O conhecimento é interminável. Quantos grandes filósofos e cientistas existiram em todos os tempos? Quantos grandes pensadores, escritores? Somos seres racionais e prezamos isso. Uma grande ideia ilumina, é mística, transforma. Aprender: sempre nós iremos.

Se o conhecimento, assim como o universo, é interminável, a vida também é interminável. Mas a vida é interminável porque tem fim. Se a vida não tivesse um final, não teria problema, teríamos tempo. Mas a vida acabando, morrendo um dia, ela se torna interminável porque algo vai se romper um dia. Algo ficará por acabar, não terminará, algo ficará interminável. E todo mundo que morre, morre pensando. Esta é nossa característica, uma das mais marcantes. Pensar. E aprender a pensar, diversificar. A democracia, bonita palavra, poderia não ser mais que isso: possibilidade de pensar, acesso ao conhecimento. Aprender! Nunca é tarde para começar, porque não sabemos quando vamos parar. Nem o bebê, nem a pequena criança sabem quando vão parar, por isso pensam. Se eles soubessem, não pensariam. Só pensamos porque a vida é interminável, só pensamos porque a vida tem fim. Há mais pensamentos que estrela nos céu.

terça-feira, 7 de abril de 2015

Intuição e dedução

Parece que há uma oposição entre essas duas operações do pensamento. O que vamos fazer aqui é desenvolver uma reflexão típica de um filósofo de rua: sem nenhuma referência teórica assertiva ou rigorosa (embora à luz de Husserl). Apenas divagaremos um pouco sobre essas duas operações e em um futuro incerto retomamos com mais propriedade e embasamento. Concordemos que intuição e dedução são operações do pensamento e se referem a objetos. Porém, a dedução é lógica e a intuição é empírica (ou psicológica?). Nesse sentido, a dedução é um procedimento que tem um embasamento formal enquanto que a intuição é um procedimento que tem um embasamento material, concreto.
As regras da dedução são rígidas e podem ser aprendidas, de modo que sejam reconstruídas. A intuição não se atém a regras de sintaxe ou morfológicas, mas visa uma apreensão dos objetos. A dedução é uma forma a priori do pensamento puro, é como uma luva pronta para ser usada, basta lá encaixar os dedos. Não tem “pode ser assim ou assado”, existe um comportamento intelectual que adere àquelas regras que não podem ser violadas. A intuição é um contato direto com o objeto, que pode ser mediado ou imediato. As regras da intuição são regras de acesso ao mundo e aos objetos. São regras que podem ser direcionadas a objetos individuais, como esta caneta, objetos gerais, como uma caneta genérica ou objetos inexistentes, como um disco voador, por exemplo. Qual seja, intuímos essências, existências, fatos ou conjecturas. A dedução orienta as formulações que faremos com relação aos objetos, permitem proposições que podem ser compartilhadas intersubjetivamente. Mas a dedução é uma formalidade do juízo do eu, assim como a intuição é uma apreensão constitutiva do eu, do que se conclui que, de uma maneira ou de outra precisamos de ambas, seja para fazer ciência, arte ou filosofia, e tudo o mais. Muito embora haja um sentido intrínseco que as diferencia e que pode ser levado em consideração quando se quiser decidir sobre quais delas priorizar em nossas análises, sejam elas de fato ou de direito.
Ambas as operações mentais são conhecimentos, produzem conhecimentos, embora distintos: a intuição um conhecimento mais próximo do animal e a dedução um conhecimento humano. E parece que eles se complementam: forma e conteúdo. Uma lógica sem objetos versa sobre o vazio; intuição em si não é proposicional. A intuição em si está atrelada a uma sobrevivência animal, precisamos intuir, conhecer o alimento que vamos comer, intuir os animais que podem nos atacar e os perigos do mundo. A dedução é sobrevivência humana: precisamos formular os conhecimentos adquiridos, exteriorizar a outros, mais prioritariamente aos nossos. Assim, em nossa condição humana não vivemos, nem sobrevivemos sem tais operações mentais. 
De todo modo há que se considerar sobre quais objetos intuir e sobre quais deduzir, usar operações certas para objetos e fins adequados, fazer bom uso das operações, enfim situá-las. Com isso, evita-se o radicalismo e se coloca cada coisa em seu lugar.
Objetos, ah, os objetos. Para a dedução eles vêm prontos, idealizados, não há preocupação com o detalhe, com suas características. Isso fica por conta da intuição. Para ela um objeto aparece: de um lado, do outro lado, em cima, embaixo. A intuição visa cada parte do objeto em sua opacidade e vai constituindo-o. Assim age com um e assim age com outro, similar ao anterior. Assim vai aparecendo o objeto geral, ideal que, abstraído, é apossado pela lógica. Para a lógica importa o geral, não esse ou aquele. A intuição individualiza, mas também especifica, no sentido de espécie. Ela capta a essência dos semelhantes, generaliza e entrega de bandeja para o consumo lógico que está desarmado desse tipo de preocupação. A lógica não se preocupa com a existência, com o fato, mas com a não contradição com as regras de formação, com a proposição. Objetos de uma e de outra, objetos do mundo e do pensamento: cada um em seu lugar.

domingo, 5 de abril de 2015

Contra EAD. Uma análise no uso das tecnologias na relação sujeito-objeto, ou, professor-aluno.*

O uso da Razão permitiu ao homem criar objetos para superar os limites da Natureza. Entretanto, essa “lógica do objeto” poderia levá-los ao domínio deles sobre nós: eles poderiam nos dispensar de todas nossas atividades ou mesmo nos exterminar. A mesma possibilidade de extinção ameaça os professores: se a psicologia já diminuíra o seu papel transformando-o em “facilitador”, o ensino à distância os coloca em posição passiva frente ao processo educacional. Mas, como fica a presença real, corporal do professor? A lógica capitalista cria objetos que se adéquam ao que o sujeito quer, o desejo vira necessidade. Se Lacan considera que a relação sexual não existe porque não há relação satisfatória, é essa falta que estimula o desejo, ao passo que a necessidade vem da adequação do sujeito ao objeto, em uma relação completa que faz com que o sujeito perca seu interesse pelo outro. Ao que parece, quando a relação aluno-computador satisfaz, a relação professor-aluno tende a desaparecer.
 A polarização desejo versus necessidade transparece mais claramente quando Voltolini analisa as teorias da psicologia behaviorista e a psicanálise. O behaviorismo busca “naturalizar” o homem equiparando-o ao animal e aproximando-o do instinto e de modo que se oriente pela necessidade. Assim, o behaviorismo usa um método de conformidade, baseado em estatísticas de padrões de comportamento que adéquam às demandas dos contingentes populacionais. É o que denuncia Lacan no Discurso do Capitalista: partindo do objeto que cria necessidade, que possibilita a relação direta entre sujeito e objeto e tentando eliminar o desejo; relação esta que seria impossível – como a relação sexual. Para a psicanálise, por outro lado, é justamente o instinto precário do homem que abre espaço para o pulsional apontando para uma desnaturação humana que se afasta da natureza e cria suas próprias condições humanas. E Voltolini acentua que o objetivo do capitalista é criar o objeto que cause necessidade absoluta, assim como a dependência criada pelo narcotráfico.
Mas o que o behaviorismo procura instaurar ao aproximar os homens dos animais, ao trabalhar com mecanismos que visam o controle da população a partir de dados estatísticos gerias, em detrimento do particular que o dado não desvela, é apagar uma diferença fundamental entre eles: a linguagem, a fala que faz do homem animal político.
Trazendo para a educação: a relação professor-aluno não existe, não há objeto do instinto e, dessa impossibilidade, busco me relacionar com o outro. E mais: não há receita para a relação entre dois – o aluno ideal não é o aluno da prática assim como o professor ideal não é aquele que está na sala de aula todos os dias, embora o discurso tecnicista queira implicar uma complementaridade entre ambos e elucidar como eles “funcionam”, por meio de um discurso prescritivo que não se concretiza. Mas como a psicanálise resolve essa questão? “Em termos psicanalíticos é a transferência, o termo criado para dar conta do campo de engodo que se estabelece entre dois que se acham numa relação na qual qualquer cálculo que um faça sobre o outro é ao mesmo tempo vital e enganoso.” Transferência que exige que professor e aluno estejam pertos um do outro e que ambos se engajem no que Voltolini chama de “encontro” professores alunos, encontro que é vivo, imprevisível e improvisado.
E o EAD? A técnica, da estratégia capitalista, foge à palavra para controlar e buscar resultados mediante aquele contato com o objeto que supre necessidades e se opondo ao discurso que “engancha” os atores, discurso da linguagem que se afasta do objeto. Falando, nos desnaturamos e nos afastamos do instinto entrando no campo do pulsional e é na transferência que a palavra ganha vida, espaço de diálogo. É aí que o professor atua: não como reservatório de informação ou mediador, mas como partícipe do potencial transferencial.
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Resenha – texto “A relação professor-aluno não existe: corpo e imagem, presença e distância” – Rinaldo Voltolini.


sábado, 4 de abril de 2015

Pessoas perfeitas

Pessoas perfeitas são... Pessoas. O que é a perfeição? A perfeição é um critério qualitativo que tende a ser colocado em uma escala, no topo dela. A perfeição é relativa: não se é absolutamente perfeito; o perfeito, o objeto perfeito está acima do objeto não totalmente perfeito ou imperfeito. A perfeição é subjetiva: eu considero tal coisa perfeita, aquela atitude perfeita. É o meu critério que é diferente do seu. Em si mesma, a perfeição não é: ela é ideal, ela é descolada do objeto, que fica à sua sombra. A perfeição está sempre no topo daquela escala, por mais que algo seja mais perfeito, é menos perfeito que a perfeição, ela tende a infinito.
Pessoas são seres individuais, concretos e variáveis. Pessoas são seres orgânicos, se deterioram a cada dia. Pessoas são seres psicológicos, reflexivos, que podem mudar os critérios de ordem e de escolha a qualquer momento. Pessoas são seres sociais que precisam se camuflar para se relacionar.
Pessoas perfeitas são... Pessoas. O perfeito cai. É como 20 dividido por 10, o 0 cai, o 1 cai, sobra o 2. O "perfeitas" para "pessoas" é como o zero à esquerda: não tem valor.
Mas a pessoa é a terceira pessoa da flexão verbal. Não sou eu, não é você, é ele ou ela. Nesse sentido, a pessoa só existe no discurso porque é uma pessoa abstrata que não está. Esta pessoa da linguagem é perfeita e não existe na realidade. Só quando falo "pessoa perfeita" ou quando escrevo ou desenho. Pessoa perfeita é um discurso vazio.  Na realidade, cada pessoa é perfeita em-si (nele mesma, como vista por alguém) ou para-si (como vista por ela mesma). Pessoas perfeitas são... Pessoas. Perfeitas.
http://www.satyros.com.br/em-cartaz/pessoas-perfeitas